Uma certa revolta contra o legado do iluminismo tem marcado a cultura acadêmica há pelo menos uma geração. Hoje é frequente na esquerda a crítica à tese do “iluminismo radical”, argumentando que aqueles que a promovem privilegiam a força das idéias na História acima das forças materiais. Acusam seus proponentes de elevar a filosofia escrita por homens da elite europeia acima dos sacrifícios feitos pelas pessoas comuns no curso da luta de massas.
Por exemplo, um artigo de Asad Haider na revista Viewpoint alega que a série de livros sobre o iluminismo radical, de Jonathan Israel, paradoxalmente rejeitaria a teoria por manter as ideias em tão alta conta. Como a maioria das críticas aos estudos de Israel, a intervenção de Asad Haider é o resultado de uma câmara de eco: ele recita resenhas de livros proeminentes, em vez dos próprios textos.
Na verdade, mesmo uma leitura superficial de Israel desmente esses truísmos. Como historiador intelectual, ele se concentra no papel que as ideias desempenham na História, mas também dedica páginas e mais páginas a tópicos como “mulheres, filosofia e sexualidade”, “liberdade sexual”, “censura e cultura”, “conspiração revolucionária”, “julgamentos criminais”, “colonialismo holandês na Ásia”, “o iluminismo no Japão”, “antifilosofia e a difusão de literatura radical”, “sociedades secretas”, “movimentos de libertação no exílio” e a “‘Revolução Geral’ como um processo global.”
Israel destaca tanto os efeitos das forças materiais quanto o poder das lutas vindas de baixo. É um argumento de espantalho caracterizar sua posição como se desse crédito a filósofos como Baruch Spinoza, ou mesmo os leitores de Spinoza, como os autores mais próximos da revolução. Em vez disso, Israel afirma que a filosofia de Spinoza expressava da maneira mais articulada as energias democráticas e radicalmente igualitárias da época.
Infelizmente, o elogio à tese do iluminismo radical muitas vezes também erra o ponto: celebra o trabalho de Israel por “problematizar” o iluminismo, “desestabilizar” o conceito ou revelar a pluralidade de tendências dentro do movimento intelectual. No entanto, a tese do iluminismo radical não apenas problematiza ou demonstra a complexidade desse período: ela analisa suas características essenciais. Ela vê o iluminismo como um projeto que luta por igualitarismo, secularismo e emancipação política.
Quando essas características essenciais são delineadas, podemos distinguir entre as tendências iluministas moderadas e as tendências radicais, reconhecendo que as últimas manifestam de forma mais consistente esses ideais.
No entanto, nossa recepção a essa tese implica uma política ainda mais radical do que a visão política do próprio Israel. Nossa abordagem foi antecipada em obras como Universal Emancipation: The Haitian Revolution and the Radical Enlightenment (“Emancipação Universal: A Revolução Haitiana e o Iluminismo Radical”), de Nick Nesbitt, em que o autor amplia os horizontes da tese de Israel para incorporar o jacobinismo europeu e não-europeu.
Também rastreamos o iluminismo radical até os nascentes movimentos socialistas na Europa do final do século XVIII. O julgamento de Gracchus Babeuf, seu testamento final e sua execução, um dos últimos episódios da Revolução Francesa, é especialmente revelador a esse respeito. Em sua defesa, Babeuf invoca não só Rousseau, mas também Mably, Helvetius e Diderot. Ele diz aos jurados que esses autores inspiraram seu socialismo revolucionário e o imperativo de derrubar uma sociedade baseada na propriedade privada. Como disse Babeuf, “foi por causa desses venenos filosóficos que me perdi”.
Materialismo real
Nossa ênfase nas idéias não significa que abandonamos o materialismo. No fim das contas, o próprio materialismo é uma ideia filosófica. Longe do empirismo ou do pragmatismo do “senso comum”, o materialismo implica em um universo inteligível, exige leis naturais uniformes e relações de causa e efeito previsíveis; não deixa espaço para a intervenção divina, a espontaneidade das vontades ou o mal radical. As conquistas metafísicas de Spinoza, há muito lutadas, nos permitem ser materialistas. Alguns podem desejar “jogar fora a escada filosófica”, mas essa atitude não é intelectualmente sofisticada – é superficial.
Os grandes conflitos da história, os motores do conflito de classes, são todos materiais. A tensão entre os modos como produzimos e as relações de produção subjaz as mudança históricas, incluindo as mudanças revolucionárias. No entanto, as descrições empíricas da economia não podem nos dizer de que lado das barricadas devemos ficar.
Em momentos revolucionários, as ideias em nossas cabeças importam. Como o filósofo pessimista Arthur Schopenhauer, você pode emprestar seus óculos de ópera aos soldados prussianos para que eles possam atirar em trabalhadores rebeldes na Revolução de 1848; ou, como Friedrich Engels, você pode se juntar às fileiras desses mesmos levantes democráticos e reabastecê-los com cartuchos de rifle.
Alguns auto-intitulados materialistas podem argumentar que as forças econômicas determinariam sozinhas as lealdades de classe, mas essa posição não representa um genuíno materialismo, muito menos descreve a História com precisão.
O capitalismo consolida setores cada vez maiores da humanidade em dois grandes campos opostos, o proletariado e a burguesia. A auto-emancipação da classe trabalhadora continua sendo o elemento central da derrubada do capitalismo. Mas se a posição social sozinha determinasse de que lado você fica na guerra de classes, então nenhum membro das classes média ou alta poderia apoiar de maneira autêntica a luta dos trabalhadores. Isso incluiria Marx, Rosa Luxemburgo e Lênin, entre outros.
A opressão dos trabalhadores não tem nada de misterioso ou inescrutável. Tampouco sua vitória final será puramente específica à sua condição: o triunfo da classe trabalhadora será a emancipação da própria sociedade de classes. Um economicismo crasso, que imagina a identidade do trabalhador como algo permanente, interpreta erroneamente essa luta como trágica, infinita, um trabalho de Sísifo. Daí a tendência de evitar as contribuições daqueles sem um pedigree da classe trabalhadora, como se as idéias de Engels fossem automaticamente envenenadas pelo tamanho de sua conta bancária.
As ideias devem ser julgadas pelo seu mérito revolucionário e não pelo sua origem. Negar isso é um mero tribalismo.
O universal e o específico
Mesmo se admitirmos que as condições econômicas de fato decidiriam o lugar de uma pessoa na luta, isso não significa que a consciência revolucionária emerge apenas da posição de classe. Salários em queda, pobreza e desemprego alienaram milhões, os afastando do sistema e de suas ortodoxias neoliberais, mas o descontentamento não produz uma resposta política única.
Para isso, ainda precisamos das ideias certas. A insatisfação por si só poderia produzir um protesto socialista ou um pogrom racista. Certamente importa se alguém decide participar de um partido internacionalista dos trabalhadores ou se ela se identifica apenas com a “classe trabalhadora branca”.
Os líderes autoproclamados da extrema direita têm explorado pressões econômicas reais a serviço de sua ideologia. Eles inflam estatísticas duvidosas sobre crimes, e surfam na islamofobia e baboseiras racistas e sexistas em geral, canalizando o sofrimento real que as políticas neoliberais criaram durante os últimos trinta anos.
As pessoas seduzidas pela extrema direita vivenciam essa guerra econômica, mas compreendem essa luta em termos raciais ou civilizacionais. Assim, elas não conseguem perceber seu interesse comum com os oprimidos de outras raças e nacionalidades. Simplesmente responder à pressão econômica obviamente não é o bastante; precisamos compreender essas pressões.
Contra a extrema direita, como podemos afirmar que a luta de classes é mais fundamental do que o pertencimento a uma determinada comunidade racial ou étnica? Como podemos argumentar que todos deveriam se preocupar com a exploração e o sofrimento daqueles que possuem diferentes origens culturais? Promovendo aquela premissa que os ideólogos racistas e xenófobos rejeitam com mais veemência: uma natureza humana em comum.
É claro que postular uma natureza humana compartilhada também não vai garantir a luta política. Gritar alegremente que “estamos todos juntos nessa” não vai estabelecer paz e harmonia entre todos os povos. Oferecer um refrigerante para um policial não vai abolir o racismo. Na melhor das hipóteses, essa maneira de pensar pertence ao socialismo utópico do século XIX; na pior, ela reforça o liberalismo consumista da atualidade.
A esquerda precisa reconhecer nossa humanidade comum e realizar uma análise meticulosa sobre as contradições históricas das sociedades opressivas. Ao reconhecermos os impulsos invariáveis compartilhados por todos os seres humanos – impulsos pelo bem-estar físico, por educação e por comunidade – podemos medir o progresso relativo da sociedade no atendimento dessas demandas. Ao mesmo tempo, ao compreendermos as contradições existentes e os movimentos históricos atuais, podemos traçar uma rota em direção a um maior florescimento humano.
Precisamos determinar cuidadosamente a relação entre a natureza humana – aquilo que Marx chamava de “ser-espécie” – e seu desenvolvimento no tempo e no espaço. Assim, a natureza humana não é elevada a algum ideal celestial que nunca poderia ser alcançado em mundo material decaído. Em vez disso, por natureza humana, queremos dizer todas as capacidades reais e ainda latentes da espécie humana. Precisamos criar as condições sociais onde essas capacidades latentes possam ser realizadas.
Com esses critérios, podemos distinguir aqueles movimentos que encarnam o progresso e os interesses universais daqueles que não o fazem. Temos, então, uma base fixa e universal para apoiarmos o nacionalismo de alguns movimentos anti-imperialistas ao mesmo tempo em que condenamos o nacionalismo de plataformas anti-imigrantes. Podemos nos solidarizar com os protestos do movimento Black Lives Matter ao mesmo tempo em que nos posicionamos contra as marchas de supremacistas brancos.
Uma sucessão de lutas específicas promoverá os interesses da humanidade, e devemos apoiá-las com base nisso. Devemos lutar para erradicar o racismo, o sexismo, a homofobia e a transfobia. A esquerda não pode ver esses locais de conflito de maneira cínica – como meros instrumentos para a luta de classes – mas reconhecer o papel que desempenham na construção da consciência de classe. Ao demonstrar como as diversas formas de opressão têm uma raiz comum no capitalismo, essas lutas reforçam o fato de que a abolição do capitalismo é a condição necessária para a superação dessas formas de injustiça.
Por um iluminismo dialético
Ao negar o dualismo entre pensamento e matéria, e ao afirmar uma identidade humana alicerçada em um universo inteligível, devemos retornar a Spinoza. Seu sistema é o que traça de maneira mais nítida as conexões entre pensamento e ação, teoria e prática. As ideias de um iluminismo radical desse filósofo não foram nenhum milagre europeu; pelo contrário, o racionalismo de Spinoza argumenta que as idéias mais importantes são universais e, portanto, inatas aos seres humanos em todo o mundo.
Precisamente por causa daquilo que afirmamos em Spinoza, vemos sua recepção francesa no século XX com ceticismo. Pensadores como Deleuze e Althusser rejeitam amplamente o racionalismo, monismo e determinismo de Spinoza, reduzindo sua substância a um redemoinho de forças anárquicas, seja nos nômades de Deleuze ou no materialismo aleatório de Althusser. Essas leituras realizam uma espécie de “abuso de substâncias“, substituindo a metafísica objetiva de Spinoza por um jogo de forças nietzschiano.
No entanto, uma outra tradição de um spinozismo-marxista não cai nessa armadilha. Começando com Joseph Dietzgen e Georgi Plekhanov e continuando com os spinozistas soviéticos, A. M. Deborin e Evald Ilyenkov, esses autores tratam Spinoza como um pensador dialético antes desse termo ser usado. Eles participam da tradição dos hegelianos de esquerda como Heine, Feuerbach e Hess, que saudaram Spinoza como o verdadeiro padrinho do idealismo alemão. Como tal, não rejeitaram o humanismo de Spinoza em nome de um anti-humanismo inspirado em Heidegger. Em vez disso, procuraram afirmar a força e a dignidade humanas por meio de uma compreensão do mundo material.
Aceitar ou rejeitar a tese do iluminismo radical não é, como colocou Michel Foucault, uma questão de “chantagem” intelectual. Como o projeto possui um conteúdo filosófico específico, concordar com ele não é uma questão de gosto, mas de cosmovisão. Não é como escolher entre diferentes sabores de sorvete, quando se pode responder inocentemente “morango” ou “baunilha”. Em vez disso, representa opções genuínas. Tomar uma decisão sobre elas não é opcional.
Insistir que as pessoas decidem – e que existe sim uma resposta certa – não é uma chantagem. Ou aceitamos um universo inteligível ou o rejeitamos; ou afirmamos uma humanidade comum ou a negamos; ou vemos a revolução social como necessária ou permanecemos cegos para esse fato.
A esquerda atual tende a evitar respostas filosóficas tão definidas, satisfeita em “problematizar” sem nunca chegar a uma conclusão. Geralmente, os pensadores fazem isso sob o pretexto de uma falsa humildade. Eles substituem compromisso teórico por um pluralismo teórico, representando o primeiro como pura arrogância.
E, no entanto, eles parecem não ter tal aversão a insistir em um programa político definido, como se uma política coerente pudesse ser imaculadamente concebida por meio da própria luta, sem a mediação de idéias. Essa posição é claramente autodestrutiva e limita o conhecimento teórico para abrir espaço para a fé política – em última análise, manchando ambas.
Nós não temos todas as respostas, mas reafirmamos o imperativo de encontrá-las. Nosso projeto precisa superar o ceticismo sobre o iluminismo por meio de um iluminismo dialético, que não apenas critique os valores do “secularismo, republicanismo, direitos, liberdades e igualdade”, mas que mostre como o capitalismo é incapaz de cumpri-los.
Para materializar os ideais das seções mais radicais da burguesia, incluindo os ideais do próprio Spinoza, a sociedade burguesa precisa ser superada. Essa é a essência do iluminismo dialético.
[…] e dos materialistas franceses até as revoluções francesa e haitiana, até Hegel e Marx, temos uma linha de pensamento que parte de um mundo inteligível para chegar na plena emancipação da humanidade. Devemos […]