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Não tenha medo desse homem, ele é seu amigo. Foto: jmaxgerlach | Flickr

Não, estudar Marx não é elitista

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Tradução
Giuliana Almada

Ler teoria marxista não é só para acadêmicos de alto nível — pergunte aos milhões de trabalhadores cujo entendimento sobre seu papel na mudança do mundo foi transformada por meio do estudo e da prática.

Quando comecei a me envolver no recém-renascido movimento socialista dos EUA, estava inspirado a ler. Teoria marxista, história do trabalhismo e movimentos sociais, visões gerais de partidos da classe trabalhadora de todo o mundo — eu sabia que havia uma quantidade incrível de conhecimento parado nas estantes de livros de que eu e meus camaradas poderíamos usufruir para nos tornarmos melhores organizadores. Porém, logo encontrei um problema: anos de redes sociais, TV, memes, grupos de bate-papos e videogames haviam derretido meu cérebro, tornando a leitura sustentada um desafio hercúleo.

Por isso, consigo compreender a alegação que escuto ocasionalmente entre ativistas de esquerda: que, embora a organização e a ação sejam essenciais para os socialistas, e uma comunicação política eficaz como a criação de memes também seja importante, esperar que esses ativistas estudem teoria marxista é, de certa forma, elitista. No entanto, essa visão seria desconcertante para milhões de trabalhadores e pessoas pobres em todo o mundo que desde o final do século XIX têm encontrado inspiração e orientação no marxismo enquanto constroem movimentos maciços de transformação social.

De fato, no auge dos movimentos socialistas de massa que aconteceram na Europa no final do século XIX e início do século XX, teóricos marxistas trabalharam em estreita colaboração com inúmeros operários para distribuir literatura radical. Essa era considerada pelos teóricos como uma das principais tarefas em seus movimentos. A crença no poder da leitura e da educação diferenciava os marxistas — não por elitismo, mas por acreditarem nas capacidades intelectuais, organizacionais e políticas das massas trabalhadoras. A leitura dizia respeito ao auto-empoderamento dos trabalhadores, e não à sua subjugação.

O arco-íris revolucionário da leitura

Em seu livro Velhos deuses, novos enigmas, Mike Davis explica que “a leitura ‘provocou insurreições nas mentes dos trabalhadores.’ … O rápido crescimento da mídia trabalhista e socialista no último quarto de século alimentou uma visão política mundial cada vez mais sofisticada.” As massas supostamente sem instrução não apenas podiam ler, como também puseram a teoria na prática para expandir sua liberdade: em muitos países europeus, foram os trabalhadores socialistas do século XIX, e não os liberais burgueses, que lutaram e morreram por direitos democráticos “burgueses” como eleições livres e liberdade de associação.

Os radicais lutaram especialmente pela liberdade de imprensa, pois o compartilhamento de ideias era essencial para a construção de movimentos por igualdade política e social da classe trabalhadora. De acordo com Davis, “o surgimento de partidos socialistas de massa no final do século XIX teria sido inimaginável sem o crescimento dramático da imprensa operária (noventa jornais diários socialistas só na Alemanha!) e a contra-narrativa da história contemporânea apresentada por ela.”

Obviamente, nem todo mundo leu o Capital de Marx. Grande parte da literatura a que Davis se refere era jornais e panfletos de formato mais curto. Mas isso não significava que os trabalhadores não pudessem ser expostos e lidar com ideias marxistas.

Tomemos como exemplo a marxista russa Vera Zasulich, cuja explicação sobre a importância da criação de literatura teoricamente sofisticada para ativistas operários é citada por Lars Lih no livro Lenin Rediscovered: “Nem todo mundo no meio operário lê livros, panfletos, jornais, mas os conceitos [ali contidos], assimilados pelos camaradas que os lêem, entram gradualmente também na cabeça dos não leitores.”

É por isso que os ativistas marxistas na Rússia da virada do século XIX para o XX insistiram que não havia necessidade de emburrecer ou ocultar ideias socialistas para os trabalhadores. Pelo contrário, os marxistas sabiam de sua responsabilidade no envolvimento dos trabalhadores em debates estratégicos amplos e no desenvolvimento de análises políticas abrangentes, não limitadas às questões fabris ou econômicas mais próximas.

Fazendo referência a relatos da frustração dos trabalhadores com a literatura apolítica e simplista, Lênin escreveu em 1902 que os trabalhadores “querem saber tudo o que os outros sabem, [querem] aprender os detalhes de todos os aspectos da vida política e participar ativamente em cada evento político”.

Em resposta à proposta de outro socialista de uma “literatura para trabalhadores” separada e vulgarizada, Lênin argumentou, parafraseado por Lih, que “essas tentativas de criar jornais ‘operários’ perpetuam a divisão absurda entre um movimento de trabalhadores e um movimento [de intelligentsia] (uma divisão criada pela miopia de certos [intelectuais socialistas]).”

Essa divisão implicaria que, conforme os trabalhadores se envolvessem na revolução socialista, deveriam ser manipulados e incentivados por intelectuais letrados, sendo usados tal qual um aríete para derrubar a antiga ordem e abrir caminho para uma utopia nascida a partir das cabeças da intelligentsia. Essa visão instrumental da agência da classe trabalhadora vai diretamente contra um princípio fundamental da política marxista: “a emancipação das classes trabalhadoras deve ser conquistada pelas próprias classes trabalhadoras”.

Isso não significa que os livros por si só tenham sido suficientes para que as massas de trabalhadores desenvolvessem sua capacidade de auto-emancipação, longe disso. No entanto, a literatura marxista e a agitação eram vistas como um ingrediente necessário para os trabalhadores extraírem as lições certas das experiências inebriantes da política prática.

O casamento relâmpago da teoria com a prática

A conversão de Zasulich à estratégia marxista é reveladora. Na geração anterior, ela havia aderido a uma estratégia diferente: o terrorismo individual. Em 1878, Zasulich partiu para a ação e atirou no general Trepov, um agente notoriamente abusivo da autocracia czarista russa. Incrivelmente, Zasulich foi absolvida por um júri compreensivo após ter usado seu julgamento para chamar a atenção para os abusos de Trepov e do governo.

Entretanto, esses assassinatos de grande visibilidade realizados por pequenos grupos de intelectuais radicais não atingiram resultados revolucionários. No exílio na Suíça, Zasulich teve contato com marxistas que, inspirados pelos primeiros sucessos do movimento socialista alemão, denunciavam o terrorismo e defendiam uma estratégia de política operária de massa.

Com base na atividade secreta de uns poucos eruditos, argumentavam os marxistas, o terrorismo era elitista e ineficaz. Zasulich foi convencida a acreditar que a atividade operária de massa, informada pela teoria marxista, seria a fonte de sua própria libertação. Convertida, Zasulich co-fundou a primeira organização marxista russa e começou a trabalhar na tradução das obras de Marx para o russo.

O jovem Lênin se juntou a Zasulich na década de 1890. Contudo, dada a repressão czarista, os marxistas russos enfrentaram uma dificuldade incrível para espalhar a boa nova à classe trabalhadora. Davis escreve que é por isso que “a imprensa clandestina desempenhou uma função ainda mais importante [na Rússia], com jornais passados de mão em mão ou lidos em voz alta quando não havia nenhum capataz ou espião por perto”.

A construção de um sistema de imprensa clandestina eficaz e interconectado nacionalmente, como predecessor de um partido marxista russo unido, é o foco do famoso livro de Lênin de 1902, O Que Fazer?. Para tornar esse sonho realidade, os ativistas corriam risco de prisão, de exílio siberiano ou até de morte transportando livros e jornais impressos no exterior para dentro do país até chegarem nas mãos e cabeças dos trabalhadores russos.

Longe de ser elitista, isso era pragmático. Sem acesso à cobertura de greves e protestos, bem como a debates marxistas internacionais sobre estratégia e tática, ativistas-operários seriam condenados a políticas regionalistas, estratégias ineficazes e provavelmente sucumbiriam à pressão das ideias enormemente mais prevalecentes das instituições políticas e culturais do governo ou dos reformadores da burguesia liberal.

As ideias marxistas se espalharam por toda parte e informaram a prática socialista. Em seu famoso livro Martelo e enxada: Comunistas no Alabama duriante a Grande Depressão, Robin D.G. Kelley, Robin D.G. Kelley descreve uma conversa com Lemon Johnson, um dos líderes negros de um sindicato de redeiros do Alabama liderado pelo Partido Comunista Americano. Quando Kelley perguntou como conseguiram conquistar algumas de suas demandas em uma greve de catadores de algodão de 1935, Johnson “mostrou uma cópia surrada de O Que Fazer? de Lênin e uma caixa de cartuchos de escopeta” e disse: “Foi assim que fizemos. Teoria e prática.”

Para todos os que se preocupam com o “elitismo” que seria ler a teoria marxista, acho que Lemon Johnson e Vera Zasulich, se ainda estivessem vivos, responderiam: você é tão arrogante que pensa que decifrou sozinho as complexidades do mundo capitalista e as estratégias adequadas para transformar tudo? E então, por serem organizadores que levavam a sério a comunicação eficaz das ideias socialistas, provavelmente tentariam transformar essa ideia em meme.

Sobre os autores

é membro do partido Socialistas Democráticos da América na Baía Leste da Califórnia.

Cierre

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Published in Análise, Livros and Política

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