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Beth Harmon enfrenta seu rival soviético Vasily Borgov no episódio final de O Gambito da Rainha. (Foto: Phil Bray / Netflix)

O Gambito da Rainha é um xeque-mate no anticomunismo de Hollywood

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Tradução
Felipe W. Martins

Disponível na Netflix, O Gambito da Rainha mostra um mundo da Guerra Fria longe dos habituais clichês hollywoodianos de norte-americanos amantes da liberdade enfrentando os malvados totalitaristas russos. Os vilões dessa trama não são os rivais soviéticos da nossa heroína no tabuleiro, mas sim os tiranos da classe média dos subúrbios dos EUA.

Em um das cenas mais memoráveis da minissérie original da Netflix, O Gambito da Rainha (The Queen’s Gambit, Estados Unidos, 2020), a prodígio do xadrez Beth Harmon se recusa a assinar uma declaração anticomunista. Quando chegamos a esta cena, Beth já conquistou a oportunidade de participar do Campeonato Mundial de Xadrez na União Soviética, após se tornar a jogadora mais bem colocada dos Estados Unidos. Apesar do seu status de campeã nacional, ela não tem fundos para custear uma viagem para Moscou sozinha. Então, uma organização chamada Cruzada Cristã se voluntaria para pagar seu voo. Mas há um porém: em troca do financiamento, representantes da organização exigem que Beth faça uma declaração pública contra a “disseminação do comunismo”. 

Como as representantes da organização colocam, o fato de que a propagação do comunismo também implica na propagação do ateísmo é simplesmente uma questão de “fato marxista-leninista”. Depois de dar uma olhada na declaração pré-escrita, Beth rejeita a oferta sem nenhuma cerimônia. Se isso significa ter que anexar seu nome a “porra sem sentido”, ela prefere não aceitar o dinheiro.

Esta cena é tão memorável em parte porque sintetiza tudo o que faz de Beth uma protagonista absolutamente convincente – dando ao espectador um retrato de sua confiança, integridade e franqueza. Mais do que isso, a cena também se presta a ser lida como uma declaração explícita da visão política da série – uma visão política que critica de forma impressionante tanto o anticomunismo da Guerra Fria quanto o capitalismo estadunidense realmente existente.

A vida sob o capitalismo realmente existente

A vida de Beth nos anos 1950 e 60 nos Estados Unidos em nada se assemelha à clássica visão hollywoodiana da utopia fordista. Vítima de uma família nuclear, o pai biológico de Beth se recusa a admitir o caso que mantém com sua mãe, uma matemática altamente talentosa, porque não quer colocar em risco o idílio de sua família burguesa. Sofrendo de doença mental, sua mãe acaba cometendo suicídio, deixando Beth órfã.

Se a adoção de Beth no início da adolescência traz um pouco de estabilidade para sua vida, dificilmente se poderia dizer que seu novo lar representaria um ambiente mais amoroso do que o orfanato em que ela vivia. O pai adotivo de Beth trata com desdém e condescendência sua esposa deprimida, uma aspirante a pianista-concertista tornada em dona de casa, concordando com a adoção principalmente para mantê-la ocupada. Enquanto isso, ela e Beth só parecem se aproximar de algo que lembra felicidade genuína quando bebem juntas em hotéis, sem homens.

Além do pai adotivo de Beth, praticamente todos os outros personagens da série que levam uma vida “normal” de classe média se saem incrivelmente mal. O dono da loja de conveniência  na pequena cidade de Beth, no Kentucky, prefere jogar no lixo suas revistas de xadrez  que não foram vendidas em vez de doá-las a Beth. Seus parceiros românticos projetam nela a mulher dos seus sonhos, sem se abrirem para o trauma ou a história pessoal dela. Seus colegas de classe a excluem de suas panelinhas por causa de suas roupas, um marcador de classe social.

As únicas pessoas com quem Beth realmente se conecta na série são sua mãe adotiva, o zelador do orfanato que a ensina a jogar xadrez, uma companheira órfã afro-americana que no futuro se volta para a militância radical pelos direitos civis, além de tipos boêmios que vivem uma vida afastada dos clichês sociais – em suma, pessoas que sobrevivem à margem da sociedade (capitalista).

O paraíso do xadrez soviético

No entanto, o que é especialmente interessante em O Gambito da Rainha é como ela rompe com as representações padrão na cultura pop das relações da Guerra Fria. Bem vestidos e educados, os soviéticos são graciosos vencedores e perdedores. Eles não sofrem complexos em relação aos Estados Unidos, nem se sentem compelidos a afirmar sua superioridade sobre seus oponentes por meio da propaganda. Vivem em uma sociedade em que grandes grupos de aposentados passam horas e horas juntos em parques, jogando xadrez. Mesmo um esporte tão individual quanto o xadrez é tratado como um esforço de equipe, visto que a comunidade é considerada importante.

Por outro lado, nos Estados Unidos, a solidariedade é um conceito alienígena. Tudo pode ser adquirido, mas não por todos. Aqueles que não têm interesse em xadrez, mas têm dinheiro, podem comprar tabuleiros de xadrez; outros não podem. Muitos dos significantes clássicos da superioridade do estilo de vida  norte-americano, como os filmes de Elvis Presley nos cinemas drive-in, não são acessíveis a pessoas em circunstâncias como as de Beth. No entanto, álcool, pílulas e cigarros baratos estão prontamente disponíveis para todos que buscam se livrar da realidade.

Com o contraste entre as representações da vida na União Soviética versus nos Estados Unidos, o retrato que O Gambito da Rainha faz do anticomunismo estadunidense parece ainda mais grotesco. Um movimento liderado por fundamentalistas reacionários que se consideram operadores da obra de Deus, sua função básica é impedir a consciência de classe dentro do país e a solidariedade internacional da classe trabalhadora.

A nostalgia reacionária não é mais o que costumava ser

É importante manter um senso de perspectiva ao analisar a utilidade política crítica de qualquer drama televisivo, especialmente da Netflix – uma plataforma de streaming de propriedade de bilionários que também hospeda hagiografias para capitalistas ricos e poderosos . Contudo, é notável o quão francamente O Gambito da Rainha contradiz a narrativa padrão da Guerra Fria, na qual o Ocidente capitalista “livre” deve enfrentar o vilão do Leste comunista “totalitário”.

No mundo de O Gambito da Rainha, o único “vilão” que Beth precisa enfrentar são as realidades sociais que a impedem de atingir seu potencial por completo. E essas realidades são um produto do sistema capitalista que se ostenta como “livre”. Em última análise, Beth só pode vencer esses obstáculos agindo em solidariedade com os outros. Esta é uma lição que ela aprende em grande parte com seus “oponentes” do xadrez na União Soviética, uma sociedade que aprecia o valor da solidariedade muito mais do que a sociedade norte-americana.

Independente de os telespectadores de O Gambito da Rainha aprenderem ou não a mesma lição que Beth, uma coisa é certa: a imensa popularidade da série sugere que a narrativa da Guerra Fria não desfruta mais da hegemonia de antes. De uma perspectiva anti-capitalista, isso só pode ser visto como uma coisa boa.

Sobre os autores

é um crítico de hip-hop na rádio pública austríaca FM4. É editor do blog mosaik-blog.at.

é professor e tradutor em Viena, na Áustria. É editor do blog mosaik-blog.at.

Cierre

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Published in Arte, Cultura and Filme e TV

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