Hoje perdemos um farol. Digo “perdemos” porque digo de nós, a esquerda, o mundo ou tão simplesmente, aqueles que lutam. Digo “farol” porque uma vez lançados ao mar escuro e revolto da dialética, é preciso pontos de referência para balizar decisões. Não há outra forma de fazer política, se o desejo é um mundo livre de todas as formas de exploração: acolher a verdade brutal de que o caminho normativo é impossível; de que não se pode domar as marés, mas compreendê-las, estudá-las, observá-las, organizar a ação para que se beneficie de seu ritmo. O mar, a maré, imagens da força indomável da natureza compreensível pela análise minuciosa, do inconsciente, do caráter negativo de toda existência em contradição. Assim os faróis, construtos imponentes, visíveis, techne/ars, estratégicos, nos oferecem a autonomia de decidir para onde remar em meio a tempestades, calmarias e outros estados de escuridão. Hoje perdemos um farol.
Assim se encerram lamentavelmente as contribuições em vida do camarada anarquista e antropólogo nova-iorquino David Graeber (12/02/1961 – 02/09/2020), em Veneza, em meio a um dos mais violentos estados de escuridão que atravessamos nas últimas décadas. Desempenhando com excelência mediações entre ciência e política, desde a publicação de seu primeiro livro em 2001 – Toward an Anthropological Theory of Value (“Para uma teoria antropológica do valor”, em tradução livre) – sua obra e sua atuação militante vêm inspirando e provocando novas sínteses tanto na antropologia quanto entre anarquistas, comunistas e socialistas.
Foi com o livro Dívida: os primeiros 5.000 anos (Três Estrelas, 2016) que o trabalho de Graeber se tornou mundialmente conhecido. No livro, ele estabelece as bases históricas, antropológicas e arqueológicas para um de seus argumentos centrais de pesquisa, o de que a narrativa tradicional das ciências econômicas e da economia política clássica para a invenção do dinheiro não passaria de uma narrativa, elaborada à imagem e à semelhança dos europeus que a cunharam. Em vez de escambo e elaboração de um equivalente geral de uma suposta complexificação de sistemas econômicos diversos, Graeber demonstra que no princípio, era a dívida. A dívida foi, na verdade, a primeira e mais disseminada forma de moeda entre as sociedades humanas, mediando transações e relações econômicas e outras relações sociais como os casamentos, amizades, relações de vizinhança, governo, punições etc.
Ao fazer essa análise em sua pesquisa em antropologia econômica, o autor propôs sínteses importantes conectando novas ferramentas e informações disponíveis no século XXI pelo acúmulo dos estudos antropológicos e econômicos dos dois séculos anteriores, com lacunas e insights dos estudos que tornaram todos esses avanços possíveis – como é o caso das análises de Karl Marx em O Capital. Dessa forma, é possível dizer que operou de fato uma superação em relação a vários pontos obscuros de teorias econômicas anteriores, inclusive algumas observações que a própria obra de Marx não teve tempo hábil para avançar.
Quando escrevi o posfácio à edição mais recente de A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Engels (Boitempo, 2019), apontei a importância de situar historicamente as ferramentas e métodos da antropologia com as quais o autor dialoga, compreendendo seus limites. Lembrei que um retorno do marxismo à antropologia como ela é hoje, e um retorno da antropologia ao marxismo atual, seriam movimentos epistemológicos bastante benéficos para compreendermos a complexidade de diversas questões prementes em nosso tempo para a esquerda em geral (mesmo fora do marxismo, mesmo fora da antropologia). Se o fiz, foi inspirada nas potentes leituras de Graeber, que deixo como sugestão às leitoras e leitores da Jacobin como forma de me despedir. Sua obra, afinal, continua a iluminar e orientar pontos obscuros da luta necessária no sentido comum do futuro ofuscante. Ao compartilharmos as ideias de Graeber neste mundo, reacendemos e mantemos um farol aceso.
Ao meu camarada David Graeber,em nome também de toda a equipe da revista Jacobin no Brasil, deixo meu mais sincero agradecimento pelos anos de luta e pelas inestimáveis contribuições intelectuais e de pesquisa.
Camarada Graeber, descanse na memória dos que lutam!
Sobre os autores
faz parte do conselho editorial da Jacobin Brasil. É doutora em educação e ciências sociais pela Unicamp, pesquisadora colaboradora no GEMID (Gênero, Mídia e Desigualdades na USP) e no Núcleo de Gênero, Feminismo e Psicanálise (Instituto Gerar de Psicanálise).
[…] morte de Graeber equivale, como escreve a Jacobin, a “perder um farol”? Não: este farol só se apaga se não permitirmos que sua luz de lucidez e de renovação fique […]