No Natal passado, ganhei o jogo de tabuleiro Anti-Banco Imobiliário. O que um amigo havia imaginado ser uma paródia anticapitalista do Banco Imobiliário acabou sendo um jogo voltado à “livre iniciativa”, que tenta ensinar aos jogadores as virtudes das leis antitruste e da concorrência de livre mercado.
O jogo era horrível. As peças e o dinheiro eram de péssima qualidade, o livro de regras era uma bagunça e as regras do jogo o tornavam essencialmente impossível de jogar (leva horas para levar alguém à falência). Muito parecido com o original, o Anti-Banco Imobiliário é uma fraude cara e parecia uma forma que alguém arranjou para ganhar dinheiro rápido. Na tentativa de transmitir os benefícios da competição de livre-mercado, o jogo apenas nos lembrou das decepções que ela nos traz.
Devemos, de fato, nos preocupar com até que ponto as gigantes tecnológicas dominam nossas vidas, monopolizando setores de atividade inteiros. O problema é que os críticos anti-monopolistas das Big Tech – autores que vão desde Zephyr Teachout até Shoshana Zuboff – costumam confiar na ideia implícita de que por trás do monopolista mau e do capitalismo de vigilância existiria um capitalismo saudável e produtivo ao qual poderíamos retornar. Esse mito de um mercado descentralizado e em perfeito funcionamento, de pequenas e médias empresas em competição saudável – buscando lucro, mas não buscando maximizar o lucro – está no cerne das recentes investigações antimonopólio sobre Facebook, Google e Amazon. Mas os processos antitruste só nos levarão até certo ponto.
Plataformas como Google e Facebook são serviços públicos que estão rapidamente se tornando essenciais para se viver em nossas sociedades hiperconectadas. Precisamos de uma reorientação fundamental das estruturas de propriedade e governança das plataformas, para que sejam dirigidas para o povo e não para o lucro. É importante que essa onda de questionamento ao poder dessas gigantes durante os últimos cinco anos não seja completamente reformulada apenas como uma questão de comportamento de monopólio anticompetitivo, em vez de uma questão de capitalismo habilitado pela tecnologia em sua predação.
O processo antitruste
O tão esperado fim da lua de mel do debate público com as gigantes tecnológicas finalmente chegou. Em 9 de dezembro, a Comissão Federal de Comércio (FTC, na sigla em inglês – Federal Trade Commission) e os procuradores estaduais dos EUA entraram com ações antitruste contra o Facebook, buscando forçar a revenda de serviços como Instagram e WhatsApp. Os planos cuidadosamente elaborados por Mark Zuckerberg para dominar as redes sociais podem estar em perigo.
Ainda não está claro qual a probabilidade do processo da FTC obter sucesso. Por um lado, algumas de suas evidências são bastante interessantes. Eles possuem declarações explícitas de Zuckerberg e de outros executivos seniores do Facebook sobre suas tentativas de acabar com a concorrência. Por outro lado, essa lei não tem sido usada com sucesso desde a década de 1980 e, como Mike Isaac e Cecilia Kang argumentaram, os tribunais são cautelosos quanto a desfazer fusões por meio da oferta de soluções de separação.
A FTC também argumentou que – como um simples serviço de mensagens – o WhatsApp não compete com o Facebook, mas ao adquiri-lo, o Facebook se envolveu em um comportamento anticompetitivo. Isso levanta algumas questões espinhosas e parece deixar implícito que o Whatsapp teria competido com o Facebook, não fosse pela aquisição – um argumento difícil de se provar. O processo pode acabar sendo como um cachorro que só late e não morde.
No entanto, o fato de este processo ter sido aberto – com outros a caminho – sinaliza um consenso bipartidário nos EUA de que é preciso fazer algo, o que representa um passo na direção certa. Se for bem-sucedido, isso claramente prejudicaria o domínio do Facebook desse espaço e abriria a possibilidade de surgirem concorrentes ao longo da década. Espera-se que esse processo também abrirá o caminho para outras ações regulatórias destinadas a restringir o poder das empresas de tecnologia.
Os limites do processo
No entanto, correndo o risco de apontar o óbvio, o processo não visa realmente dividir o Facebook, apenas reverter suas aquisições recentes. Quando a AT&T foi desmembrada em 1984, a empresa foi dividida em negócios separados, apelidados de Baby Bells, que continuaram a fornecer serviços de telefonia.
Ninguém se beneficiaria com sete bebês Facebook. Isso prejudicaria as vantagens que os efeitos de rede trazem para a plataforma: quanto mais usuários, dados e receita ela tem, melhor se torna o serviço. Também seria uma chatice não poder mais entrar em contato com seus pais porque eles estavam no Facebook do meio-oeste e não no Facebook do Litoral.
Essa resposta impulsionada pelo mercado de tentar restaurar a concorrência no setor tecnológico não tem muito efeito no combate aos problemas subjacentes de vigilância, exploração e manipulação. Mesmo se esses conglomerados pudessem ser divididos em suas empresas individuais, eles ainda seriam plataformas gigantescas de administração privada por fundadores-déspotas tecnológicos, principalmente para o benefício dos poucos acionistas das empresas.
A lei antitruste também não aborda as muitas outras preocupações legítimas que as pessoas têm sobre a plataforma, desde interferência eleitoral até desinformação e dependência de mídia social. Não podemos deixar de simpatizar com o ex-CEO do Google, Eric Schmidt, sobre como a lei antitruste é, na verdade, um “instrumento muito cego”.
Há uma hipótese nos argumentos do processo – com base nas pesquisas de Dina Srinivasan – de que à medida que a concorrência do Facebook diminui, também diminui sua proteção da privacidade do consumidor. Existem algumas evidências para apoiar esta afirmação, mas esse argumento subestima até que ponto a coleta de dados do consumidor é todo o foco do aspecto lucrativo da empresa.
O modelo de publicidade de empresas como Facebook e Google conta com a extração de dados valiosos em troca de um serviço gratuito no ponto de uso. Sem seu conhecimento intrincado das preferências do consumidor e uma alegação semi plausível de ser capaz de influenciar seu comportamento, não há negócio. Quaisquer concorrentes do Facebook acabariam por adotar um modelo semelhante, e a competição os levaria a maximizar o nível de informações extraídas. Previsões anteriores de que um cenário competitivo de mídia social capacitaria os consumidores – por exemplo, construindo a “economia de compartilhamento” – se mostraram extremamente imprecisas.
Plataformas como serviços públicos
Um elemento importante do discurso antitruste sobre as Big Tech é o entendimento implícito das grandes empresas como aquilo que a campanha de Elizabeth Warren à presidência dos EUA chamava de “utilitários de plataforma”. Isso articula uma compreensão das empresas como prestadoras de um serviço público essencial ao nosso dia a dia, exigindo um novo modelo de regulação e controle. Porém, as tentativas de responsabilizar essas empresas por meio da supervisão do governo não conseguem conter adequadamente seu poder.
Quanto maior o poder e o papel público de certas plataformas digitais, maior a necessidade não apenas de regulamentá-las como serviços públicos, mas de trazer o serviço que oferecem de volta à propriedade pública e ao controle democrático. Precisamos construir plataformas abertas e inclusivas e fornecer mecanismos para que as pessoas participem delas e decidam como estarão organizadas.
A propriedade pública não é uma panaceia para todos os nossos problemas, mas nos permite afirmar nosso poder democrático coletivo contra o domínio privado das elites econômicas. Os utilitários de plataforma de propriedade comunitária não seriam movidos pelos mesmos incentivos para maximizar os lucros e operar principalmente no interesse de seus investidores de capital de risco. Eles seriam mais capazes de resolver uma série de problemas na plataforma, desde informações incorretas até preocupações com privacidade, que são causados principalmente pelo desejo dos proprietários da plataforma de minimizar sua própria responsabilidade e maximizar a quantidade de tempo que os indivíduos passam na plataforma.
Os utilitários de plataforma permitiriam que todo o potencial da tecnologia fosse liberado para o público. Essa transferência de riqueza e poder das empresas de tecnologia da classe bilionária para o público reverteria a lógica de privatização que permeou o crescimento da tecnologia nas últimas décadas. As plataformas devem ser reaproveitadas, para que forneçam serviços gratuitos no ponto de uso, em vez de extrair riqueza das comunidades que às quais pretendem servir.
Para além da estatização
Uma grande preocupação é que a propriedade pública de plataformas digitais colocaria grandes quantidades de dados pessoais nas mãos do governo, o que ameaçaria as liberdades individuais. Queremos mesmo substituir Mark Zuckerberg e Jeff Bezos por Joe Biden e Jair Bolsonaro? Isso não proporcionaria apenas aos governos – instituições bem conhecidas por seu histórico de vigilância, violência e discriminação – acesso às nossas informações e atividades mais pessoais?
Os apelos pela democratização da economia de plataformas não precisam envolver um modelo excessivamente centralizado de socialismo de Estado do século XX. Atualmente, existem várias empresas de serviços públicos de propriedade pública, como a Scottish Water, que são operadas por organizações estatutárias independentes que, no entanto, prestam contas ao público por meio do governo. Também podemos recorrer a novas formas de propriedade democrática e pública que podem ser dispersas nos níveis municipal, regional, nacional e internacional.
Podemos imaginar certas plataformas pertencendo e sendo administradas por cooperativas de plataformas locais e autoridades municipais. Entrega de comida, carona, serviços domésticos e aluguéis de curto prazo podem se enquadrar nesta categoria. Essas cooperativas de plataforma seriam insuficientes por si só e precisariam ser acompanhadas por infraestrutura pública de larga escala e investimentos pelos governos municipais, regionais e nacionais.
O projeto DECODE (Descentralized Citizens-Owned Data Ecosystem – Ecossistema de Dados Descentralizado de Propriedade Cidadã), uma série de estudos-piloto em Barcelona e Amsterdam entre 2017 e 2019, oferece um novo caminho para serviços digitais administrados por municípios. Em um dos projetos-piloto, a Câmara Municipal de Barcelona deu aos moradores da cidade sensores para colocar em seus bairros, que foram integrados à rede de sensores da cidade que coleta dados sobre qualidade do ar, uso de energia e poluição sonora. Uma base de dados distribuída chamada Chainspace permitia o compartilhamento anônimo de dados para criar valor público a partir de um bem comum de dados (ou “data commons”), permitindo que os cidadãos decidissem quais dados gostariam de compartilhar e com quem.
Quando atingimos o nível de serviços globais, como mecanismos de busca na Internet e sites de redes sociais, enfrentamos um desafio sem precedentes, porque o valor do serviço deriva de seu caráter global. Colocar a cooperativa de conserto de bicicletas da comunidade local no comando de um Facebook público simplesmente não funcionaria, nem redes sociais nacionais administradas pelo Estado, como as propostas pelo Centro Australiano para Tecnologias Responsáveis e pelo think tank britânico Common Wealth (“Riqueza Comum”). Sem uma base internacional de usuários, essas redes sociais não seriam alternativas viáveis às opções existentes.
Serviços digitais universais
Uma alternativa seria o lançamento de uma plataforma pública global organizada democraticamente e que fornecesse ferramentas digitais para todo o mundo. Uma Organização Global de Serviços Digitais (GDSO) tem sido discutida, seja como uma organização totalmente independente, ou como uma agência especializada trabalhando com as Nações Unidas, nos moldes da Organização Internacional do Trabalho e da União Internacional de Telecomunicações.
O objetivo da GDSO seria melhorar o acesso das pessoas às ferramentas de comunicação digital, fornecendo serviços digitais essenciais para as pessoas se conectarem online. Deve começar adotando a tecnologia existente para executar um motor de busca na Internet, um serviço de e-mail básico e um site de rede social, fornecendo assim uma substituição de alguns dos serviços do Facebook e do Google, e que poderiam ser expandidos quando necessário.
Ela poderia ser financiada por meio de um imposto sobre os lucros globais de empresas de tecnologia e poderia receber financiamento contínuo por meio do estabelecimento de um Fundo de Riqueza Digital do Cidadão. Esta seria uma operação cara, pois os serviços fornecidos pelo Google e pelo Facebook são extremamente complexos e difíceis de se operar e exigiria vontade política para socializar centros de dados e outros hardwares e infraestruturas. O trabalho pioneiro com “embaixadas de dados” na Estônia fornece um exemplo de uma nuvem pública operada de dentro do território de outro Estado, que poderia ser usada como modelo para um novo sistema.
A governança democrática da GDSO poderia ser determinada em uma conferência anual que definiria políticas amplas, elegeria um corpo executivo e indicaria os principais especialistas técnicos que seriam responsáveis pela administração do serviço digital. Cada país que utilizar o serviço teria o direito de ser representado por uma delegação composta por um representante nomeado pelo governo, um representante da sociedade civil e um membro do público selecionado por sorteio. Todos os delegados teriam os mesmos direitos, poderiam se expressar livremente e votar como quisessem.
Cada Estado membro também deveria organizar sua própria Assembleia de Cidadãos Digitais, uma assembleia nacional de cidadãos selecionados por sorteio a partir de um grupo de voluntários em uma base rotativa anual. Essas assembleias poderiam ser organizadas por meio de uma plataforma digital e democrática como a Decidim – um software testado em Barcelona que permite a participação do cidadão na tomada de decisões online. As assembleias seriam espaços para os cidadãos lançarem iniciativas de cidadania, debater propostas apresentadas por outras assembleias e votar como gostariam de ver a mudança do serviço. Essas deliberações públicas permitiriam um maior escrutínio e supervisão do funcionamento do dia-a-dia do serviço.
Os vagos e secretos “padrões da comunidade” atualmente empregados pelas plataformas corporativas devem ser decididos democraticamente pelas comunidades de usuários. O Conselho de Supervisão Independente recém-nomeado para o Facebook é um passo na direção certa e poderia ser replicado no interior da GDSO como um meio de decidir questões controversas de moderação de conteúdo. Mas os membros do conselho devem ser eleitos democraticamente por representantes da GDSO, e não serem meros indicados por uma empresa privada, sem um mandato de prestação de contas democrático.
Outras alternativas plausíveis podem ser imaginadas. Contudo, dada a enormidade do desafio, não é suficiente cavar pequenos bolsões de resistência nas margens do capitalismo global, muito menos permitir que os gigantes da tecnologia continuem seus negócios normalmente. Imagine uma realidade alternativa em que um empresário de tecnologia, vamos chamá-lo de Jeff Encyclomusk, esmagou a Wikipedia em sua infância e comprou ou eliminou o resto dos seus concorrentes.
Nessa tenebrosa linha do tempo, os cidadãos não teriam o direito de exigir que o acesso ao conhecimento coletivo da humanidade não seja controlado por uma empresa com fins lucrativos? Nossa atitude em relação aos serviços digitais básicos não deve ser diferente.
Sobre os autores
é professor de ciência política na Universidade de Exeter. Ele é o editor de Council Democracy: Towards a Democratic Socialist Politics (“Democracia de Conselhos: Por uma Política Socialista Democrática”), Trumping the Mainstream: The Conquest of Democratic Politics by the Radical Right (algo como “Trumpeando o Sistema: A Conquista da Política Democrática pela Direita Radical”) e The German Revolution and Political Theory (“A Revolução Alemã e a Teoria Política”, a ser publicado em breve).