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Foto: Rab Fyfe / Wikimedia

Torrada com avocado para todos

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Tradução
Lenna Nascimento

A recente tendência de reduzir a classe aos hábitos de consumo e ao gosto pela comida é cansativa e sem fundamento.

Talvez tenha começado com as “guerras do café”: toda a controvérsia forjada por comentários depreciativos sobre as escolhas de bebidas quentes pelos políticos britânicos. Um exemplo anterior desse gênero veio do oponente de Jeremy Corbyn pela liderança trabalhista em 2016:

Recebendo seu “café espumante” no café Prince, durante a passagem da campanha por Pontypridd, Owen Smith parou no meio da frase para expressar seu contentamento. “Vou te contar que é a primeira vez que recebo pequenos biscoitos e uma xícara elegante por aqui”, disse Smith, olhando para o proprietário David Gamberini, enquanto seu pedido era colocado sobre a mesa. “Sério, normalmente eu teria recebido uma caneca comum”, acrescentou o deputado, examinando as bebidas à sua frente.

Como deputado trabalhista, o leitor deveria supor, Smith deveria ser um homem do povo. Como tal, a idéia de que ele poderia ser um apreciador de cappuccino – e pior, de que o seu cappuccino poderia ser servido em uma xícara com um biscoito caramelizado repousando delicadamente no pires – era simplesmente inaceitável. Foi uma maldição para sua estratégia eleitoral.

O Prefeito da Grande Manchester, Andy Burnham, tuitou sarcasticamente sobre a idéia levantada pela extrema-direita de um “visto de barista” que permitiria a pessoas da União Européia trabalhar na indústria de serviços no pós-Brexit, ironizando : “Deus os livre de ter de esperar mais tempo de manhã pelo seu café metido”. Avançando para a Irlanda, Leo Varadkar respondeu às críticas a um orçamento que não agradava a ninguém, chamando seus opositores de “socialistas do cappuccino”, em lugar da velha zombaria sobre “socialista do champanhe”. O chá, portanto, seria a bebida da classe trabalhadora britânica, do sal da terra, apesar do café estar amplamente disponível e muitas vezes ser mais barato do que o chá nas cafeterias.

Para um país tão obcecado com classe, o Reino Unido é terrível em definir a experiência que engloba a maior parte das vidas das pessoas. A tendência recente de reduzir a classe ao gosto por comida e aos hábitos de consumo é especialmente cansativa.

Durante o governo conservador de David Cameron, o ex-chanceler George Osborne declarou no orçamento de 2012 que a “comida quente para viagem” seria taxada em 20%, o que foi rapidamente apelidado de “imposto do pastelzinho”, atingindo pastéis assados e enroladinhos de salsicha, mas não a maioria dos sanduíches. O deputado trabalhista John Mann argumentou que isso demonstrava o quanto o primeiro-ministro e o chanceler estavam distantes das massas, que comem salgados. “Muito pelo contrário”, David Cameron respondeu – ele até tinha comido um recentemente na estação de trem de Leeds.

O jornal The Sun  prontamente enviou um repórter para a estação de Leeds e descobriu que não havia comércios vendendo pastéis assados, tortas ou enroladinhos de salsicha por lá. Escândalo. A primeira linha da bancada do Partido Trabalhista viajou para uma padaria Greggs – a maior rede da Grã-Bretanha, famosa por vender enroladinhos de salsicha por kilo – para serem fotografados pelos paparazzi enquanto balançavam sacolas de guloseimas folheadas, reforçando suas credenciais da classe trabalhadora.

Quando Jeremy Corbyn anunciou que um acordo feito sob a liderança anterior seria cancelado e que o McDonald’s não patrocinaria um evento paralelo durante a conferência do Partido Trabalhista, as lamentações de jornalistas e políticos de classe média foi considerável. Muitos fizeram fila para tuitar que isso era uma afronta para com o trabalhador comum, que gostava de um Big Mac – de fato, uma afronta maior que o fato da empresa sistematicamente esmagar as tentativas dos trabalhadores de se sindicalizar e se recusar a lhes pagar um salário mínimo.

Classe” é uma coisa complexa; categorizar as pessoas por seus gostos e desgostos culinários é bem fácil. Lamentavelmente é também algo completamente sem sentido. Ainda assim, políticos e os meios de comunicação se apegam a isso como se apegam a qualquer símbolo fácil que satisfaça seus próprios preconceitos. Jeremy Corbyn, um ciclista vegetariano e abstêmio, reúne em uma única pessoa todos os símbolos culturais de “esquisitão” – ele evita carne vermelha! Não bebe uma lata de cerveja durante os jogos, mesmo torcendo para um time de futebol! Provavelmente ele cultiva alimentos “orgânicos”, que bizarro! Um hippie extremamente suspeito, para todos os efeitos e propósitos!

O líder trabalhista anterior, Ed Miliband, de ascendência judaica, embora não seja um judeu praticante, foi coagido a comer um sanduíche de bacon – o que foi usado na capa de um jornal como uma mensagem subliminar, pouco antes das eleições de 2015. Digite o nome de Ed Miliband no Google e “Ed Miliband Sanduíche” é um dos primeiros resultados. A mensagem era universal. Olhe para ele! Ele quer liderar o país, e não consegue nem comer um sanduíche, a comida do povo, sem parecer um alienígena. Como confiar nele sobre qualquer coisa?

Com isso em mente, uma pesquisa que poderia ter sido criada por um algoritmo caça-cliques infectou a consciência britânica no final de 2018. Quando convidado a comparar o partido trabalhista com um alimento, um participante do grupo pesquisado aparentemente escolheu “quinoa”: aquele grão do dia a dia do imaginário do que seria a esquerda de classe média. As manchetes lamentavam o fato de que o Partido Trabalhista, antes o partido do “bingo, tortas e do canecão de cerveja”, agora era o partido do “protesto estudantil e da cerveja artesanal”. Isso se encaixa perfeitamente na caricatura preferida pela imprensa e grandes setores da classe política: uma modificação redutora do que seria classe, que retira qualquer vínculo com a geografia, o status econômico e a estabilidade no trabalho.

Reduzir a classe a totens preguiçosos é uma atitude paternalista em ambas as direções. Apoiadores de Jeremy Corbyn são desconsiderados como sendo pessoas de classe média, “comedores de croissant“, “moradores de Islington” (mesmo esse distrito eleitoral de Jeremy Corbyn tendo uma das maiores taxas de pobreza infantil no Reino Unido) e “bebedores de café”, ignorando o fato de que o Reino Unido tem assistido os níveis de posse de casa própria despencando, a precariedade nos contratos de trabalho explodindo e os salários não só deixando de crescer, mas caindo. Da mesma forma, desconsiderar os mais pobres com uma visão estereotipada de um eleitor mais velho, do Norte da Inglaterra, dono de um cachorro whippet, vivendo apenas de chá, tortas e canecas de cerveja, é uma atitude condescendente com uma classe inteira e intrinsecamente a codifica como sendo masculina e exclusivamente branca, apesar da crescente diversidade da classe trabalhadora no Reino Unido.

Reconhecer a complexidade das classes exige reconhecer as placas tectônicas em movimento das dinâmicas sociais no Reino Unido – como a geografia afeta as chances na vida, com as maiores proporções de riqueza sendo sugadas para Londres, deixando muitas áreas economicamente desoladas. Como os imigrantes têm sido mantidos em empregos de baixo escalão e como o trabalho sazonal depende de um fluxo constante de trabalhadores europeus dispostos a trabalhar na agricultura e nas indústrias de serviços por baixos salários. Como as bases da estabilidade que antes eram marcos da vida da classe média britânica desmoronaram, com os aluguéis como uma proporção da renda média aumentando de maneira insustentável; como a educação universitária não garante um emprego bem pago e como mais pessoas do que nunca estão presas na “nova economia compartilhada”. Culturalmente, um número considerável de pessoas com menos de 50 anos pode ser classificada como sendo de classe média, mas sua segurança financeira é efêmera, e para milhões de pessoas um salário não recebido representa o risco de ser jogado na penúria.

Compreender as mudanças na forma como as classes operam no Reino Unido é uma chave para se entender o apelo e o sucesso do Corbynismo, durante os seus anos de força crescente: não surpreende que essa tendência de rejeitar seus partidários como jovens diletantes de classe média esteja associada a uma completa falta de curiosidade pelo fenômeno da ascensão da esquerda dentro do Partido Trabalhista. Enquanto o Novo Trabalhismo e o Thatcherismo antes dele colhiam votos ao impulsionar a crença de que o ganho individual era uma preocupação muito maior do que a sorte da sociedade em geral, o Corbynismo prosperou por alguns anos porque o neoliberalismo falhou com milhões, o sistema habitacional está drenando a maioria das pessoas para financiar a minoria minúscula de proprietários de terras, e os efeitos da austeridade deixaram comunidade após comunidade com os serviços públicos reduzidos até os ossos e a rede de segurança estatal simplesmente inexistente.

O mantra pró-austeridade do ex-chanceler George Osborne “estamos todos juntos nessa” foi agressivamente ridicularizado, pois era evidente como as elites endinheiradas que causaram a crise financeira global e que constituíam os altos escalões do Partido Conservador estavam claramente isentas daquele “aperto de cinto” fiscal. Mas o argumento dele acabou por ter uma centelha de verdade, já que a austeridade inevitavelmente afundou ainda mais a economia, e os eleitores sentiram que mais e mais de seus vizinhos, filhos e amigos estavam passando por dificuldades, precipitando o entusiasmo momentâneo pelo slogan do manifesto trabalhista de 2017: “Para os muitos, não para os poucos.”

O capitalismo ampliou o acesso a algumas atividades culturais e os hábitos de consumo hoje são menos símbolos de codificação de classe social, especialmente entre os mais jovens. Porém, igualmente, a mobilidade social estagnou. Uma das razões pelas quais as preocupações com a crise imobiliária no Reino Unido estão atingindo um ápice febril é que poucas pessoas escapam dela: os jovens de classe média não conseguem fugir de moradias alugadas de baixa qualidade e seus pais estão escavando suas décadas de poupança para a aposentadoria, refinanciando as hipotecas de suas casas, ou encontrando seus filhos morando na casa da família até bem adentro da idade adulta. A classe trabalhadora britânica tradicional está sendo esmagada da mesma maneira que foi sob os conservadores pré-Blair.

E ainda assim, para muitos políticos e comentaristas, classe seria apenas um conjunto de marcadores culturais singulares, e não uma parte da existência que representa vida ou morte, o sentimento que milhões têm de que estão sendo explorados por um sistema que não se preocupa com eles. Lamentavelmente, esse mesmo sentimento pode ser explorado para impulsionar a demagogia de Extrema-Direita, como demonstrado por todo o quiprocó em torno do Brexit e na eleição de uma figura como Boris Johnson para primeiro ministro. Enquanto a elite política continuar a zurrar sobre o consumo de café e ignorar o quanto a economia do Reino Unido é uma farsa, as pessoas deveriam relegá-la à desaparecer em sua irrelevância.

Sobre os autores

é escritora da equipe jacobina, colunista do The Guardian e autora do livro "Lean Out".

Cierre

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