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Josefa Peiro, 80 anos, segura um retrato de seu pai, José Peiro, em 29 de agosto de 2018 em Tavernes, Espanha. José Peiro foi executado em Paterna em 30 de novembro de 1939. De acordo com as autoridades locais, mais de 2.000 corpos de vítimas do regime de Franco foram enterrados neste cemitério após terem sido brutalmente assassinados entre 1939 e 1956, após o fim da Guerra Civil Espanhola. (David Ramos / Getty Images).

Nova Lei da Memória finalmente reconhecerá as vítimas da ditadura de Franco

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Tradução
Aline Klein

Mesmo após a transição da Espanha para a democracia no final dos anos 1970, o sistema político manteve um silêncio ensurdecedor sobre o histórico da ditadura franquista. Mas um projeto de lei apresentado pelo governo de esquerda insiste na necessidade de reconhecer os crimes do ditador - e identificar as cerca de 112.000 pessoas que jazem em sepulturas não identificadas em toda a Espanha.

UMA ENTREVISTA DE

Eoghan Gilmartin

“Reconhecemos aqueles que estão sem identificação nas valas comuns e o enorme sofrimento que esta situação, que não se encaixa em uma democracia, causou.” Afirmou a vice-primeira-ministra da Espanha, Carmen Calvo, depois que a coalizão Socialista-Unidas Podemos aprovou um novo projeto de lei que busca uma reparação histórica para as vítimas do ditador fascista Francisco Franco.

A Lei da Memória Democrática – agora praticamente aprovada pelo parlamento – fará com que o Estado assuma a responsabilidade legal pela identificação das cerca de 112 mil vítimas do franquismo enterradas em sepulturas não identificadas por toda a Espanha. Ele também irá converter o Vale dos Caídos – antigo mausoléu do ditador, e hoje uma basílica católica – em um cemitério civil, e proibirá a exaltação pública do tirano.

No final da Guerra Civil Espanhola (1936-39), cerca de 150.000 republicanos foram mortos no terror franquista, outros 20.000 prisioneiros foram executados imediatamente após a vitória dos nacionalistas. Ainda que a reconstrução da democracia espanhola tenha se dado na década de 1970  através do “pacto de esquecimento” e a anistia bipartidária, foi apenas no início dos anos 2000, com a proliferação de grupos de militância pela memória histórica, que cresceu no país o ímpeto de enfrentar este capítulo sombrio de sua história.

Porém, a resposta institucional até agora tem sido aquém até mesmo das normas internacionais básicas de justiça e transição. Uma lei de memória histórica de 2007, aprovada pelo então primeiro-ministro José Luis Rodríguez Zapatero e seu governo socialista, foi duramente criticada pelo relator por não reconhecer os direitos das vítimas.

Segundo o autor e presidente dos Arquivos da Brigada Abraham Lincoln, Sebastiaan Faber, a nova lei representa uma ruptura com o consenso oficial sobre o passado recente da Espanha, perpetuado por décadas pelo establishment político pós-Franco. Em conversa com a Jacobin, Faber  argumenta que o grau em que esta nova lei pode se traduzir em avanços concretos para as famílias das vítimas dependerá da pressão contínua de ativistas e militantes.

EG

Qual é a importância desta nova lei de memória histórica para a Espanha?

SF

É a prova de como, desde 2007, a atenção da opinião pública mudou para um novo tipo de senso comum em torno da memória histórica. Na virada do século, a transição democrática da Espanha (1975-81) foi vista predominantemente como um momento de reconciliação que garantia que o país pudesse se concentrar em seu futuro e abandonar seu passado. Em 2007, graças ao trabalho de diferentes associações pela memória histórica, começa a mudar a percepção para a ideia de que, embora bem-sucedida, a transição foi um processo inacabado e que restava muito trabalho a ser feito. Nos últimos anos, com a maior cobertura da mídia sobre o tema em veículos como La Sexta, CTXT, El Diario e até El País, a opinião pública teve uma nova inflexão e agora reconhece que a lei de 2007 não foi longe o suficiente para trazer o país para mais perto das normas internacionais.

A introdução do atual projeto de lei faz um bom trabalho admitindo as tarefas pendentes. Reconhece a autoridade das Nações Unidas e a necessidade de a Espanha colocar em prática vários tratados internacionais já assinados. Acordos que abordam a responsabilidade do Estado nas valas comuns, o direito dos cidadãos à verdade e à justiça histórica, bem como a necessidade de prestar homenagem às vítimas de Franco. O projeto também abarca explicitamente as categorias e práticas empregadas pela ONU em torno da memória histórica – falar dos “desaparecidos”, por exemplo. Essa foi uma linguagem que se desenvolveu, em grande parte, a partir da experiência das nações do Cone Sul nos anos 1980, por muitos anos rejeitada pelo Partido Socialista [PSOE] como não aplicável ao contexto espanhol.

Ao mesmo tempo, em sua apresentação atual, o texto do projeto ainda é impreciso e não está claro como algumas das reformas propostas serão traduzidas em medidas concretas. Por exemplo, sempre que a lei menciona a noção de reparação, ela deixa de especificar as reparações monetárias e, portanto, sugere que estamos falando apenas de alguma forma de recompensa simbólica. Quando você pensa sobre o impacto duradouro que as formas de repressão franquista tiveram sobre a organização econômica do país, as reparações simbólicas não vão longe o suficiente. A vice premiê Carmen Calvo deu a entender que poderia haver alguma forma de reparação monetária para aqueles que sofreram trabalho escravo, mas que isso envolveria contribuições voluntárias das empresas que dele se beneficiaram.

Existem ambiguidades semelhantes quando o projeto de lei discorre sobre o ensino da Guerra Civil nas escolas. Carmen Calvo insistiu que os jovens devem “aprender de onde viemos” e isso será positivo. Mas como exatamente essa mudança no currículo será implementada? A educação é uma competência regional – portanto, sua implementação estará nas mãos das administrações regionais autônomas, muitas das quais são governadas por coalizões de direita.

Em última análise, o sucesso da lei dependerá de como essas reformas serão detalhadas nas negociações parlamentares e, em seguida, implementadas, contando com o apoio crucial de diferentes grupos da sociedade civil. Já assistimos, no caso da coalizão pela garantia da renda mínima, como a legislação pode desmoronar em sua fase de implementação e, portanto, a preocupação é que isso não se repita com esta nova lei.

EG

Uma das questões em torno da implementação é o desafio da criação de um programa que dê conta da escala e da complexidade necessária para recuperação dos restos mortais de cerca de 112.000 pessoas desaparecidas.

SF

Sim, uma das razões do porquê a campanha pela memória histórica ter sido um movimento descentralizado e de amplo apelo popular é que mesmo esses números ainda não foram comprovados. Não há censo oficial sobre o número de desaparecidos e, portanto, o número aceito é aproximadamente 112.000. Uma das coisas que sabemos, no entanto, é que muitas dessas valas comuns não existem mais – porque foram escavadas clandestinamente ou porque rodovias, parques industriais e novos bairros foram construídos sobre elas. Com o desenvolvimento do país nos últimos 80 anos, não está claro até que ponto todos elas são recuperáveis.

Outra questão importante é a necessidade de aprofundar o debate em torno do modelo de financiamento do programa. A Associação para a Recuperação da Memória Histórica (ARHM) afirma que boicotará as verbas para as exumações anunciadas pelo governo porque seguem o mesmo modelo da lei de 2007 – terceiriza o processo de recuperação para organizações da sociedade civil. Se o Estado está reconhecendo sua responsabilidade legal pela recuperação dos desaparecidos, a ARHM acredita que deve atender prioritariamente os familiares, pois, apenas o Estado pode conceder a eles a condição formal de vítimas. Isso apareceu no parecer do relator da ONU, Pablo de Greiff, que criticou a Espanha por dar continuidade a lei de 2007 que terceirizou o processo de recuperação e levou à indiferença institucional.

As críticas da ARHM são importantes porque, em última instância, é seu papel tentar pressionar o governo o máximo possível, junto de outros grupos da sociedade civil, e garantir que sejam realizados os debates necessários – seja sobre a questão das reparações ou sobre a recuperação dos restos mortais das vítimas.

EG

Um outro aspecto do projeto de lei que está recebendo muita atenção é a proposta do Supremo Tribunal Federal de nomear um investigador especial para os abusos dos direitos humanos durante a ditadura franquista. Você acredita que terá um funcionamento como uma espécie de Comissão de Verdade?

SF

Bem, revogar a lei de anistia de 1978 é uma das coisas que a ONU recomendou que a Espanha implementasse, e é onde essa lei mais obviamente falha em seguir suas recomendações. O PSOE não estava disposto a colocar essa questão em jogo. Mas se a lei da anistia não permite que as pessoas sejam julgadas e condenadas por abusos dos direitos humanos durante a ditadura franquista, ela nada diz sobre as investigações. Como o modelo no Cone Sul mostrou, você pode ter uma investigação completa e revelar a verdade sem convicções. A Comissão da Verdade na África do Sul após o apartheid foi semelhante.

Nesse sentido, a ideia de uma investigação especial poderia trazer um excelente resultado – não apenas em torno de questões de transparência e de abertura de arquivos, bem como em termos de coordenação de diferentes investigações.

EG

A memória histórica se tornou um campo de batalha nas novas guerras culturais da Espanha. Mas, indiscutivelmente, a direita teve um sucesso relativo em aproveitar a questão em seu favor: se o partido de extrema direita Vox for capaz de ganhar força em torno da questão e mobilizar sua base contra o suposto desejo de vingança da esquerda, o conservador Partido Popular (PP ) terá um problema maior, na medida em que é um partido do governo com amplo alcance. Como você mencionou anteriormente, ocorreu uma mudança no senso comum da sociedade espanhola sobre essa questão. Como você espera que a direita espanhola reaja a esta nova lei?

SF

Ao contrário da questão da independência catalã, a polarização em torno da questões da memória não é eficaz para a direita. Do ponto de vista da esquerda, é uma forma útil de provar suas credenciais progressistas, em particular para o PSOE. Já para o PP o ganho eleitoral obtido com a reivindicação dessa questão seria muito pequeno. Até o líder linha dura do PP, Pablo Casado, que escandalizou quando politizou a pandemia em um grau nunca visto em outros países europeus, admite isso. Grande parte da direita espanhola só quer que o franquismo vá embora. É um legado embaraçoso para o PP, ainda mais agora que a maioria dos mais abnegados nostálgicos migrou para o Vox.

Em certo sentido, a ideia de que essa lei envolve uma normalização para atender os padrões europeus, e que, portanto, a Espanha estaria alinhada com países como França e Alemanha, é um poderoso motor político por detrás. Em particular o PP e Pablo Casado querem reposicionar o partido como uma força dominante europeia e moderna, então existe uma possível influência pressionando o PP para se abster na votação da nova lei, ou talvez até votar a favor.

O Vox votará obviamente contra junto da extrema direita que tenta controlar a lei, para se apresentarem como mártires em uma cruzada contra a esquerda. Isso pode ser visto quando apresentamos a proposta de banir a Fundação Francisco Franco e eles reagiram afirmando que sua liberdade de expressão estaria sendo cerceada. A ironia de tal declaração vinda da Fundação Franco parece ignorar sua própria essência.

Tenho me perguntado até que ponto esse tipo de medida legal pode se tornar contraproducente, reafirmando a visão que parte da direita espanhola tem de si mesma, de se tratar de um agrupamento político combalido, incompreendido e reprimido. Em um contexto de polarização política, o modelo alemão em torno da memória histórica de banir as organizações e de proibir totalmente expressões e símbolos de exaltação fascista poderia simplesmente contribuir para que o Vox explorasse esse mesmo ressentimento. Já conhecemos como foi a reação a políticas desse tipo: a Alternative für Deutschland (AfD) na Alemanha dizendo às pessoas que elas não precisam ter vergonha de sua história.

A história recente da Espanha acerca de limitações na liberdade de expressão pode abrir um precedente perigoso. Vox já vem perguntando se a exaltação de Franco for proibida, porque então a reivindicação do comunismo também deveria ser ilegal.

EG

É muito comum falar da excepcionalidade da Espanha com sua memória histórica. Mas você tem se distanciado um pouco dessa ideia de que a experiência espanhola representa uma anomalia na Europa.

SF

Historicamente falando, a Espanha é anômala em relação ao norte da Europa no sentido de que teve uma ditadura fascista ou semifascista até meados da década de 1970. Mas isso não é tão radicalmente diferente das experiências da Grécia ou de Portugal.

O norte da Europa tem o antifascismo em seu DNA constitucional, ao contrário da Espanha. E isso significa que certas posições totalmente inaceitáveis no norte da Europa são toleradas na Espanha. Por exemplo, é uma posição comum na Espanha assumir uma posição equidistante nos dois lados da Guerra Civil. Como meus amigos historiadores sempre dizem, por que Richard Evans não precisa se desculpar constantemente por ser um historiador pró-Aliado da Segunda Guerra Mundial, mas Paul Preston tem que se defender por ser um historiador pré-republicano da Guerra Civil Espanhola?

Simultaneamente, os desafios que a Espanha enfrenta não são muito diferentes dos que muitos outros países enfrentam. A Itália tem uma relação muito conturbada com seu próprio passado fascista, e mesmo os desafios técnicos das reparações não são tão diferentes daqueles que os Estados Unidos enfrentam em torno da escravidão. Como lidar com transferências ilegítimas de riqueza que aconteceram há três gerações?

EG

Você é o presidente dos Arquivos da Brigada Lincoln e editor online do jornal The Volunteer. Como você compararia a maneira como a Guerra Civil Espanhola é lembrada nos Estados Unidos e na própria Espanha?

SF

Como evento, a Guerra Civil Espanhola foi um capítulo importante em distintas memórias coletivas. Mas essas memórias se desenvolveram quase que de maneira independente umas das outras ao longo de um período de 80 anos. A forma como a Guerra Civil Espanhola é lembrada pela esquerda norte-americana, pela esquerda holandesa ou pela esquerda da Alemanha Oriental tem muito pouco a ver uma com a outra e menos ainda com a realidade que se desenvolveu na Espanha.

Se analisarmos a forma como a Guerra Civil Espanhola sobreviveu na narrativa da esquerda norte-americana e como ela é lembrada na Espanha, a tentação seria dizer que a esquerda dos EUA há muito comprou uma versão idealizada e romantizada do que foi a guerra. E, claramente, há um grau de verdade nisso. Mas quando pensamos sobre isso, a memória que sobrevive nos EUA, de que este foi um capítulo significativo na luta contra o fascismo, e que a derrota republicana teve consequências desastrosas para esta luta internacional, é de fato, mais historicamente precisa do que a narrativa doméstica espanhola, que até recentemente enquadrou a guerra como uma tragédia nacional que colocou irmão contra irmão e da qual é preciso seguir em frente o mais rápido possível. A narrativa dominante na Espanha foi fortemente moldada por quarenta anos de franquismo e, em seguida, pelas necessidades políticas da transição. Isso sem dúvida deixou uma história ainda menos verdadeira do que a versão idealizada que temos nos EUA.

Outro fator crítico que determinou essas narrativas tanto na Espanha quanto internacionalmente foi a Guerra Fria, quer você esteja falando dos veteranos de Lincoln com o FBI em seus calcanhares ou dos Veteranos das Brigadas Internacionais subindo na hierarquia da Stasi na Alemanha Oriental. Assistimos ao exilo de anarquistas espanhóis, membros do Poum recrutados pela CIA e tornando-se frios e virulentos combatentes anticomunistas. Ou o exemplo de Homenagem à Catalunha, de George Orwell, que entre 1938 e 1950 vendeu apenas 600 cópias de sua tiragem inicial de 1.500 e que quando a Guerra Fria decolou nos anos 1950 tornou-se um best-seller, oferecendo uma narrativa romântica e anticomunista.

Ao final, com todas essas distintas comunidades de memória ao redor do mundo, não é fácil dizer qual delas é historicamente mais precisa. É muito mais interessante perguntar que impacto essas narrativas ainda têm hoje em dia e como são mobilizadas.

Sobre os autores

é presidente dos Arquivos da Brigada Abraham Lincoln.

é escritor, tradutor e colaborador jacobino com sede em Madri.

Cierre

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Published in Antifascismo, Ditaduras, Entrevista, Europa, Golpes de estado, Legislação, Militarismo and Política

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