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Carlos Marighella mostra à imprensa as marcas dos tiros que recebeu da repressão. Em 4 de novembro de 1969, Marighella foi assassinado em uma emboscada por agentes do regime. Acervo UH/Folhapress.

Os crimes da ditadura

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Em 1º de abril de 1964 foi instaurada no Brasil uma ditadura através de um golpe militar. Um ano depois, Carlos Marighella escreveu o livro "Por que resisti à prisão", onde detalha a horripilante repressão contra trabalhadores, camponeses, estudantes, artistas, cientistas e intelectuais promovida pelo terror ditatorial.

Extraído do livro Chamamento ao povo brasileiro e outros escrito, de Carlos Marighella, organizado Vladimir Safatle (coleção Explosante da Ubu Editora, 2019).


A ditadura instaurada no Brasil pelo golpe militar de 1º de abril criou para o nosso povo uma situação de pesados sacrifícios, que vão desde a entrega e a submissão do país aos Estados Unidos até à supressão brutal das liberdades com a subsequente implantação do terror político e ideológico e o desencadeamento de perseguição em massa.

Instituído pela força o poder militar, milhares de cidadãos foram presos, espancados, torturados, espezinhados pela polícia e pelos oficiais encarregados dos IPMS [Inquéritos Policiais Militares]. Muitos brasileiros ainda se encontram nas prisões, enclausurados em quartéis, nos cárceres medievais da marinha de guerra ou em campos de concentração nos moldes nazistas – como acontece em Itaqui, no Rio Grande do Sul.

Os que recorreram ao suicídio – para escapar aos bárbaros suplícios físicos e morais – e os que foram assassinados às escondidas ou apareceram agonizantes, os sequestrados ou baleados pela polícia, bem como os que enlouqueceram ou ficaram aleijados pelas torturas e sevícias do Dops, não são em pequeno número.

As torturas revelam a degradação humana da ditadura. Os carrascos de hoje, trazidos na crista da quartelada, empregam métodos que superam os velhos sistemas dos escravocratas brasileiros e suplantam os mais requintados suplícios dos tempos da Inquisição. O “pau de arara”, o “telefone” (aplicação de golpes simultâneos nos ouvidos com as mãos em concha até arrebentar os tímpanos), choques elétricos nos órgãos genitais e nos ouvidos, queimaduras com pontas de cigarro, mergulhos forçados em tanques de óleo e barris de água gelada, com mãos algemadas e de cabeça para baixo, simulação de afogamentos no mar e de fuzilamentos com tiros de festim, jorros de luz ofuscante nos olhos, espuma de sabão ou sabão em pó no globo ocular, jejum de vários dias, imobilidade (de pés descalços) sobre latas de cera (sem tampa) até ao desfalecimento das vítimas, pancadas a porrete e cassetete de borracha, espancamento dos rins e abdômen, bordoadas nas costas ou quedas de costas (repetidas até a fratura da coluna vertebral) – estes os processos rotineiros aplicados pela polícia e pelos encarregados dos IPMS para obterem confissões dos presos.

O meio mais elementar de tortura é o regime de incomunicabilidade. Ao preso não se permite ao menos avistar-se com seu advogado. Contra a incomunicabilidade, bem como contra as prisões sem culpa formada ou além do prazo judicial, o recurso jurídico do habeas corpus tem um valor precário. Embora seja uma conquista democrática do século XVII, surgida na Inglaterra, e introduzida posteriormente em nosso país desde 1832, o habeas corpus é calcado aos pés pela atual ditadura.

Para mostrar o que são as torturas, basta citar alguns casos.

Antonio Pereira Neto, marítimo, teve o olho quase vazado no Dops da Guanabara. O ferroviário Ladislau Silva sofreu o suplício da espuma de sabão nos olhos, que foram em seguida lacrados a esparadrapo. Assisti certa noite no Dops da Guanabara a uma cena terrível: entre dezenas de presos deitados no chão sobre jornais velhos, Epitácio França – funcionário do DNRU – esvaía-se em sangue, com os pulsos cortados a gilete, uma tentativa de suicídio para escapar aos suplícios do Dops e do Cenimar.

O líder gráfico Newton Eduardo de Oliveira, presidente da Federação Nacional dos Gráficos, suicidou-se. O mesmo fim teve o ex-combatente da FEB, Dilermando Melo, submetido a torturas morais no IPM do Ministério da Justiça, presidido pelo coronel Turola.

Ivo Valença (Pernambuco) levou choques elétricos e foi mergulhado num tonel de água suja. O professor José Marinho, de 66 anos, foi submetido ao “cristo redentor” – tortura que consiste em ficar de braços abertos, encostado à parede, segurando catálogos telefônicos nas mãos. O dr. Simão Kossubutski, preso em Goiás, passou pelo suplício do “torniquete”, aperto dos testículos entre duas pequenas tábuas.

Valdir Ximenes Farias, ex-diretor da Companhia de Revenda e Colonização, no governo Arraes (Pernambuco), teve a coluna vertebral partida a pancadas e ficou aleijado. A estudante Sílvia Lúcia Viana Montarroios enlouqueceu e foi recolhida ao hospital de alienados no Recife, depois do interrogatório por que passou no IV Exército. Darci Gonçalves de Lima, torturado em Curitiba após ser preso e envolvido no IPM sobre o DCT, repartição da qual era funcionário, veio a falecer na Guanabara, em consequência dos espancamentos. O sargento Manuel Alves Ribeiro, preso por supostas atividades subversivas, morreu às mãos dos seus supliciadores.

Quanto aos torturadores, citemos três nomes dos mais tristemente famosos na Guanabara: Sérgio Alex Toledo de Castro, Solimar Moura Carneiro e José Paulo Boneschi. Prestam serviços ao Cenimar e ao Dops da Guanabara.

A leitura de uma coleção do Correio da Manhã e da Última Hora, jornais de conduta irrepreensível na defesa dos direitos humanos e civis, dará uma visão completa do cinismo da ditadura e da extensão e profundidade das violências policiais a partir do golpe de 1º de abril.

A polícia emprega em nossos dias métodos nazistas de tortura, piores que os da polícia de Filinto Müller no Estado Novo – e de cuja hediondez David Nasser dá às novas gerações de brasileiros um impressionante relato em seu livro intitulado Falta alguém em Nüremberg.

Quando passei pelo Dops da Guanabara, vindo do Hospital da Penitenciária – em fins de junho – verifiquei que a polícia estava abalada pela denúncia do ex-preso Dilson Aragão contra torturas e espancamentos. Um inquérito interno no Dops pretendia apurar quais os responsáveis pela negligência – diziam os policiais – que permitira ao denunciante apresentar provas contra a polícia. Dilson Aragão é filho do almirante Aragão.

Além das torturas, há as condições da prisão, que são degradantes. O xadrez do Dops é infecto e mortífero – com uma só privada para todos os presos, às vezes em número superior a cem. No xadrez das mulheres não há instalações sanitárias, sendo necessário usar as que se acham fora da cela, em um pequeno compartimento comum a todas as detentas.

A comida é intragável e causa disenteria. Não há cama. Dorme-se no chão, em colchões velhos ou sobre jornais. Não há banho de sol.

Para constar, existe um médico no Dops, chamado pelos presos “dr. Cibalena” – nome do único medicamento que sabe receitar para todos os males.

Estas condições foram verificadas pelo marechal Taurino Rezende quando – nas funções de chefe da Comissão Geral de Inquérito (CGI) – visitou as instalações do Dops. Então sob o abalo moral da prisão de seu filho Sérgio Rezende, cuja liberdade era recusada pelos militares sediados no Recife, a despeito da ordem de habeas corpus do Supremo Tribunal Federal, o velho “gorila”, defensor e beneficiário do golpe, resolveu percorrer os presídios.

Seu objetivo era a soltura do filho, pressionando os carcereiros com a revelação das irregularidades nas prisões.

Saltando do fundo da cela – onde me encontrava com os outros companheiros e exibindo o peito nu com cicatrizes – denunciei perante a comitiva militar-policial do marechal Taurino, e na presença de Borer, o atentado a bala que sofri, as torturas praticadas no Dops contra os demais presos e a situação irregular dos que ali se encontravam detidos fora dos prazos legais. Antonio Pereira Neto, Almir Matos, Cauduro, Hentz Pereira dos Santos, Cantalice estavam comigo no mesmo cubículo. Muitos outros se encontravam amontoados nos vários e imundos xadrezes. Os protestos foram gerais e os presos falaram sem temor, verberando a polícia.

O marechal Taurino, que declarara guerra à justiça brasileira e queria à fina força transferir para a justiça militar os inquéritos sob a alçada da justiça civil, acabou sendo castigado pela sua própria desumanidade e intransigência. Sofria na carne a prisão do filho – que ele considerava um idealista –, sem querer ver que os outros presos não eram menos idealistas e que suas famílias sofriam horrivelmente.

Recorrendo a torturas e prisões e mantendo o país em suspense pela absoluta falta de garantias, a ditadura prossegue em suas perseguições, atingindo pessoas de todas as categorias sociais.

Assim é que os militares que não compactuam com o atual regime tiveram suas patentes cassadas – punição sem qualquer amparo legal, e fato inédito em toda a história do país.

Marinheiros e sargentos que lutaram por seus direitos democráticos e por tratamento humano de parte de seus superiores, ainda que o tivessem feito quando vigorava o governo João Goulart, deposto pela ditadura, sofreram e continuam sofrendo castigos e sevícias nas prisões. Houve quem fosse mutilado ou assassinado. Isto demonstra que a ditadura age contra eles, não por defesa de princípios democráticos ou por necessidade de preservar a disciplina, mas por uma questão de ódio e vingança de classe. E isto é tanto verdade quanto que – após a implantação do regime hoje em vigor – já não se respeita a hierarquia entre os oficiais, os de patente inferior sobrepondo-se aos mais graduados, e os de uma corporação opondo-se aos de outra, sem nenhum reparo ou medida punitiva séria, como acontece no conflito da aviação embarcada ou no caso dos projetados ministérios da Defesa e dos Transportes.

O terrorismo cultural – expressão do terrorismo político e ideológico – é outro exemplo das perseguições em massa movidas pela ditadura. Um sacrifício a que a ciência e o magistério pagam pesado tributo. São inúmeros os cientistas obrigados a sair do Brasil, por ser impossível trabalhar pelo progresso da ciência sob o clima de terror e intolerância. Entre os que já se encontram no estrangeiro podem ser citados: Guido Peck (Argentina), Samuel MacDowell (EUA), Molton de Souza (França), Cesar Lattes (Itália), Baeta Henriques e Olga Baeta (Inglaterra), Fernando de Souza Barros e Suzana de Souza Barros (EUA), Luiz Hildebrando Pereira (Inglaterra), João Alberto Mayer (França), Eli Silva (Itália).

Para outros – em particular os que professam o magistério –, a ditadura reservou o cárcere, os IPMS, a prisão preventiva ou a demissão.

O professor Leite Lopes, então diretor científico do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, convidado para lecionar na Sorbonne, foi preso quando tirava passaporte para sair do país legalmente. Um professor da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, o sociólogo Florestan Fernandes, porque escreveu uma carta ao coronel encarregado de um IPM, defendendo a liberdade de cátedra e dando os motivos por que decidira depor, foi detido no xadrez de um quartel. O professor de renome internacional Vilanova Artigas, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, foi igualmente atirado a uma enxovia militar, numa demonstração de hostilidade da ditadura contra a liberdade de cátedra. Cientista consagrado em todo o mundo como uma das maiores expressões da física moderna, o professor Mário Schemberg esteve preso no xadrez do Dops paulista e – após ser libertado – tem contra si um mandado de prisão preventiva. Na Bahia, foram presos os professores Milton Santos, Gerson Mascarenhas, Marcelo Duarte, Auto José de Castro e Alípio Castelo Branco.

Professores católicos perderam suas cátedras, punidos pela ditadura, e entre eles se encontram Ernani Fiori, Ubaldo Puppi, Francisco Mangabeira, Antonio Baltar.

No estrangeiro, vivem figuras marcantes da cultura brasileira, como Josué de Castro e Celso Furtado.

Oficiais militares incultos e de formação fascista submeteram a interrogatórios macartistas, nos IPMS, expressivas figuras da intelectualidade brasileira e invadiram seus domicílios. O embaixador Álvaro Lins, cuja reputação ultrapassa nossas fronteiras, escritor e crítico literário de inexcedível valor, membro da Academia Brasileira de Letras, teve o lar invadido para busca e apreensão de documentos de seu arquivo, numa afronta à sua renomada obra intelectual, e depôs num IPM durante dois dias. Nelson Werneck Sodré, que se notabilizou como historiador e crítico literário; Oduvaldo Viana, famoso teatrólogo; Dias Gomes, festejado autor de O pagador de promessas; Ferreira Gullar, um dos poetas brasileiros de maior expressão, sofreram idênticos ultrajes. Depois de regressar do exterior, onde mais uma vez elevara o nome do Brasil, Oscar Niemeyer, glória da arquitetura, foi chamado a depor num IPM sobre atividades subversivas.

Álvaro Vieira Pinto, eminente professor a cuja autoria pertencem importantes obras de cunho nacionalista e alto valor sociológico, diretor do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), foi obrigado a buscar o exílio, ante a ameaça de ser levado à cadeia. Ênio da Silveira, homem de cultura, um dos principais senão o principal editor brasileiro, a cuja atividade se deve nos últimos anos o enriquecimento sem paralelo de nosso acervo cultural, teve a sua casa vasculhada pelo Exército, foi preso e responde a vários IPMS. Astrogildo Pereira, com 74 anos, fundador do Partido Comunista, consagrado como escritor, historiador, crítico literário e jornalista, apesar de beneficiado com duas ordens de habeas corpus, só foi libertado da prisão militar onde se encontrava em consequência da pressão da opinião pública do país contra a arbitrariedade dos militares fascistas. Carlos Heitor Cony, escritor de mérito inconfundível, foi processado pelo ministro da Guerra, que tentava cercear-lhe o direito de escrever. Edison Carneiro, Alex Viany, Nestor de Holanda, Quirino Campofiorito – figuras de relevo nas letras e artes do país – estão indiciados num IPM por terem exaltado a cultura brasileira em obra editada na União Soviética.

Almir Matos – escritor e jornalista já consagrado – esteve preso mais de um mês sem qualquer justificativa. Paulo Cavalcanti – escritor pernambucano de valor – foi levado à prisão. Abelardo da Hora – conhecido escultor – esteve preso em Pernambuco vários meses e ficou sem meios de sustentar a família. Heloísa Ramos, viúva de Graciliano Ramos, um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, teve a casa invadida e subtraídos de seu arquivo papéis e cartas íntimas do falecido escritor. O caricaturista Claudius Ceccon esteve preso no Dops da Guanabara.

Contra Jamil Almansur Haddad, poeta paulista, e a escritora Helena da Silveira, também de São Paulo, foram expedidos mandados de prisão, suas casas invadidas e apreendidos manuscritos literários e correspondência particular. A pintora Djanira foi presa e sofreu vexames quando se dirigia ao estado do Rio, transportando material para seus trabalhos artísticos. Mário Lago – radialista e compositor de renome – ficou preso quase dois meses, e a polícia confessou não saber por que o fizera. Maria Della Costa e Cacilda Becker – notáveis artistas do teatro brasileiro – foram chamadas a depor porque realizam uma arte de larga aceitação, dentro do país e no estrangeiro. Bibi Ferreira passou por idêntica afronta.

Os jornalistas não escaparam à razia ditatorial. Jornais foram ilegal e arbitrariamente fechados em todo o país ou simplesmente não puderam mais circular. Gráficas foram depredadas ou interditadas. Entre os jornais atingidos constam o Binômio e O Combate (Minas Gerais), Novos Rumos, O Semanário, Panfleto (Guanabara). A revista teórica Problemas da Paz e do Socialismo teve sua publicação proibida. Há jornalistas, bem como produtores do rádio e da televisão e compositores, cujos nomes não podem ser citados em seus trabalhos, mesmo que estes tenham vindo a público antes do golpe de 1º de abril ou sejam obras consagradas pela opinião pública. Samuel Wainer, diretor de Última Hora, está exilado, bem como Carlos Olavo Duarte, Costa Pinto, Paulo Valente, Ib Teixeira – jornalistas de reconhecido valor. O repórter José Carlos Rocha, do Jornal do Brasil, esteve preso e incomunicável, no Recife, e foi espancado porque – em obediência à ética profissional – recusou-se a revelar aos militares quais as fontes de informação usadas para uma reportagem sobre o casamento da filha de Miguel Arraes, governador de Pernambuco deposto e preso. João Etcheverry foi preso, Otávio Malta e Paulo Francis perseguidos.

Estudantes e intelectuais que se dedicavam ao movimento pró-cultura popular e à campanha de alfabetização de adultos – como é o caso de Roberto Pontual – foram para a prisão e responderam a IPMS. Maria Ieda Linhares – um dos valores da nova geração – foi demitida da direção da Rádio Ministério da Educação e enxovalhada publicamente porque imprimira à emissora uma orientação artística mais consentânea aos interesses culturais do nosso povo.

A União Nacional dos Estudantes (UNE) teve sua sede incendiada pelos vândalos golpistas, e posteriormente foi declarada extinta por iniciativa do Ministério da Educação – cuja função no governo é achincalhar a cultura e conservar o analfabetismo. José Serra, presidente da UNE, está no exílio.

O ódio da ditadura contra tudo que signifique desenvolvimento e patriotismo manifestou-se abertamente ante a Petrobras e a Sudene. Seus técnicos mais categorizados, chefes e encarregados de departamentos foram demitidos, presos, indiciados em IPMS ou se exilaram. Seus substitutos são militares entreguistas, e o controle técnico da Sudene passou para os norte-americanos. Mario Lima (Petrobras – Bahia), deputado, passou longos meses na prisão, transferido de um lado para outro, sem que os militares dessem cumprimento às ordens de habeas corpus em seu favor. Aliás, na Bahia, a repressão assumiu um caráter dantesco, assinalando-se pela brutalidade e pela hediondez com que as vítimas foram maltratadas. No Recife, Milton Coelho da Graça (Sudene), jornalista, padeceu bárbaros suplícios enquanto esteve prisioneiro. Rivadávia Brás, técnico da mesma autarquia, enlouquecido pelas torturas, acha-se internado num hospital de alienados.

Advogados, juízes, magistrados não escaparam à sanha da ditadura e entre eles contam-se Aguiar Dias, José Monjardim Filho, Dácio de Arruda Campos, Osni Duarte, Sinval Palmeira, Luiz Mário Camargo Xavier, Letelba de Brito, Júlio Teixeira, Aldo Lins e Silva.

Os ultrajes às mulheres presas só têm paralelo nas atrocidades nazistas cometidas pela polícia do Estado Novo. A jornalista Wânia Santayana foi conservada presa mais de seis meses, em Minas, apesar de seu estado de gravidez, e depois teve de asilar-se, mobilizando a seu favor – durante o período de encarceramento – as freiras do Mosteiro Beneditino de Belo Horizonte, que em sua intenção fizeram penitências e orações conjuntas. Naíde Teodósio, médica e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Pernambuco, teve a casa invadida, livros e arquivos apreendidos, e permaneceu longos meses no cárcere, sendo-lhe infligidas torturas. Iza Quitans, Guerra, Orandina Ayres Sebastião, Maria Salas, Yolanda Picingher, Ursula Gerhardt, Eleuse Machado, Elisa Branco são nomes de mulheres castigadas com prisão ou foragidas para escapar a ameaça e intimidações. Freiras católicas chegaram a ser perseguidas e insultadas, como ocorreu em Pernambuco a uma religiosa que escondeu camponeses procurados pela polícia. Até crianças de doze anos foram presas, a exemplo do que ocorreu na Guanabara, no aeroporto internacional do Galeão.

Os jovens estudantes do chamado “grupo angolano” passaram por torturas selvagens, e entre eles José Lima de Azevedo.

Membros da Ação Popular, da JUC, da JEC e da Ação Católica foram denunciados à justiça, incursos em IPMS, e passaram pelas prisões ou nelas se encontram. Há casos de sacerdotes católicos indiciados em inquéritos, como os padres Pacheco e Reis, Valiente e Hugo Hassmann (Rio Grande do Sul), ou que foram encarcerados, como o padre Lage (Minas Gerais), que sofreu na cadeia maus-tratos e desrespeitos.

Alguns dos mais antigos presos da ditadura são de Pernambuco. E o mais sinistro carrasco ali surgido foi o coronel Ibiapina, que sentia prazer em torturar as vítimas como se fizesse experiências in anima vili. Gilberto Azevedo, Ubiraci Barbosa, José Leite Filho, Clodomir Morais, Célia Lima, José Campelo Filho, Cícero Targino sofreram longamente no cárcere. São nomes de verdadeiros sepultados vivos da Casa de Detenção do Recife – réplica brasileira da “Casa dos Mortos” dostoiesvskiana. Traumatizado pelas perseguições a Liana Lafaiete de Andrada Aureliano e a Maria José Aureliano, o desembargador Rodolfo Aureliano, líder católico, ex-presidente do Tribunal de Justiça e do Tribunal Eleitoral de Pernambuco, não suportou o infortúnio que se abateu sobre sua família e veio a morrer de desgosto.

Os nove chineses, que entraram legalmente no Brasil, ao tempo do governo João Goulart, e que a polícia da Guanabara encarcerou após o golpe de 1º de abril, foram barbaramente torturados, submetidos a um processo-farsa e condenados a dez anos de prisão. The Economist, semanário inglês conservador, classificou de “severa e possivelmente insensata” a sentença aplicada pela justiça militar, alvitrando a hipótese de uma trama arquitetada ou aprovada pelos Estados Unidos. Aos brasileiros Adão Pereira Nunes, Armarílio Vasconcelos e Raquel Cossoy foi infligida a mesma estúpida sentença – ainda que no julgamento a polícia não tivesse conseguido apresentar nenhuma prova ou testemunhas convincentes, quanto aos crimes de subversão e espionagem imputados aos acusados.

Fora dos prazos legais, permaneceram nas prisões, sem provas idôneas que os incriminassem, comunistas como Gregório Bezerra, Ivan Ramos Ribeiro, Mário Alves, Francisco Leivas Otero, Elson Costa, Agliberto Vieira Azevedo, Néri Reis, Roberto Margonari. Alguns ainda lá permanecem.

Para os operários, bem como para os camponeses, a ditadura determinou um tratamento cruel e impiedoso. Clodsmith Riâni e outros estão presos há longos meses. Líderes sindicais como Osvaldo Pacheco, Roberto Morena, Ubaldino dos Santos, Melo Bastos, Palhano, Osmildo Stafford, Dante Pellacâni estão impedidos de viver no Brasil e refugiaram-se no exterior. Contra os sindicatos mais importantes foram instaurados IPMS, com prazos excedidos e funcionando ilegalmente, e aonde são chamados a depor os líderes sindicais que não saíram do país. Bancários, portuários, ferroviários, trabalhadores em petróleo e das empresas estatais, como a Siderúrgica Nacional, a Fábrica Nacional de Motores e outras, operários navais, marítimos, metalúrgicos, aeronautas e aeroviários são as vítimas preferidas. Em Santos – o maior porto da América do Sul –, o capitão dos portos de nome Júlio de Sá Bierrenbach, fascista notório, estabeleceu uma espécie de governo discricionário sob seu comando particular e implantou o terror contra a população, visando sobretudo aos operários do porto e atingindo os trabalhadores da Refinaria de Cubatão. Fundeado ao largo da enseada, um navio-presídio era palco de torpes castigos e humilhações, infligidos, sob a inspiração do truculento oficial da Marinha, aos intelectuais e operários presos.

Os camponeses e seus líderes, quando não assassinados friamente, são presos e torturados ou sujeitos a intermináveis IPMS, sobretudo na área do Nordeste. Pedro Fazendeiro – um camponês paraibano – foi preso, torturado e desapareceu, cabendo à polícia responsabilidade pelo seu sumiço. José Porfírio (Formoso, Goiás) tem atrás de si a perseguição do Exército, polícia e capangas dos latifundiários. Chicão, que escapou de ser morto com sua família, no dia do golpe, está sendo caçado em todo o estado de Minas Gerais. Os camponeses Osias Ferreira, José Luiz dos Santos, Adauto da Silva e Valdemiro Cândido estão presos no quartel da Polícia Militar, no Derby (Recife), e indiciados num IPM instaurado para perseguir e condenar trabalhadores rurais. O camponês Antônio Lopes de Albuquerque (Vitória de Santo Antão, Pernambuco) está encarcerado no Manicômio Judiciário de Tamarineira.

Punidos com cassações de direitos políticos e outras sanções, perseguidos no país ou vivendo no exílio, existem muitos brasileiros. Desde os que exerceram a presidência da República nos últimos anos, os que ocuparam comandos militares, foram ministros de Estado, governadores, prefeitos ou deputados, aos que são líderes políticos de expressão ou apenas se opõem à ditadura. Entre os atingidos figuram João Goulart, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Luís Carlos Prestes, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Seixas Dória, Mauro Borges, marechal Osvino Ferreira Alves, almirante Cândido Aragão, general Jair Dantas, almirante Sílvio Mota, almirante Pedro Paulo Suzano, almirante Paulo Mário, general Oromar Osório, general Cunha Melo, brigadeiro Antônio Teixeira, Amauri Silva, Abelardo Jurema, Saldanha Coelho, Francisco Julião, Almino Afonso, Max da Costa Santos, sargento Antônio Garcia Filho, cabo da Marinha José Anselmo, Demistóclides Batista, Elói Dutra, general Tácito de Freitas, Djalma Maranhão, Paulo de Tarso, Neiva Moreira, coronel Dagoberto Rodrigues, João Pinheiro Neto, Wilson Fadul, Raul Ryff, Darcy Ribeiro, Pelópidas da Silveira, Sereno Chaise, Plínio de Arruda Sampaio, Beatriz Bandeira, Rosemonde de Castro Pinto, Oto Rocha e Silva, coronel Hango Trench, Valdir Pires, general Henrique Oest, Marcos Magalhães Rubinger, coronel Kardec Leme, coronel Joaquim Inácio Cardoso, capitão Alfredo Ribeiro Daudt, professor Bayard Boitteux, comandante Emílio Bonfante, professor José Rodrigues Vieira Neto, Lúcio Gusmão Lobo, Jurema Finamur, Humberto Menezes Pinheiro, Pedro Paulo Sampaio Lacerda, Henrique Cordeiro, Paulo Schilling, padre Alípio de Freitas, Alfredo Gerhardt, Paulo Freire, Vinícius Caldeira Brant, Rubem Wanderley, Jocelin Brasil, Anísio Teixeira, Ana Montenegro, Sinval Bambirra.

O relatório geral de todos os IPMS realizados no país envolve milhares de pessoas, sem contar os 5 mil brasileiros que já foram punidos pelo Ato Institucional. Apesar, porém, dos prazos estourados e da notória e reconhecida ilegalidade, há oito IPMS que não ficaram prontos e prosseguem em aberto – espécie de rede em cujas malhas devem ser escolhidos aqueles que daqui por diante a ditadura resolver castigar à moda romana do ave Caesar, morituri te salutant. Esses IPMS são destinados a apurar atividades ditas subversivas, que significativamente abrangem Supra, une, Imprensa Popular, Partido Comunista, Iseb, Grupo dos Onze. Até agora arrolam 4 mil pessoas. E deixam prever sem dificuldade em que tipos de perseguições a ditadura pretende concentrar-se, para justificar verbas diárias auferidas pelos militares nas funções pouco dignas de torquemadas.

Escrevendo no Correio da Manhã (19 de janeiro de 1965) sobre a receptividade popular que a ideia da anistia encontra no país, o jornalista Edmundo Moniz esclarece muito bem o sentido que os “gorilas” querem dar às perseguições. Diz ele: “Encontram-se, entre os subversivos, liberais, católicos, comunistas, socialistas, trabalhistas, nacionalistas, membros do PSD, da UDN e do PDC. Todos aqueles, precisamente, que, deste ou daquele modo, preferem a república democrática a uma ditadura militar”.

As punições da ditadura não recaem somente sobre aqueles contra os quais ela volta o seu ódio. São golpeadas também as famílias dos castigados, incluindo suas esposas, filhos, dependentes e até seus círculos de amizade. Os detentores do poder querem levar às raias do desespero seus adversários políticos. E, quando não conseguem mantê-los presos ou apontá-los como culpados nos IPMS, continuam a persegui-los por outras formas. Fazem pressão contra os exilados, até mesmo invadindo território estrangeiro (o Uruguai ainda há pouco protestou contra a violação de sua soberania, em consequência de uma dessas invasões). E dentro do Brasil chegam ao ponto de tentar impedir que suas vítimas obtenham emprego.

Tal é o requinte, que nos sentimos – sem querer – transportados aos tempos da sereníssima sra. d. Maria i, rainha de Portugal, quando então só magistrados portugueses foram incumbidos de punir os inconfidentes mineiros.

Foi um julgamento inédito. E, para o seu cabal desempenho, fizeram-se duas devassas – uma no Rio e outra em Minas (dois IPMS como se diria agora). Os magistrados portugueses não se satisfazem com os depoimentos. Exigem novas inquirições de testemunhas. Para a apresentação de defesa, concedem-se apenas cinco dias. O advogado tinha o direito de defender os acusados. Mas, caísse no atrevimento de inflamar-se ao produzir a defesa, ou tentasse dar-lhe um sentido profundo, e poderia ser tomado como revolucionário e incluído no rol dos criminosos.

O vice-rei d. Luiz de Vasconcelos ameaçou mandar vergastar o padre Inácio Nogueira, em cuja casa se escondera Tiradentes. Cláudio Manoel da Costa recorreu ao suicídio, enforcando-se. Joaquim Silvério dos Reis foi o “dedo-duro” mais digno de nota. As sentenças impostas variaram desde a perda de direitos, degredo, morte na forca e esquartejamento, até à ordem de expor em praça pública as cabeças dos réus, arrasar-lhes as casas e salgar o solo para que nada mais ali viesse a nascer, declarando-se infames até à quarta geração os descendentes dos conjurados.

As perseguições, violências e arbitrariedades da atual ditadura não ficam nada a dever à sanha homicida dos colonizadores portugueses do século XVIII.

Sou um brasileiro cujos direitos políticos não foram cassados. Mas como vítima da ditadura, preso e baleado pelos beleguins do Dops, eu não quis – diante do público brasileiro – limitar-me a denunciar o crime praticado contra a minha pessoa. Mesmo porque – enquanto estive preso e incomunicável – contei com ampla solidariedade popular, que não só ajudou a salvar minha vida, no hospital, como influiu decisivamente para libertar-me das garras da polícia. Esta solidariedade partiu indistintamente de todos os setores e de pessoas de diferentes convicções filosóficas, credos religiosos ou categoria social.

Procurei – por isso – alinhar aqui uma série de denúncias dos crimes da ditadura – os mais gritantes –, cometidos não só contra uma pessoa, mas contra todo o povo brasileiro – num atentado à condição e à dignidade humanas.

Os crimes, na sua crueza e hediondez, são repugnantes. Põem a nu a natureza fascista do regime implantado entre nós. Mas o povo não se atemorizou. E foi impelido à solidariedade, como resposta à coação e às injustiças.

Sentimento humano e dever patriótico, a solidariedade nos reúne a todos. É inevitável que homens e mulheres de todas as tendências políticas, religiosas e ideológicas, sem discrepâncias, cheguem a um terreno comum para ajudar moral e materialmente as vítimas da ditadura e para realizar a conquista da anistia geral. Trate-se dos que se encontram no exílio ou asilados em embaixadas, dos que se acham nas prisões ou perseguidos, a inclinação dos brasileiros é para prestar-lhes solidariedade e às suas famílias. Os que reprovam a indignidade dos verdugos voltam-se para os sacrificados.

Sobre os autores

foi um político, escritor e guerrilheiro comunista marxista-leninista brasileiro. Um dos principais organizadores da luta armada contra a ditadura militar brasileira, Marighella chegou a ser considerado o inimigo "número um" do regime.

Cierre

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Published in América do Sul, Antifascismo, Golpes de estado, Livros, Militarismo and Política

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