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Cena com jovens militantes no filme de Jean-Luc Godard, La Chinoise.

Descobrindo Xangai em Paris

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Tradução
Caue Seignemartin Ameni

Mao Tsé-Tung faleceu neste dia em 1976. Resgatamos a história do seu Pequeno Livro Vermelho, um best-seller mundial que uniu estudantes radicais com guerrilheiros do Terceiro Mundo.

Uma década após as revoltas em Paris, o jornalista e filósofo Régis Debray deu um veredicto fulminante sobre como o maoísmo havia afetado grande parte da extrema esquerda da França em maio de 1968. Em seu zombeteiro artigo intitulado “Modesta contribuição para os ritos e cerimônias do décimo aniversário”, Debray ridicularizou os radicais de 68 que haviam procurado no presidente Mao Tsé-Tung um socialismo anti-burocrático e emancipatório. Entretanto, o “grande timoneiro” foi certamente um guia inusitado para a rebelião desses militantes contra o conservadorismo francês.

Os “pró-chineses” de 68 destruíram a velha França e a velha esquerda apenas para chegarem ao liberalismo. Para Debray, essa rota contorcida para a modernidade capitalista parecia um viajante do passado cujos mapas da Índia o haviam levado às Américas: esses modernos Colombus pensavam “que estavam descobrindo a China em Paris, quando na verdade estavam pousando na Califórnia. Suas velas foram levadas pelo vento do oeste, mas eles estavam sendo guiando pelo Pequeno Livro Vermelho que dizia o contrário”.

Durante os movimentos de 1968, aquele livro de citações de Mao Tsé-Tung tinha de fato desfrutado de uma curiosa proeminência na extrema esquerda ocidental e nos movimentos anti-imperialistas e de resistência. Com mais de um bilhão de cópias impressas, suas 427 citações e aforismos foram uma bússola política para uma nova camada de militantes e, em sua onipresença, um ponto de referência simbólico que parecia abrigar um novo mundo.

Publicado em 2014, no quinquagésimo aniversário de sua primeira impressão, O Pequeno Livro Vermelho de Mao: Uma História Global (editado por Alexander C. Cook) examina em diversos textos o sucesso extraordinário de uma variedade de contextos nacionais. Incluindo não apenas o radicalismo de esquerda ocidental, mas as lutas anticoloniais, os países do Bloco Oriental e seus usos na República Popular da China, seus capítulos são uma visão fascinante do período de 68 e do imaginário em que o pensamento de Mao se enraizou.

Contradição

Isso talvez seja mais claramente ilustrado no capítulo de Julian Bourg sobre a influência francesa do Pequeno Livro Vermelho. O prestígio que o Partido Comunista Francês (PCF) havia construído durante a Resistência na Segunda Guerra Mundial já havia começado a declinar na década de 1960, especialmente para aqueles que apoiavam a revolução na Argélia. A China de Mao, que começou a se separar da União Soviética no final dos anos 1950, tornou-se um ponto de referência alternativo para aqueles que acusavam o PCF de conservadorismo.

O Pequeno Livro Vermelho, que apareceu pela primeira vez na França em 1966, apelou a uma sensibilidade leninista dura e ortodoxa, mas também ao chamado maoísmo “anti-hierárquico” (mais tarde, “espontaneista”) da esquerda proletária. Os estudantes em torno de Louis Althusser foram essenciais para a formação deste último tipo de maoísmo francês e, apesar de sua falta de destaque nas próprias revoltas de maio, depois de 1968 eles formaram uma das tendências dominantes da nova esquerda dissidente.

Essa sensibilidade, presente em várias organizações, foi um fenômeno intelectual, mas também se concentrou na organização de grupos como trabalhadores rurais, imigrantes e prisioneiros, relativamente marginais à própria concepção do PCF sobre a classe trabalhadora ou o povo francês. A veneração da juventude, renovação e “estudo” do Pequeno Livro Vermelho atraiu os jovens militantes no centro desta tendência, imortalizada no filme de Jean-Luc Godard, La Chinoise [A chinesa].

Enquanto a descrição de Godard para seus súditos como “Robinsons cuja sexta-feira é o marxismo” sugere uma imagem de viajantes rebeldes, Bourg aponta para um uso mais teorizado do trabalho de Mao. A chave foi o uso mais amplo da dialética de Mao por Althusser para atacar a ortodoxia comunista obsoleta. No entanto, é difícil evitar a conclusão de que o Pequeno Livro Vermelho é em si profundamente esquemático, não menos em sua pretensão de resumir e substituir os insights de todo o marxismo anterior.

Apesar de toda a depreciação do monolitismo soviético pelos maoístas, o livro é surpreendentemente chocante. Podemos até dizer que no Ocidente a evidente alienação cultural das citações era parte de seu brilho, a adoção de uma linguagem de um novo mundo. Sua elisão de nação e classe, e seus esforços para contrapor a “fé no povo” e os “revisionistas” e “cães correndo”, criaram um sistema binário simplista que podia ser aplicado à luta política em todo o mundo.

Denunciando vigorosamente o dogmatismo soviético em nome do próprio Mao, Elizabeth McGuire descreve um incidente de 1967 no mausoléu de Lenin, onde turistas chineses segurando cópias do livro começaram a cantar as citações, para espanto dos espectadores soviéticos, antes de supostamente provocar uma briga. Isso foi seguido por confrontos físicos na embaixada soviética em Pequim e na embaixada chinesa na Alemanha Oriental, onde o livro foi igualmente reprimido.

Durante a Revolução Cultural de 1966-1976, carregar o livro e ser capaz de citá-lo foi um desafio à ortodoxia soviética. No entanto, também foi um objeto de conflito de facções dentro da própria China. Com a morte de seu organizador, Lin Biao, em 1971, e do próprio Mao, em 1976, o livro caiu em descrédito.

No final da década de 1970, o Pequeno Livro Vermelho foi retirado das estantes de livros na República Popular, condenado como uma distorção do Pensamento de Mao Tsé-Tung. Com o refluxo dos movimentos estudantis que floresceram em 1968 e a reconciliação de Mao com Richard Nixon, seu apelo também havia desaparecido no Ocidente. Isso e a virada do mercado da China em 1978, foi um trauma psicológico para aqueles que haviam investido suas esperanças em um poderoso livro anti-sistêmico.

Anti-imperialismo

A teoria dos Três Mundos de Mao identificou a União Soviética como uma grande potência “social-imperialista” ao lado dos Estados Unidos como uma barreira para a revolução global. O “capitalismo de estado” da URSS após a morte de Stalin foi identificado com sua aceitação conservadora da coexistência pacífica com o Ocidente, com Moscou hesitante ou totalmente relutante em apoiar os movimentos anticoloniais da década de 1960.

Embora a União Soviética e os Partidos Comunistas aliados a ela tenham feito grandes avanços após a Segunda Guerra Mundial, após a morte de Stalin, seu avanço foi menos notável. O reconhecimento de Nikita Khrushchev dos crimes de seu predecessor, e a supressão da revolta húngara em 1956, minou a unidade e o idealismo do movimento comunista, e a Revolução Cubana de 1959 deixou claro que novos centros de prestígio revolucionário estavam em ascensão.

No imaginário maoísta, a China estava na vanguarda da revolta do Terceiro Mundo contra a ordem global do pós-guerra. Este foi um elemento do apelo do maoísmo entre a extrema esquerda europeia e a norte-americana, e em particular aqueles que olhavam para a Argélia e o Vietnã como evidência da possibilidade de derrubar as linhas divisórias estabelecidas da Guerra Fria. Para Lin Biao, o Pequeno Livro Vermelho foi uma “bomba atômica” capaz de explodir o velho mundo.

Tal descrição refletia tanto o orgulho chinês, na medida em que buscava alcançar tecnologicamente as potências mais estabelecidas, quanto o que poderia ser gentilmente chamado de uma ideia levemente desequilibrada de catástrofe produzindo redenção. No entanto, o comentário de Lin indicou apropriadamente o radicalismo político anticolonial de inspiração maoísta do período de 68, variando de guerrilhas anti-imperialistas na África, Ásia e América Latina até mesmo o coração do império.

Nos Estados Unidos, o Pequeno Livro Vermelho foi amplamente lido pelos militantes do Partido dos Panteras Negras e nos círculos anti-imperialistas. Huey Newton conhecia bem o trabalho anterior de Mao e, com Bobby Seale, promoveu a venda do livro como forma de financiar o partido. Sua mensagem de “servir ao povo” foi evidentemente refletida no próprio ativismo comunitário dos Panteras e, junto com gente como Frantz Fanon, serviu como contraponto a um cânone socialista eurocêntrico.

Bill Mullen ilustra claramente seu papel na visão dos Panteras: tanto um “projeto” de longo prazo quanto uma obra cujas verdades simples permitiam que fosse usado como um “cheque em branco”. Uma militante de Detroit, Grace Lee Boggs, criticou o transplante superficial de Mao pelos Panteras Negras da Costa Oeste para o contexto dos Estados Unidos. Ainda assim, ela combinou isso com um foco clássico maoísta na primazia do estudo, integrando o pensamento de Mao, Lenin e Amílcar Cabral em uma nova política anti-imperialista.

Para Mullen, o Pequeno Livro Vermelho era tanto “um símbolo para um sonho superdimensionado e itinerante – uma revolução bem-sucedida ao estilo chinês na América” e “um prisma para a irreconciliabilidade desse sonho com o imperialismo capitalista dos EUA”. No entanto, com o declínio da esquerda de 68 e com a virada capitalista da própria China, o maoísmo deixou sua marca de uma forma cultural distorcida, especialmente através da aplicação da “autocrítica” e “conscientização” maoísta nos movimentos mais radicais.

Marketing

Hoje, os slogans dos Panteras Negras são elogiados por exposições de arte kitsch, mas a força de sua mensagem foi entorpecida pelos fabricantes de pôsteres e camisetas. É claro que isso é parte de uma recuperação mais geral do mainstream de 68: a revolta contracultural que acabou sendo venerada como nada além de legal.

Embora qualquer caracterização de 68 deva explorar o silenciamento da politização mais aguda que moldou este período, podemos apontar uma contradição que já estava presente nos usos do Pequeno Livro Vermelho no final dos anos 1960. Ele usa a noção do livro como “emblema” para sugerir que, para muitos, o livro de Mao era mais um acessório de moda do que um texto a ser compreendido.

Isso é melhor resumido em uma anedota de 1968 em que a polícia de Freiburg tentou impor uma taxa de venda de livros, estudantes alemães rebeldes responderam oferecendo o livrinho vermelho de graça junto com um tomate custando dois marcos. Assim como o tomate, o livro era munição – para ser jogado.

Nesse sentido, o Pequeno Livro Vermelho ocupava uma posição incomum entre ser um artigo de fé sério e uma “provocação” irônica. Seus usos eram tão variados quanto generalizados, um único livro onipresente no qual os militantes projetavam todos os tipos de crenças. À medida que as velhas ortodoxias desmoronavam, o livro com a força de uma “bomba atômica” unia uma revolta transcontinental. No entanto, em última análise, as citações de Mao não forneceram um mapa fácil para um novo mundo no ocidente.

Sobre os autores

é historiador do comunismo francês e italiano. Ele está atualmente escrevendo um livro sobre a crise da democracia italiana no período pós-Guerra Fria.

Cierre

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Published in América do Norte, Análise, Antifascismo, Ásia, Cultura, Europa and Livros

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