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(John Moore/Getty Images)

Entre a agressão imperialista e o assédio da burocracia

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Tradução
Cauê Seignemartin Ameni

No domingo passado, aconteceram as eleições no Parlamento venezuelano onde a oposição detinha maioria e articulava um governo paralelo em conluio com potências estrangeiras. A crise econômica resultante do bloqueio é profunda, mas o povo continua determinado a defender a revolução bolivariana. No entanto, enfrenta alguns obstáculos dentro e fora do governo.

No último domingo, o povo venezuelano foi às urnas na eleição da Assembleia Nacional para eleger novos parlamentares que assumirão seus mandatos a partir de 5 de janeiro de 2021, de acordo com o que estabelece a Constituição da República Bolivariana da Venezuela (CRBV).

Com 98% das urnas apuradas, de acordo com Conselho Nacional Eleitoral (CNE), a coalizão chavista do Grande Polo Patriótico obteve 4,2 milhões de votos, representando 68,4% dos votos válidos. A ala de atuação de Juan Guaidó boicotou as eleições e a coalizão opositora participante, Aliança Democrática, ficou em segundo lugar com 1.095 milhões de votos, somando 17,52%. Assim, o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) retomou a maioria no parlamento depois de cinco anos de controle da oposição.

A Assembleia Nacional é de crucial importância para os destinos políticos do país, uma vez que se tornou o foco da agressão imperialista após a derrota do chavismo nas eleições parlamentares de 2015 (a segunda em 24 processos eleitorais ocorridos desde 1998). O triunfo do partido Mesa da Unidade Democrática (MUD), com 56% dos votos válidos – 26% de abstenção -, permitiu à oposição o domínio de dois terços do parlamento.

Apesar de ocorrerem no prazo estabelecido pela CRBV, os chavistas chegaram a um acordo com um setor da oposição a partir das negociações realizadas na Noruega, que incluíram a renovação das autoridades do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), incorporando membros da oposição, aumentando o número de deputados (de 167 para 277) e o número de deputados por lista (de 22% para 52%), estabelecendo a centralidade dos deputados nacionais.

As negociações na Noruega feitas naquela época, apesar de terem avançado em vários pontos, não chegaram a uma conclusão. Os Estados Unidos ordenaram que a oposição se retirasse, já que a renúncia de Nicolás Maduro à presidência não estava incluída como condição para o acordo. No entanto, os avanços daquela reunião tornaram-se a base do atual acordo.

A ameaça imperialista

Os quatro principais partidos da oposição, alinhados com os Estados Unidos, decidiram ignorar o apelo do processo eleitoral. Juan Guaidó, nomeado pelos Estados Unidos em janeiro de 2019 como “presidente em exercício” por não reconhecer o governo de Maduro, decidiu prorrogar o mandato dos deputados da Assembleia Nacional eleitos em 2015, embora nada disso esteja na Constituição.

Portanto, as eleições, mesmo antes de acontecerem, eram recusadas pelos Estados Unidos, a comunidade Europeia e os governos do Grupo de Lima, auxiliares no discurso imperialista.

Para os opositores do chavismo – mesmo alguns que se dizem de esquerda – a ameaça imperialista é uma questão secundária, sem importância. Mesmo após o fracasso da suposta ajuda humanitária da Colômbia em fevereiro do ano passado, a tentativa de golpe em abril e a incursão mercenária em maio deste ano, a oposição se dividiu e as pesquisas da própria direita mostravam Guaidó com 85% de rejeição.

É verdade que a ameaça imperialista tem servido para silenciar as críticas da população às políticas do governo (ou à falta delas). Mas isso não torna a ameaça imperialista menos real.

Existem fatos que não podem ser negligenciados. Os partidos de oposição e vários de seus membros são abertamente financiados pelo National Endowment for Democracy (NED). Dois dos principais partidos, Primero Justicia y Voluntad Popular (de onde vem Guaidó), foram criados diretamente pelo Instituto Republicano Internacional (IRI), o braço internacional do Partido Republicano e da CIA.

O problema não é se o governo Guaidó é apenas um escritório no leste de Caracas e não tem capacidade operacional ou apoio dentro do país. O problema são cinco anos de domínio da oposição da Assembleia Nacional, onde aprovaram leis para privatizar a indústria do petróleo, do ferro e do alumínio; reverter as desapropriações de empresas e terras ocupadas; revogar a Lei Orgânica do Trabalho, bem como a Lei de Terras e Desenvolvimento Agrário; eliminar a proibição da venda privada das 3 milhões de moradias outorgadas pelo Estado por meio da Missão Habitacional.

A Assembleia Nacional aprovou, mesmo com o voto dos partidos de direita que participam das eleições, a Lei de Reconstrução da Venezuela, que permite a intervenção direta do FMI e do Departamento de Estado para alcançar a estabilidade política e econômica.

Portanto, não se trata apenas da ameaça do governo dos Estados Unidos que convivemos nos últimos 18 anos, nem da existência de um fantoche que pensa ser presidente (o que parece ser até folclórico), nem da ameaça de um golpe de direita que se tornou habitual na América Latina. Trata-se de um plano de governo concreto, aprovado pelos partidos da oposição, com o apoio do imperialismo norte-americano e da UE, para os quais estas leis têm estatuto jurídico. Esse plano não foi aplicado por inteiro no país porque não conseguiram derrubar o governo de Maduro graças à resistência de um povo que, apesar das difíceis circunstâncias internas e do descontentamento com o governo, defendeu com unhas e dentes as conquistas da revolução de 2002 que derrotou o golpe da burguesia e do imperialismo.

O prévio desconhecimento do processo eleitoral parlamentar significa a ratificação do programa imperialista, que nada mais é do que o esmagamento do movimento de massas e a sujeição da Venezuela como colônia que teve em 120 anos de exploração petroleira.

É no âmbito legal do “governo Guaidó” que as empresas no exterior pertencentes ao Estado venezuelano foram ocupadas e vendidas. Os recursos e o ouro depositados em bancos no exterior foram bloqueados e as propriedades imobiliárias do Estado venezuelano como embaixadas, consulados e etc. foram concedidas para a atuação da oposição no exterior.

Não é qualquer coisa e não é uma questão secundária. Enfrentar a intervenção imperialista é a bandeira principal de qualquer revolucionário, independentemente das divergências com o governo Maduro, que é justamente criticado por sua inconsequência na guerra contra o imperialismo. E não se trata apenas de ter um discurso antiimperialista. O que é necessário é um programa com medidas concretas contra o imperialismo nos campos econômico, político e militar.

Hoje os tambores da guerra ressoam novamente. Para o imperialismo, permitir que ocorra um processo eleitoral parlamentar é uma faca de dois gumes: se há abstenção é baixa, o governo paralelo é questionado, se é alta, é possível questionar o bloqueio e o próprio boicote da ala de Guaidó. 

Por mais maleáveis ​​que sejam as tendências eleitorais nos Estados Unidos, um golpe de mídia com intervenção militar na Venezuela nunca está totalmente fora de questão, desde que não gere complicações. 

Nesse sentido, destacaram as declarações do Presidente da Colômbia, Iván Duque, quando acusou a Venezuela de comprar armas iranianas e de ser a capital do narcotráfico. Por ser o presidente de um país com 9 bases militares norte-americanas e onde se processam 80% das drogas consumidas no norte, pode soar como uma piada. Mas, como o Bolsonaro no Brasil, eles são porta-vozes do Departamento de Estado e suas bravatas nunca são apenas retóricas. É por isso que a luta contra a intervenção imperialista foi uma constante durante a campanha eleitoral.

Uma oposição de esquerda

A incapacidade do governo de enfrentar as consequências da guerra econômica, a impunidade da ação terrorista da oposição a serviço dos Estados Unidos, a crescente corrupção no governo e a aplicação de políticas neoliberais para administrar a restrição orçamentária produzida pelo bloqueio e o favorecimento de setores da burguesia interna têm gerado cada vez mais críticas nas bases do chavismo.

É um processo crescente que, nos últimos anos, e em várias ocasiões, foi interrompido pela necessidade de enfrentar as agressões imperialistas. O ponto culminante foi em novembro de 2018, quando uma mobilização camponesa, em uma marcha admirável, percorreu mais de 400 quilômetros para chegar em Caracas e, apesar de todos os obstáculos que lhe foram impostos, realizou uma assembleia no Palácio de Miraflores com a presença do Presidente Maduro, conforme solicitado.

Nessa assembleia, as lideranças camponesas exigiram mudanças no governo e nas políticas para o campo, que têm favorecido a burguesia agrária em detrimento dos pequenos produtores e das terras expropriadas dos latifúndios e ocupadas pelos camponeses. Infelizmente, um mês depois, os Estados Unidos proclamaram o governo Guaidó e toda a atividade política se concentrou na defesa contra a ameaça da intervenção.

Mas as eleições parlamentares têm servido para que, mais uma vez, as questões contra o governo se expressem, fundamentalmente na política econômica interna, mas também nas demais decisões. Trata-se de críticas da base, mesmo em meio à guerra econômica e ao bloqueio que os Estados Unidos mantêm contra o país.

Dezenas de organizações de base, como sindicatos, grupos camponeses e conselhos comunais têm levantado suas vozes contra a política econômica, exigindo o aprofundamento da revolução. À medida que o processo eleitoral avança, vêm convergindo a crítica de trabalhadores, camponeses e deputados de bairro na Assembleia Nacional, contestando as listas controladas pela burocracia governamental (formada por pessoas escolhidas a dedo) e propondo listas de candidatos revolucionários alternativos. Esse descontentamento levou à formação da Assembleia Popular Revolucionária (APR), entre setores dissidentes do PSUV e outros partidos do Polo Patriótico.

É um processo significativo por três razões. Em primeiro lugar, todos esses grupos levantam como sua primeira bandeira a luta contra a agressão imperialista, a guerra econômica e o bloqueio, exigindo do governo políticas para derrotar os inimigos internos que favorecem a intervenção.

Em segundo lugar, há uma oposição de esquerda ao governo de Maduro, e esta é a primeira vez que isso acontece. Até agora, todos os grupos que questionaram o chavismo se colocaram em uma posição centrista, proclamando o slogan “nem Maduro nem Guaidó” e, na dinâmica, acabaram atuando em uma frente unida com organizações que militam pela intervenção e pelo golpe, chegando até a se encontrar com o governo Guaidó (colocando-o no mesmo nível de Maduro).

Enfim, não se trata de organizações políticas marginais à realidade, mas de organizações de base que surgiram e se construíram em meio ao processo revolucionário e desempenharam um papel indiscutível na defesa da revolução e contra a agressão imperialista – muitas delas são militantes comuns do PSUV.

O governo e a burocracia do PSUV vêm atacando a formação dessa alternativa de vanguarda revolucionária que questiona as políticas econômicas que são neoliberais no governo. Com manobras burocráticas, a possibilidade de apresentação de alternativas foi prejudicada e até mesmo a intervenção judicial foi feita na luta interna das facções do partido Pátria para Todos (PPT) contra a facção que, justamente, se propunha formar correntes alternativas na base. Alguns líderes da base têm sido perseguidos e intimidados e uma campanha está sendo desenvolvida acusando-os de dividir a revolução ameaçada pelo imperialismo.

O boicote do governo impediu a APR original de se apresentar. No final, vários dos candidatos da APR, facções da oposição de Tupamaros e PPT, aderiram ao Partido Comunista Venezuelano (PCV), que se retirou do Polo Patriótico, para apresentar uma lista alternativa nas eleições parlamentares.

Nem todos os setores da oposição interna do chavismo aderiram a esta aliança. Primeiro, pelo histórico de traições do PCV (fazia parte do último governo antes de Chávez) e por ser um aparato burocrático sem nenhum trabalho de base significativo. E, em segundo lugar, porque para muitos deles, dividir o chavismo é uma fraqueza em meio à agressão imperialista.

Porém, os que aderiram à aliança com o PCV fazem isso porque é a única possibilidade de participação (não houve possibilidade de registro de outra organização), e, embora continuem a se considerar chavistas e a enfrentar as agressões imperialistas, consideram que a política do governo abandonou a construção do socialismo e favorece a direita.

A aliança APR-PCV tornou-se uma referência para muitos setores da vanguarda que questionam a política do governo em meio à agressão imperialista, o que tem levado a burocracia governamental a fechar os espaços da mídia pública. Têm havido vários debates públicos e entrevistas onde participam candidatos da direita, mas os candidatos APR-PCV não são convidados.

Para a maioria da base chavista, a participação nestas eleições é uma forma de derrotar a agressão imperialista, por isso vão votar no PSUV. Apesar das críticas e questionamentos internos do governo, a formação da APR com lideranças de base de reconhecida trajetória dentro do chavismo, teve um impacto na vanguarda da revolução bolivariana.

É claro que um processo eleitoral ameaçado pela ignorância internacional exige que a população se mobilize em massa para derrotar, com grande influência eleitoral, a campanha imperialista contra o processo eleitoral parlamentar, que busca manter vivo o governo paralelo.

Mas nesta luta contra o imperialismo, o principal obstáculo é o próprio governo. Há descontentamento porque o governo não faz nada para conter a inflação interna e a especulação da burguesia comercial com a produção de alimentos e necessidades básicas.

Sempre que, com apoio internacional (principalmente do Irã), o bloqueio internacional é rompido, muitos produtos acabam no mercado clandestino devido à corrupção governamental. A restrição salarial imposta no setor público obrigou milhares de trabalhadores a migrar para o setor privado ou informal para garantir sua subsistência. Esse descontentamento conspira contra a participação massiva da população nas eleições.

Os únicos que podem quebrar a desmoralização e o descontentamento e conseguir a mobilização da população são os dirigentes populares das comunidades, os trabalhadores e os camponeses, como se demonstrou todas as vezes que o imperialismo acreditou que a desastrosa situação econômica interna o favorecia e ele encontrou um povo disposto a defender sua revolução apesar da fome, miséria e irritação com o governo.

Mas as lideranças de base, os verdadeiros dirigentes da revolução, foram excluídos do processo eleitoral, assim como foram excluídos das decisões econômicas, reduzindo cada vez mais a discussão política entre as bases.

A burocracia governamental conspira contra a democracia revolucionária construída em anos de luta. As decisões são impostas de cima, ignorando os mecanismos de participação do próprio governo. Não é a pandemia que impede a democracia de base, é a burocracia. Por isso, neste último processo eleitoral, eles se expressaram de forma alternativa à uniformidade que o PSUV quer impor.

E essa é a contradição fundamental da burocracia hoje. Se você quer uma participação massiva da população para derrotar o imperialismo, você deve retornar à democracia de base, às assembléias comunais, camponesas e operárias, aos candidatos que representam a luta diária pela revolução, como foi feito nas eleições da Assembleia Nacional Constituinte quando a oposição contra-revolucionária foi derrotada.

Hoje devemos derrotar o imperialismo novamente. Só o povo, com a mais ampla democracia, poderá derrotar o imperialismo e, paralelamente, limpar a corrupção e a burocracia governamental para nos colocar no caminho da construção do socialismo revolucionário.

O povo exige uma mudança na política econômica, uma luta determinada e firme contra a especulação e a corrupção, um plano de recuperação econômica contra a guerra e o bloqueio, o aprofundamento da democracia popular e a construção do socialismo. Sem democracia não há revolução e sem a ação revolucionária do povo não seremos capazes de derrotar a agressão imperialista.

Sobre os autores

é fundador do PST venezuelano, autor do livro "La insurrección de febrero" sobre o Caracazo e assessor trabalhista externo da chancelaria venezuelana.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Eleições, Imperialismo and Política

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