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O candidato presidencial Andrés Arauz comemora com simpatizantes em Quito, capital do Equador, após terminar na frente o primeiro turno (Franklin Jacome / Getty Image).

Como os equatorianos venceram a primeira batalha contra o neoliberalismo

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Tradução
Hugo Albuquerque

O primeiro turno da eleição presidencial no Equador terminou com o candidato de esquerda, Andrés Arauz, em primeiro lugar e a soma de mais de 70% dos votos contra a agenda neoliberal. Agora, é necessário um esforço derradeiro para voltar a derrotar a direita de vez.

O primeiro turno das eleições presidenciais do Equador, realizado em 7 de fevereiro, terminou em caos e polêmicas. Mas também foi marcado por uma mudança do mapa político local — com o fim do domínio de curta duração dos atuais atores neoliberais do país, que voltaram ao poder com a traição realizada pelo presidente Lenin Moreno, eleito à presidência em 2017 com um programa de esquerda apoiado pelo ex-presidente progressista Rafael Correa.

Os dados pós-eleitorais consolidaram uma nova realidade, marcada pela derrota dos partidos conservadores tradicionais e, ainda, pelo surgimento de novas forças centristas e liberais que buscam herdar o manto anticorreísmo. É inegável, contudo, o retorno do Movimento Revolução Cidadã como a principal força política do país, apesar da campanha mais intensa de perseguição e repressão legal desde os governos autoritários da década de 1980.

O candidato mais bem colocado foi o esquerdista Andrés Arauz, apoiado pelo ex-presidente Rafael Correa e sua Revolução Cidadã: ele ganhou quase um em cada três votos e sua coalizão eleitoral, a União pela Esperança (UNES), se tornou a maior força na Assembleia Nacional. Enquanto isso, a aliança dos dois partidos conservadores tradicionais, o Movimento Criando Oportunidades (CREO) e o Partido Social Cristão (PSC), liderado pelo banqueiro mais conhecido do Equador, Guillermo Lasso, obteve menos de 20% dos votos — uma perda de mais da metade da força desse setor em comparação com 2017. Ainda mais surpreendente foi o surgimento de dois recém-chegados, Carlos “Yaku” Pérez, do partido indigenista Pachakutik, com 19,5% das preferências, e Xavier Hervas, do liberal Esquerda Democrática, com 16%.

Na eleição paralela para a Assembleia Nacional, a UNES de Arauz obteve 49 das 137 cadeiras, enquanto a coalizão CREO-PSC ganhou 30, Pachakutik 27 e a Esquerda Democrática somou 18. O partido Aliança PAIS, do presidente neoliberal, Lenín Moreno, abalado por protestos massivos contra as reformas apoiadas pelo FMI no outono de 2019, pontuou menos de 1,5% e foi eliminado do parlamento.

À primeira vista, o resultado é uma espécie de decepção para a Revolução Cidadã, um movimento que dominou a política do Equador durante a presidência de Correa de 2007 a 2017 e se tornou a principal oposição ao governo de Lenín Moreno — que se apossou da legenda do Aliança PAIS. Os líderes da UNES esperavam vencer ainda no primeiro turno (o que exigiria pelo menos 40% de apoio, mais 10% de vantagem sobre o segundo colocado) e uma maioria absoluta na Assembleia Nacional.

A Revolução Cidadã conquistou a maioria dos cantões do país (103 de 221) — que são quase equivalentes aos municípios brasileiros — junto com oito regiões e as províncias costeiras estrategicamente importantes de Guayas — onde fica Guayaquil, a maior cidade do país — Manabí, Esmeraldas e El Oro. 

Arauz, seu companheiro de chapa Carlos Rabascall e outros candidatos da UNES também dominaram a votação no exterior. No entanto, a maior parte da região montanhosa do país (particularmente Cotopaxi, Bolívar e Chimborazo) e a Amazônia foram conquistadas por Pérez, enquanto Lasso venceu apenas as províncias de Galápagos e Pichincha — esta última onde fica a capital do país, Quito. Assim, o destino da presidência equatoriana será decidido no segundo turno, que será realizado no dia 11 de abril.

Um por todos e… todos contra um

Desde que Moreno rompeu com o legado reformista de Correa e, em vez disso, abraçou as elites econômicas e políticas do país, a Revolução Cidadã é vítima de uma campanha interminável de Lawfare na tentativa de eliminá-la do mapa político e impedir seu retorno à presidência.

Jorge Glas, ex-vice-presidente de Correa e idealizador das transformações econômicas do Equador durante o período de 2013 a 2017, continua preso na prisão de segurança máxima de Latacunga, em Quito, apesar de seu estado de saúde frágil e, ainda, uma infecção por COVID-19. Mais de trinta processos judiciais duvidosos, que vão desde suborno e sequestro, foram iniciados contra Correa desde 2018 em uma tentativa de enterrar seu legado de mudanças radicais na economia e na sociedade.

Outros líderes proeminentes, como o ex-ministro das Relações Exteriores Ricardo Patiño, a ex-chefe da Assembleia Nacional, Gabriela Rivadeneira, e o proeminente líder indígena Carlos Viteri, foram forçados ao exílio no México. A atual governadora da província Pichincha, Paola Pabón, o membro recém-eleito do Parlamento Andino, Virgilio Hernández, e o líder de movimento social, Christian Gonzalez, foram todos presos após o levante de outubro de 2019 contra o governo de Moreno e suas tentativas de impor “reformas” do FMI. Vários outros ativistas e quadros políticos também sofreram calúnias, perseguição, exílio ou prisão.

O processo de registro da chapa presidencial de Arauz-Rabascall também foi repetida e deliberadamente paralisado pelas autoridades eleitorais do país, antes do início da campanha. A chapa original, com Rafael Correa na condição de vice de Arauz, foi rejeitada com base no fato do ex-presidente estar em autoexilado do Equador em virtude da perseguição judicial e por não ter residência atualmente no país (embora a lei eleitoral equatoriana permita que os candidatos se registrem do exterior). Já a nomeação de Rabascall como candidato a vice-presidente também foi rejeitada pelo Conselho Eleitoral Nacional (CNE) com o fundamento de que não foi eleito por uma assembleia popular. Outras tentativas de bloquear suas candidaturas atrasaram seu registro final até 8 de dezembro (apenas três semanas antes do início da campanha), e mesmo assim as contestações legais continuaram.

Outra tentativa malsucedida de desqualificar Arauz aconteceu em 31 de janeiro, pelas mãos de Luis Verdesoto, um funcionário do CNE intimamente ligado à Guillermo Lasso. Verdesoto alegou uma suposta compra de votos baseado no fato de que a campanha de Arauz estava realizando testes de COVID-19 em seus centros de campanha. Isso foi rejeitado depois que nenhuma reclamação foi feita contra a maioria dos outros candidatos, que também realizavam testes de COVID-19 da mesma forma.

A mídia e a campanha política contra Arauz foram dominadas por três aspectos principais: sua retratação como um “marionete” de Correa, o uso de contas falsas no Facebook e Twitter para divulgar vídeos fraudulentos e fake news sobre as propostas econômicas de Arauz (e impulsionar as campanhas de Lasso e Pérez), e, por fim, a interferência de atores políticos e da mídia estrangeiros.

O bordão que descreve Arauz como uma “marionete” de Correa foi amplamente usado pelas forças de direita para retratá-lo como não inteligente e dependente do ex-presidente. Ironicamente, isso também ajudou a associar a candidatura de Arauz a Correa, que mantém ampla popularidade entre a classe trabalhadora e setores da classe média que cresceram durante sua presidência.

Uma ameaça mais séria à campanha de Arauz veio na forma de uma “investigação” conduzida pela revista colombiana Semana. Nela, se alega que o movimento guerrilheiro de esquerda Exército de Libertação Nacional (ELN) financiou sua campanha por meio da Internacional Progressista, desde a primeira conferência que aconteceu no último em setembro de 2020. O absurdo da denúncia pode ser comparado a uma campanha semelhante de calúnia contra Rafael Correa em 2010-11, quando sua campanha eleitoral de 2009 foi acusada de ter recebido financiamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Tanto Arauz quanto David Adler, o diretor da Internacional Progressista, consideraram as alegações uma tentativa desesperada de calúnia.

A investigação da Semana logo evoluiu para uma intervenção total do sistema judiciário colombiano nas eleições equatorianas, inclusive com o Procurador-Geral da República Francisco Barbosa fazendo uma visita oficial a Quito para entregar as supostas provas vinculando o ELN à campanha de Andrés Arauz. A intervenção de Barbosa (conhecido por sua estreita amizade com o presidente colombiano Iván Duque) foi amplamente condenada como uma tentativa de intervir no processo eleitoral equatoriano e uma tentativa de desqualificar Arauz de participar do segundo turno.

Ernesto Samper, um ex-presidente colombiano centrista, insistiu que as denúncias são “parte de um jogo sujo que está sendo orquestrado na Colômbia por setores radicais da direita dos dois países para interferir no segundo turno das eleições presidenciais equatorianas.

Outro vídeo de campanha falso alegou que a equipe de Arauz estava oferecendo 250 dólares para os eleitores irem aos seus comícios. Esta história foi retomada e republicada pelo jornal Clarín da Argentina, conhecido por sua forte oposição ao peronismo e à esquerda em geral.

A distribuição do vídeo também ajudou a revelar uma vasta rede de bots e trolls operando nas redes sociais, a maioria afiliados às campanhas de Guillermo Lasso e Yaku Pérez. Um estudo completo conduzido pelo guru espanhol da campanha digital, Julián Macias, também demonstrou as fortes conexões entre Lasso e os vários think tanks e institutos de extrema direita, anarcocapitalistas e da direita mundial, sendo a Atlas Network a mais notória.

No entanto, mesmo com essa rede de conexões, Lasso quase não conseguiu chegar tranquilamente ao segundo turno, pois um desafiante inesperado surgiu.

Os dilemas da CONAIE e do Pachakutik

A ascensão de Yaku Pérez como possível adversário no segundo turno com Andrés Arauz foi uma das grandes surpresas da eleição. A maioria da imprensa liberal o apelidou de “nova face da esquerda do Equador” e uma alternativa “ecossocialista” ao que eles consideram a esquerda “autoritária” de Correa e Arauz.

Ex-líder da organização indígena ECUARUNARI e governador da província de Azuay, Pérez ganhou destaque durante os protestos anti-Correa de 2015 que se opunham a uma série de novos impostos sobre os super-ricos e à possibilidade de reeleição de Correa em 2017. Pérez, junto com sua esposa franco-brasileira, a acadêmica Manuela Picq, tradicionalmente têm sido ferrenhos opositores da Revolução Cidadã, chegando a apoiar a candidatura de Lasso na corrida presidencial de 2017.

Candidato presidencial Yaku Pérez. (Yaku Pérez Guartambel / Facebook)

Desde então, Pérez tem freqüentemente assumido posições de apoio às várias forças de direita no Equador e em toda a América Latina. Ele apoiou abertamente o golpe parlamentar contra a presidente Dilma Rousseff em 2016, a campanha judiciária contra Cristina Kirchner na Argentina, a campanha dos Estados Unidos para derrubar Nicolás Maduro na Venezuela, bem como apoiou o violento golpe contra Evo Morales em novembro de 2019.

Um olhar mais atento sobre a história de Peréz como líder indígena pinta um quadro ainda mais sinistro. Relatórios documentaram seus laços com várias ONGs que durante anos receberam o apoio financeiro e político de agências ligadas aos EUA, como a USAID e o National Endowment for Democracy. Ele também manteve várias reuniões e negociações com a embaixada dos Estados Unidos em 2019, antes do levante de outubro. A exemplo da ONG boliviana anti-Morales e pró-golpe Standing Rivers, afiliada à Atlas Network, liderada por Jhanisse Vaca Daza, Pérez e Picq há anos tentam retratar Correa como um líder anti-indígena e anti-ambiental que busca um “modelo extrativista” de desenvolvimento.

Assim como acontece com as críticas equivalentes a Evo Morales, essas acusações caem um tanto quanto consideramos a mudança radical implementada por meio da Constituição de Montecristi de 2008, que reconheceu a identidade plurinacional do Equador, os direitos da natureza e a importância dos princípios indígenas Sumak Kawsay (Bem Viver). Mais importante ainda, o governo de Correa iniciou um processo de transição de energia verde sob a supervisão do vice-presidente Jorge Glas, com o enorme projeto de energia hidrelétrica Coca Codo Sinclair na província de Napo. Isso também lançou as bases para uma transição de uma economia dominada pela exportação de petróleo por meio de uma série de iniciativas, como novos projetos de infraestrutura e aumentos maciços nos gastos nos setores de educação pública e saúde.

Ao mesmo tempo, a Confederação das Organizações Indígenas do Equador (CONAIE) está longe de ser unânime em seu apoio a Pérez. Apesar de se opor a Correa durante a maior parte de seu mandato (e até mesmo apoiar a tentativa de golpe de 2010 contra ele), vários líderes e organizações afiliadas reconheceram o perigo de uma presidência Lasso.

O mais proeminente deles foi Leônidas Iza, presidente do movimento indígena Cotopaxi, e um dos principais organizadores dos levantes de outubro de 2019 contra Moreno. Em uma entrevista ao proeminente jornalista Jimmy Jairala, ele afirmou que “elementos de direita da organização de Lasso estavam dentro do círculo interno de Pérez” em busca de seu apoio para Lasso no segundo turno. Além disso, em 12 de fevereiro, ele, junto com outros quadros de esquerda do Pachakutik, declarou sua oposição a qualquer tipo de acordo com Lasso ou seu partido.

É importante notar também que embora a CONAIE tenha endossado a escolha de Pérez como candidato presidencial, ela não organizou explicitamente uma campanha pública. Muitos líderes importantes, como Iza e Jaime Vargas, se abstiveram de fazer declarações em apoio a Pérez. Este é provavelmente o resultado de uma série de reuniões e negociações realizadas entre Vargas, Iza e Andrés Arauz, a primeira delas organizada em Cochabamba, Bolívia, e mediada pelo ex-presidente boliviano Morales. Arauz também se encontrou com Vargas e outros líderes indígenas durante sua campanha na região da Amazônia e insistiu que estava ansioso por um “relacionamento positivo” com a CONAIE e outras organizações em seu futuro governo.

Em suma, a escolha de Yaku Pérez para representar os interesses da Pachakutik e das nações indígenas do Equador ecoa a escolha sem brilho de Lenín Moreno em 2017 para representar os interesses da Revolução Cidadã e da classe trabalhadora do Equador — um homem que acabou por ser qualquer coisa, menos seu líder.

Sem dúvida, o movimento indígena CONAIE terá um papel significativo no segundo turno das eleições equatorianas. Sua decisão sobre quem apoiar terá que refletir as novas realidades políticas do país — escolher entre o ressurgente movimento de esquerda sob a liderança de Andrés Arauz ou a política do passado neoliberal com Guillermo Lasso.

O segundo turno

Durante a semana de espera pelos resultados finais, Pérez liderou uma campanha intensa e às vezes surreal, proclamando sua conquista do segundo lugar e exigindo uma recontagem total dos votos. Ele alegou que a CNE era controlada por Correa (apesar dos esforços, bem-sucedidos, deste órgão para excluí-lo da corrida eleitoral de 2021) e até que o ex-presidente conspirou junto com Lasso para impedi-lo de chegar ao segundo turno.

Em uma reunião mediada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) entre Lasso e Pérez, em 12 de fevereiro, resultou em um acordo para a recontagem total de todos os votos na província de Guayas, onde Arauz e Lasso dominaram a corrida e Pérez ficou em quarto lugar. Ao mesmo tempo, vários líderes políticos contrários a Correa e Arauz pediram a criação de uma “frente anti-Correa” para o segundo turno em 11 de abril.

O candidato presidencial Xavier Hervas. (Xavier Hervas / Facebook)

Além disso, Hervas da Esquerda Democrática também pediu uma unidade de forças políticas contra a “esquerda extremista e corrupta de Correa”, apesar de ter se beneficiado financeiramente durante o tempo de Correa no governo — na verdade, muitas vezes acompanhando-o em visitas ao exterior em 2013 e 2014, enquanto promovia seus negócios de agroexportação.

Superficialmente, esse grande mix de conservadores, liberais, movimentos indigenistas anti-Correa e algumas organizações de extrema esquerda (como o Partido Comunista Marxista-Leninista do Equador, apoiando Pérez) tem a vantagem em termos de apoio eleitoral total, pelo voto dos candidatos recebidos em 7 de fevereiro.

No entanto, suas bases de apoio não são tão sólidas, e os eleitores têm grande probabilidade de mudar suas preferências caso a eventual disputa coloque Arauz contra Lasso. Afinal, mais de 70% do eleitorado votou em um candidato que tinha um programa político de esquerda ou que se apresentava como progressista ou de esquerda de uma forma ou de outra (ou seja, Hervas e Pérez), portanto rejeitando a agenda firmemente conservadora e de livre mercado de Lasso.

Um endosso potencial de Lasso no segundo turno como o candidato “anti-Correa” por Hervas e Pérez representaria um enorme problema para suas respectivas organizações e bases eleitorais. Essa decisão poderia dividir a CONAIE entre aqueles que desejam continuar sua cruzada contra Correa a qualquer custo e aqueles que desejam evitar uma presidência neoliberal. Na Esquerda Democrática, Hervas ainda é uma figura relativamente nova, e o próprio partido tem um histórico de divisões e lutas internas por causa de sua orientação em relação a Correa, seu governo e aliados.

Portanto, no primeiro turno, a grande maioria dos eleitores do Equador rejeitou o neoliberalismo e as figuras que tradicionalmente o representam. O verdadeiro desafio para Andrés Arauz, Rafael Correa e a Revolução Cidadã agora está em mostrar que eles representam essa vasta maioria, vencendo as eleições com base em um programa que pode desenterrar as raízes do neoliberalismo de uma vez por todas.

Sobre os autores

é jornalista da El Ciudadano, escritor, colaborador e pesquisador com várias publicações, incluindo Jacobin, Tribune, Le Vent Se Leve, Senso Comune, GrayZone e outros.

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Published in América do Sul, Eleições presidenciais and Política

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