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Guilherme Boulos, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em comício em São Paulo em 18 de novembro de 2020 (Crédito: AFP)

Boulos já venceu politicamente – agora ele só precisa virar nas urnas

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O líder dos sem-teto e candidato do PSOL, Guilherme Boulos, é a prova de que uma plataforma radical de esquerda consegue superar o neoliberalismo e materializar a frente ampla antifascista, unindo movimentos sociais, Lula, Ciro Gomes, Marina Silva e Flávio Dino no mesmo palanque para derrotar a nova direita.

Para a surpresa de muitos, Guilherme Boulos, chegou ao segundo turno da eleição municipal de São Paulo, a maior cidade do continente americano. Filiado ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Boulos, um jovem de apenas 38 anos, disputa a prefeitura ao lado de Luiza Erundina, a veterana socialista que nos anos 1980 foi a primeira mulher a governar a principal capital do país.

Numa campanha com poucos recursos, tempo de TV e uma legislação eleitoral que desfavorece os pequenos partidos, Boulos deixou para trás Celso Russomanno, candidato de Jair Bolsonaro, movendo a eleição para a esquerda —  o que, inclusive, significou deixar para trás o Partido dos Trabalhadores (PT) que, no entanto, agora lhe apoia. 

Agora, no segundo turno, Boulos conseguiu o impossível: realizar, na prática, a tão sonhada frente ampla, colocando no mesmo palanque Lula, Ciro Gomes, Marina Silva e Flávio Dino. Os significados dessa vitória são muitos. Desde provar que a esquerda, com uma plataforma radical, pode sim superar a poderosa extrema-direita nas redes sociais e nas ruas, quanto que é possível superar a dicotomia entre lulistas e antilulistas no interior da esquerda brasileira. 

A campanha de Boulos, independentemente de conseguir virar o jogo no segundo turno, já é vitoriosa e um caso de sucesso global. Ela já deslocou as placas tectônicas da nossa política e colocou as alternativas estratégicas, técnicas e ideológicas que podem, sem exagero, determinar os rumos da esquerda brasileira pelos próximos anos.

Uma estrela ascendente

Com menos de 40 anos, Boulos se tornou conhecido em todo Brasil em 2003, quando o Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) ocupou um enorme terreno abandonado da Volkswagen na icônica cidade de São Bernardo do Campo, berço político do ex-presidente Lula, onde mora e escreveu seu nome na história, sobretudo quando liderou as grandes greves que derrotaram a Ditadura Militar.

Aquele gesto ousado e até provocativo em relação ao recém-eleito Lula, enquanto os trabalhadores brasileiros estavam felizes e cheios de esperança com o presidente operário, lançou Boulos a uma posição de destaque em um setor, até aquele momento quase insignificante: a oposição de esquerda ao governo do PT.

Poucos anos depois, com o racha dos chamados “radicais do PT”, que foram expulsos do partido de Lula e formaram o PSOL, a crescente crítica dos movimentos sociais ao governo Lula, entre outros fatores, deram um novo significado ao iconoclasta gesto de Boulos, que além de assentar as famílias, buscava denunciar o gravíssimo problema de déficit habitacional brasileiro – faltam nada menos que 7,7 milhões de residências para que a população encontre não apenas condições decentes de vida, mas tenham acesso ao que é considerado direito humano à habitação.

Mesmo com os avanços dos anos do PT no governo, como Boulos sempre apontou, milhões de brasileiros, equivalentes a 15% da população, não têm onde morar, vivendo nas ruas ou em áreas precárias e irregulares das grandes cidades. Essa demanda sempre foi a força de Boulos, que comandou inúmeras ocupações de imóveis abandonados, mas que não eram destinados à moradia pelo poder público.

Boulos tomou outra dimensão, contudo, durante as manifestações que levaram milhões de brasileiros às ruas do país entre 2013-2014, quando o MTST já estava fortalecido e estruturado, e passa a ser um dos poucos movimentos sociais a conseguir mobilizar as pessoas e, também, a enfrentar os movimentos de extrema-direita que começaram a emergir naquele momento.

Nem lulista, nem antilulista

Até pela necessidade de construir ou fortalecer suas organizações, e se diferenciar do PT, a esquerda radical brasileira se afirmou fazendo críticas muito duras e uma oposição quase sistemática ao governo Lula. Enquanto isso, outras organizações, continuaram a operar sob um regime de obediência igualmente muito rígido ao então partido governista.

Boulos, no entanto, seguiu um caminho bastante singular, sem se submeter nem ao antilulismo ou ao lulismo. Isso fica claro com as manifestações de 2013-2014, quando Dilma Rousseff se via acossada por todos os lados e a direita tradicional já preparava para tirá-la do poder a qualquer custo — inclusive com uma aliança com a extrema direita e os militares.

O MTST de Boulos saiu às ruas a todo momento para protestar contra os movimentos golpistas que miravam Dilma e, por conseguinte, a classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, o movimento fazia isso forçando que o governo tomasse medidas à esquerda para, assim, repactuar sua relação com a classe trabalhadora e os movimentos sociais.

Quando Lula foi preso em 2018 em um complô liderado pelo ex-juiz e ex-ministro da Justiça do governo bolsonaro, Sergio Moro, Boulos e o MTST foram figuras centrais contra a prisão e, em seguida, pelo movimento de liberdade de Lula, o que lhe garantiu a simpatia de muitos militantes do PT.

A própria campanha presidencial de Boulos em 2018 foi, sobretudo, um modo dele se fazer conhecido, mas também de se cacifar junto a esquerda, uma vez que ele colocou sua candidatura como uma linha de suporte a um PT atacado por todos os lados.

Por sinal, foi o MTST que ocupou o apartamento que Lula supostamente teria recebido como propina em troca de realizar o que o então juiz Moro definiu, vejamos, como “atos indeterminados”. Lula jamais viveu no apartamento ou usou isso esporadicamente. A  ação do MTST comprovou que nem o apartamento era luxuoso, nem as supostas reformas que teriam sido requeridas pelo ex-presidentes teriam existido, desmentindo mais ainda a narrativa persecutória tocada pelos tribunais.

Portanto, depois de décadas de enfrentamento entre o PT e a esquerda radical,  que não se resolveu com o governo Bolsonaro, e a necessidade de alinhamento estratégico para a sobrevivência mútua, Boulos se mostrou uma figura além e acima disso. O que pode ter sido central nessas eleições e é a principal razão de sua liderança, deixando uma importante lição estratégica.

As eleições de 2020

Na esteira da crise permanente da presidência de Bolsonaro, seus movimentos claramente golpistas em 2020 e a pandemia global de Covid-19, o quadro político brasileiro se tornou absolutamente incerto. Em São Paulo, onde Bolsonaro teve uma enorme votação nas eleições presidenciais de 2018, uma gigantesca onda de decepção com o presidente tomou lugar do que era um orgulhoso e massivo antiesquerdismo, sobretudo nos bairros mais ricos.

Historicamente à direita nas eleições nacionais, São Paulo sempre se viu dividida nas eleições municipais entre uma direita populista e a esquerda hegemonizada pelo PT. Ainda que votando diferente do Brasil, São Paulo produz novas lideranças e forças, gerando novas tendências.

Em 2016, Fernando Haddad (PT), ainda que tenha perdido a reeleição para João Dória (PSDB) conseguiu substituir Lula em 2018 e, ao final, ser o segundo colocado nas eleições presidenciais de 2018, mesmo com a escandalosa campanha de fake news realizada pelo Whatsapp contra o PT. 

Com a desistência de Haddad em disputar a prefeitura de São Paulo em 2020, a escolha de Jilmar Tatto para a prefeitura foi marcada, não sem razão, por críticas da militância e de apoiadores históricos do PT e de Lula. Evidentemente, Tatto entrou para manter o aparato e reeleger a própria bancada de vereadores — e foi exitoso na sua tarefa, mas grande parte da esquerda não estava mais disposta a se condicionar à estratégia petista.

Em virtude da insatisfação de militantes históricos, intelectuais e artistas ligados ao PT com a escolha de Tatto, a exemplo do ex-ministro de relações exteriores de Lula, Celso Amorim, e o icônico cantor e escritor Chico Buarque, os horizontes se abriram para o PSOL.

A boa comunicação nas redes, compensando o pouco espaço na televisão que a nossa legislação prevê para pequenos partidos, foi clara, firme e descontraída, cacifando Boulos a ser a surpresa da disputa. Depois de um verdadeiro duelo e troca de acusações contra o bolsonarista Russomanno, Boulos cresceu nas duas últimas semanas da eleição e conseguiu sua vaga no segundo turno.

No resultado do dia 15 de novembro, o PSOL dobrou sua votação para a Câmara Municipal, embora tenha ficado atrás ainda do PT, que teve uma pequena queda de votos, mas ainda tem a maior quantidade de vereadores em um cenário de grande fragmentação parlamentar. O que impressiona é o amplo arco de apoios que Boulos juntou em torno de si, fazendo um incrível mosaico antifascista em seu programa eleitoral.

Boulos mostrou que com paciência, respeito e anti-sectarismo é possível seguirmos adiante e, finalmente, virarmos uma página dolorosa, confusa e controversa da história da esquerda brasileira. 

Sem a extrema direita no páreo, com o inspirador ânimo de Luiza Erundina como vice, que aos 85 anos está firme e forte na campanha, além de milhares de militantes, Boulos disputa mais do que uma prefeitura, mas o imaginário de que não apenas derrotar Bolsonaro é possível como, ainda, que não é necessário que a esquerda brasileira apoie os neoliberais “normais” para conseguir. Nesse sentido, ele já conseguiu a vitória que a esquerda precisava, agora ele só precisa virar nas urnas.

Sobre os autores

é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).

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Published in América do Sul, Análise, Cidades and Eleições

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