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Não há nenhum outro motivo para nos colocar nas ruas agora, e nos arriscarmos frente ao vírus, além do próprio risco mortal que o governo atual representa para o povo trabalhador, e continuará representando caso não seja derrotado. Foto Wikimedia Commons.

A escolha de ir às ruas

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Há boas razões para se preocupar com o vírus, há razões ainda maiores para buscar derrotar o governo Bolsonaro. Se você ainda está em dúvida sobre ir aos atos de rua de hoje, médico de um dos estados mais afetados pela Covid-19 explica a melhor forma de se proteger - e protestar.

Há razões para se arriscar nas manifestações do hoje, 29 de maio, razões para não se arriscar, e há a forma mínima eficaz de se proteger caso a escolha seja por ir às ruas. Trata-se, portanto, de uma situação de pesar os riscos e fazer uma escolha.

Sou médico no estado do Ceará, um dos mais afetados pela Covid-19 no Brasil. Conheço de perto o sofrimento e a devastação que a pandemia tem causado nas nossas famílias trabalhadoras. Conheço de perto também os tipos de escolha que a pandemia nos impõe, e me acostumei a ter que tomar algumas, como grande parte do povo.

Ao se deparar com um paciente com um problema de saúde ameaçador, temos que pesar o risco do contato com o vírus em uma emergência e o risco de tentar tratá-lo em casa sem acesso a tantos recursos. O que é mais perigoso? Depende do perigo que representa o outro problema de saúde e do risco que representa uma possível Covid-19 para o paciente. Não há muito o que pensar quando há necessidade de uma cirurgia de emergência. Ou tratamento para um infarto. Ou quando é necessário sair de casa para garantir a subsistência. O que se pode fazer é ser pragmático, pesar os riscos e benefícios, e tomar uma decisão. Nos cenários mais desesperadores, que são cada vez mais comuns, é arriscar com o vírus ou morrer. Na maior parte das vezes é mais difícil.

Há boas razões para participar das manifestações do dia 29, bons motivos para se preocupar com a contaminação pelo vírus – mas há também formas eficazes de se proteger caso a escolha seja ir às ruas. Para ajudar quem está enfrentando esse dilema, apresento os riscos de ir, e os riscos de não fazermos nada, e os motivos que temos para ir às ruas. Finalizo com as orientações sugeridas pela Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares para diminuir ao máximo o risco de quem escolher ir às ruas no dia 29 de maio.

Começo pelos bons motivos para estar preocupado. Como os quase 500 mil óbitos acumulados deixam evidente, a Covid-19 pode sim ser muito grave. A letalidade é sem dúvida maior em um contexto de escassez de recursos, com hospitais lotados e profissionais esgotados, como é o cenário da assistência em boa parte do país hoje, devido a irresponsabilidade criminosa do governo federal e os sucessivos desmontes e sabotagens contra nossa própria capacidade de enfrentar a pandemia.

O vírus pode ser transmitido facilmente entre pessoas de convívio próximo e que compartilham um mesmo ambiente, como um ambiente de trabalho, domicílio, restaurante, bar ou academia. A imunidade natural promovida pelo contato prévio com a doença pode não ser duradoura, e o risco de submeter uma grande parte da população à doença para atingir essa imunidade é excessivamente alto, dando contornos eugenistas (e genocidas) à ideia de “imunidade de rebanho” propagandeada pelo bolsonarismo. Mesmo a imunidade conferida pelas vacinas pode ser prejudicada pelo surgimento de novas variantes, das quais o Brasil, por ser um país onde a pandemia segue descontrolada, é candidato a ser um grande laboratório. 

Tendo em vista todos esses riscos, bastante reais, exponho aqui as mesmas recomendações que faço a amigos próximos e familiares, para todos os que estejam considerando ir às manifestações: se você tiver alguma das comorbidades ou idade que te coloquem no grupo de risco ou conviva em contato próximo com pessoas com essas condições, não vá. Se você estiver com algum dos sintomas sugestivos de Covid-19, ou ainda estiver no período em que pode ser uma pessoa infectante, ou tiver convivido com alguém nessas condições nos últimos dias, não vá. Se você teve condições de ficar em casa, estiver se expondo o mínimo possível desde o início da pandemia, se tiver receio de se infectar nas manifestações, e essa perspectiva lhe trouxer grande angústia, não se sinta culpado em não ir.

Essas seriam todas boas razões para não ir. Afinal, ficar em casa, evitar locais fechados e com grande circulação de pessoas, evitar locais pouco ventilados, usar máscara PFF2, são comprovadamente medidas que diminuem o risco de infecção. Os poucos que podem segui-las à risca de fato se mantêm mais protegidos do que quem se expõe. 

É evidente, caso tivéssemos um governo disposto e capacitado para tanto, que o ideal seria implementar um isolamento social mais estrito possível, ao mesmo tempo garantindo ao povo trabalhador as condições materiais para respeitar essa quarentena em massa. Países como o Vietnã, que não é um país com abundância de recursos, e mesmo a China, que foi o epicentro inicial da epidemia, se mostraram capazes de fazer isso, e controlaram efetivamente a doença. O passo seguinte seria aplicar a vacina na maior parcela possível da população, garantindo verdadeiramente a imunidade coletiva. Dessa maneira, se reduziria de fato a circulação do vírus, e a vida poderia voltar ao normal. Seria a receita correta a seguir. Já o Brasil vive o pior dos mundos: doença descontrolada e imunização lenta. O morticínio resultante é o efeito previsível de uma condução irresponsável por parte do governo. 

O que temos até agora é a vacinação a conta gotas (devido a escassez de vacinas), o estímulo a aglomerações desnecessárias e sem cuidados básicos, o desmonte continuado do SUS e de outros serviços essenciais. No meio da calamidade, o governo vai passando sua boiada: privatizações, afrouxamento de licenciamento ambiental, reformas anti-populares. O plano parece ser usar o choque e pavor da pandemia, com seus efeitos imobilizadores, para aplicar um tratamento de choque extremo, e destruir tudo o que pode ser destruído, o mais rápido possível – ao passo que o efetivo enfrentamento à pandemia, que deveria ser a prioridade pública nesse momento, é negligenciado. 

Apenas uma pequena parcela da população, a que pode ficar em casa, consegue seguir à risca o isolamento. A maior parte da classe trabalhadora, porém, tem pouca opção. O risco de ser despejado, o risco de não poder prover para a família, a ameaça concreta da miséria total, impõe o contexto concreto em que ir para o trabalho em ônibus lotados, trabalhar em locais pouco ventilados, e contrair uma doença que tem matado seus familiares, amigos e vizinhos mais próximos, acaba parecendo um risco menor. Há também os que se arriscam além do necessário, iludidos por um senso distorcido da gravidade da pandemia e pela confiança em um suposto tratamento precoce, que a rigor não existe. Essa distorção é um grande feito da disseminação organizada de fake news e da adoção de um discurso negacionista por figuras públicas de influência, a mais destacada delas sendo o próprio presidente.

Não é preciso dizer sobre quem recai a responsabilidade da situação pela qual passamos atualmente: a responsabilidade pelos números assombrosos de mortes plenamente evitáveis, pelo desmonte do Estado brasileiro, pelo rebaixamento de nossos horizontes que esse período tem nos trazido. Falar sobre isso é tudo o que temos feito até agora. Falar, se revoltar, tremer de raiva e indignação. A CPI nos tem dado ainda mais assunto para falar dos quase meio milhão de mortos durante a pandemia, e mais especificamente sobre o enorme número de mortes evitáveis, que é o que configura nossa situação atual como genocídio. E, no entanto, falar sobre tudo isso até agora não tem tido efeito nenhum. A situação só piora. Nossa raiva tem sido impotente.

E essa é precisamente a melhor razão que vejo para tomarmos as ruas neste momento: tudo o que tanto temos falado nesse último ano, que tem nos indignado, nos feito lamentar. É hora de fazer algo a respeito. Pois o mais provável é que, seguindo esse rumo, nada será resolvido, sem nossa mobilização coletiva, as coisas continuaram indo de mal a pior. Os quase meio milhão de mortos, até agora, podem ser pouco frente aos tantos mais que perderemos até 2023. Não há nenhum outro motivo para nos colocar nas ruas agora e nos arriscar com a pandemia, além do próprio risco que o governo atual representa para o povo, especialmente durante a pandemia. Outros povos, em outros países, foram às ruas por situações análogas (embora em número de mortos estejamos imbatíveis). Quanto mais vamos tolerar? Quanto mais estrago esse governo continuará a fazer? Quando decidiremos que sofremos coletivamente de um problema muito maior do que o risco de ir às ruas? Se não criarmos as condições para sair da pandemia, estaremos nela quando vierem também as outras ondas, além da terceira. É hora de passar da fala à ação, de converter a raiva individual em ação coletiva.

Não há nenhum outro motivo para nos colocar nas ruas agora, e nos arriscarmos frente ao vírus, além do próprio risco mortal que o governo atual representa para o povo trabalhador, e continuará representando caso não seja derrotado. 

Por tudo isso, ir às ruas sim, para exigir fora Bolsonaro e Mourão, vacina no braço e comida no prato. E se não puder ir às ruas, há muito o que fazer compartilhando materiais sobre os atos nas redes sociais. Eu estarei lá. Essa foi minha escolha.

Para quem também escolher ir às ruas, segue abaixo o material com recomendações de segurança para a pandemia elaborado pela Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares. Já há um considerável corpo de evidências demonstrando que a contaminação pelo coronavírus costuma se dar em locais fechados e pouco ventilados, como é a condição da maioria dos ambientes de trabalho. A maior parte dos eventos chamados “superspreader” (super disseminadores) se deram em ambientes fechados. Mantendo-se ao ar livre, respeitando o distanciamento e usando uma máscara PFF2 é possível reduzir enormemente o risco de contaminação. 

1. As manifestações devem ser feitas SEMPRE em local aberto e bem ventilado

2. Manter distanciamento de 2 metros entre manifestantes.

3. Uso de máscara deve ser obrigatório, de preferência, PFF2/N95 ou máscara cirúrgica embaixo da máscara de pano. Sempre bem ajustadas no rosto, sem vazamentos.

4. Recomendamos aos movimentos que puxam as manifestações que forneçam máscaras adequadas àqueles que não possuem.

5. Muito importante pensar no deslocamento até o ato. Preferir transportes com janelas abertas e usar máscara o tempo todo.

6. Não deve haver abraços ou beijos. Evitar compartilhar objetos pessoais, água e alimentos.

7. Lavar as mãos ou utilizar álcool em gel sempre que for tocar nos olhos, boca, nariz ou na máscara.

8. Leve máscaras extras para outras pessoas que necessitam.

9. Não devem participar as pessoas com sintoma suspeito de Covid-19 ou teste positivo, ou ainda que tiveram contato com pessoas com sintomas ou teste positivo.

Exemplos de sintomas: Tosse, Febre, Cansaço, Dor de cabeça, Coriza, Congestão nasal, Dor de garganta, Perda de olfato ou paladar, Falta de ar e Diarreia.

Sobre os autores

é médico no estado do Ceará.

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