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Paulo Freire lutou até quando pode, às vezes quase pregando no deserto, contra esse fechamento do futuro e encurtamento das nossas expectativas históricas. Foto de Cláudia Velho.

A esperança como motor da história

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Ao retomarmos às ruas, sejamos inspirados pela tradição de luta dos de baixo, como nos ensina Paulo Freire - que via na educação uma “uma forma de intervenção no mundo”, e sabia que para mudá-lo é preciso luta de classes.

Dia 19 de junho tomamos as ruas novamente. Olhando para mais um dia de mobilização nacional, agora contra o governo genocida de Jair Bolsonaro, representante fiel da burguesia mais reacionária e entreguista, podemos constatar que os grupos historicamente oprimidos continuam agindo com profunda esperança. Trabalhadores, mulheres, pretos, periféricos, indígenas, lgbtqia+, mesmo apesar da dura realidade que não deixa de exigir um certo pessimismo da razão, encarnam em sua prática coletiva as palavras do educador Paulo Freire, que nos ensina que “a esperança é um condicionamento indispensável à experiência histórica”. Apesar de estarmos enfrentando o resultado de uma onda conservadora na sociedade e nas instituições, e as dificuldades organizacionais de mobilizar massivamente em tempos de pandemia, foi com essa esperança viva que conseguimos ocupar as ruas em todo Brasil. 

Em movimento, os de baixo resgatam o fio vermelho de uma tradição libertadora insurgente que, apesar de essencial para as transformações históricas, foi escondida na história narrada pelos “vencedores”. Esse rio subterrâneo, ancestral, das experiências acumuladas da nossa classe alimenta as lutas e é alimentado por elas. Reavivar essa memória, por meio de uma educação libertadora, é essencial para a construção do nosso presente e invenção de um novo futuro. 

Esse foi o exercício do historiador e educador inglês Edward Thompson no seu livro A Formação da Classe Operária Inglesa, publicado em 1963. Defensor de uma “história vista de baixo”, Thompson desafiou tanto os mitos nacionais quanto as narrativas modernas do “progresso capitalista”, colocando a classe operária não como mero objeto de forças externas, mas como sujeito de sua própria história. O futuro, portanto, não é o resultado natural do desenvolvimento das forças produtivas, efeito determinístico de leis econômicas necessárias, como acredita certa leitura liberal ou mesmo parte da esquerda. A classe, a partir de sua experiência concreta, no embate contra seus opressores, se constitui como uma força real, autônoma, capaz de fazer história. Para Thompson, além da história não ser criada simplesmente pelos de cima, como querem nos fazer acreditar os donos do poder, os “projetos derrotados” também fazem parte da construção da história. Sem a confrontação, ainda que fracassada, aos modelos hegemônicos dominantes, estaríamos muito piores hoje. Ainda quando não vence, a luta frutifica, em especial porque é só por meio da luta que se faz classe. Nesse sentido, como aponta Thompson, “a classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é sua única definição”.

Esse foi o percurso intelectual de vários teóricos-militantes da luta de classes e da tradição libertadora dos de baixo, como Walter Benjamin e sua “história a contrapelo”. Benjamin já afirmava, décadas antes de Thompson, não ter “nenhuma identificação com o vencedor”. Piotr Kropotkin, uma das principais referências anarquistas do começo do século XX, em sua análise “dos comuns” durante a Revolução Francesa, lança luz sobre projetos radicais escamoteados, e conta como foi nos grupos populares para além das facções políticas da Assembleia Nacional que surgiram os ideais “do comunismo, e da livre associação”.

No Brasil também temos uma história dos de baixo com forte tradição libertadora, sufocada desde a colonização, que deve ser retomada como um dos elementos inspiradores para a luta de classes no nosso tempo. Paulo Freire dizia que na medida em que o oprimido “se apercebe como testemunha de sua história, sua consciência se faz reflexivamente mais responsável dessa história”. Aí está a esperança: a consciência histórica revela uma realidade social que não é estática, e a transformação aparece como uma possibilidade real. O oprimido, absorvendo sua própria história, está também construindo-a, pois “este é um pensar que percebe a realidade como processo, que a capta em constante devenir e não como algo estático”.

A tradição libertadora e a pedagogia do oprimido na história brasileira  

A tradição brasileira da história dos de baixo e dos oprimidos inclui rebeliões, insurreições, greves e projetos alternativos – do Quilombo dos Palmares no enfrentamento ao sistema escravista ao porto de Santos tomado pelos trabalhadores do movimento operário republicano. Os projetos de educação libertadora, que inflamam esperanças e alargam horizontes, também possuem uma longa linhagem. Confrontando a educação da Igreja, ainda dominante no século XIX, ou mesmo do Estado patriótico, os operários se organizavam para construir, em escolas racionalistas, uma educação libertadora nos bairros periféricos. 

No Rio de Janeiro, ainda em 1898, houve uma tentativa de constituição de um Centro de Estudos Sociais pelo militante anarquista José Sarmento Marques, registrado pelo periódico O Despertar. Em 1902, o jornal O Amigo do Povo noticiou a criação do Círculo Educativo Libertário “Os Amigos do Povo” localizado na Rua Brás Cubas, na cidade de Santos. A história do movimento operário registra inúmeras outras experiências, como a escola Eliseu Reclus de 1907 em Porto Alegre, difundida pelos redatores do periódico A Luta, a Escola Libertária Germinal de 1902 em São Paulo, ou a Escola Moderna n.º 1 em 1912, entre os bairros do Belenzinho e Brás. 

“Que a escola racionalista é a escola do futuro não resta dúvida”, noticiava o jornal A Plebe, onde também se afirmava que “os trabalhadores tudo têm de fazer por seu impulso próprio” e “nada têm de esperar dos governos”. Nessas escolas, não se tratava apenas de rejeitar o conteúdo conservador e a pedagogia de obediência, que a classe dominante inculcava no estudante com o objetivo de controlar a força de trabalho. O que estava em pauta era um projeto coletivo, levado a cabo pelo movimento operário global, que buscava uma nova abordagem educacional: uma educação que contribuísse com a formação de um novo ser humano, a partir de práticas de igualdade e liberdade.  

Paulo Freire é herdeiro desse caudal histórico. Nascido em 1921 em Recife, apesar de sua origem de classe média, com pai capitão da Polícia Militar, enfrentou os efeitos da crise de 1929. Os biógrafos apontam o rápido empobrecimento da família. Em 1943, o futuro educador se matricula no curso de Direito da Universidade Recife, onde se interessa pelos temas de epistemologia, filosofia da linguagem, e se aproxima de autores humanistas e revolucionários. É provável que tenha sido sob a influência dessas leituras, junto com sua experiência material, que tomou a escolha de nunca exercer a profissão de advogado, mas tornar-se professor. A partir daí, Freire esteve envolvido com projetos educativos, tanto na prática docente como também no nível administrativo e político, sendo indicado, em 1946, ao cargo de diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social no Estado de Pernambuco e, em 1961, como diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife.

Sob o governo de João Goulart, Paulo Freire esteve envolvido no Plano Nacional de Alfabetização, uma das medidas das reformas de base. Com o golpe civil-militar de 1964, porém, o projeto foi encerrado. Freire partiu para o exílio, primeiro na Bolívia e depois no Chile. Lá continuou suas práticas educativas, sua reflexão no Movimento de Reforma Agrária do governo da Democracia Cristã e seu trabalho na Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação. É durante o exílio que escreve seus livros clássicos, que o tornaram mundialmente conhecido: “Educação como prática da liberdade” (1967) e “Pedagogia do Oprimido” (1968). Com a anistia, voltou ao Brasil em 1980, ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores (PT) e foi secretário da Educação do município de São Paulo, sob a gestão de Luiza Erundina.

 A esperança como motor da história e a construção do futuro no presente

Seja nos seus escritos durante o exílio ou na sua atuação brasileira na redemocratização, a tarefa central de Paulo Freire era a luta contra uma educação bancária, aquela que prioriza a transmissão de cima para baixo de conteúdo, na qual o educando é apenas um receptor sem nenhum engajamento. Para Freire, esse tipo de educação fazia parte de um projeto político autoritário e era funcional para a manutenção do poder da elite proprietária. Posteriormente, o modelo casou-se bem com advento do neoliberalismo e sua cultura individualista e atomizada. 

A “educação bancária” reproduz uma realidade hierárquica: tanto o educador quanto os educandos se veem obrigados a se encaixar em uma ordem naturalizada, se adaptar ao mundo estático da desigualdade e da dominação de classe. Trata-se, em suma, de uma educação que apoia objetivamente a ideologia dominante, não fazendo nada para transformá-la. É cúmplice do que Freire costumava chamar de “a malvadez neoliberal”, que com o “cinismo de sua ideologia fatalista” sustenta uma “recusa inflexível ao sonho e à utopia”.

Com a queda do Muro de Berlim, ganha força a narrativa dos vencedores de que os projetos socialistas haviam fracassado. O sentimento da falta de esperança se espalha pelo mundo: não há alternativa, o capitalismo é inevitável, a história acabou. É também se insurgindo contra a proibição do pensamento único ao “direito ao delírio”, e pondo em questão a suposta inevitabilidade da globalização neoliberal, que as comunidades indígenas de Chiapas anunciam seu levante zapatista em primeiro de janeiro de 1994, no mesmo dia que o NAFTA entra em vigor. Na contra-mão das narrativas dominantes, os zapatistas afirmam, e mostram na prática, que “um outro mundo é possível”.

Paulo Freire lutou até quando pode, às vezes quase pregando no deserto, contra esse fechamento do futuro e encurtamento das nossas expectativas históricas. A educação, afirma Freire, é sim “uma forma de intervenção no mundo”, mas a principal, inclusive, para mudá-la, é a luta social e política “em favor da recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a outra menos injusta e mais humana”. É esse horizonte que alimenta a esperança, que quebra a “inexorabilidade do futuro” e “a negação da história”.

Para Freire, defendendo uma pedagogia na qual “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”, a educação deveria ser primeiramente “uma aventura de desocultação da verdade”. Essa verdade – a ciência, saberes e história dos oprimidos e para os oprimidos, que “dê voz e autonomia aos oprimidos” – é que “cria possibilidades para a sua produção ou a sua construção”. 

Reconstruir um método de ensino que nos dê esperança contra um mundo que parece imóvel é apenas uma das ferramentas em uma estratégia de luta mais ampla. A esperança do qual fala Freire não é a esperança da espera, mas da construção permanente do futuro no próprio presente, fundada na práxis e no horizonte de um mundo novo concreto. O futuro “existe na medida em que eu ou nós mudamos o presente”, e por isso mesmo “a história é possibilidade e não determinação”. Essa práxis transformadora, quando se apodera do presente e se dirige ao futuro com esperança, termina por se transformar no motor da luta de classes e, assim, da história. Uma luta por meio da qual a liberdade, herdeiras de tantas lutas passadas, se faz sentir no mundo; a luta dos oprimidos, com sede e fome de justiça, para recuperar sua humanidade roubada.

É como protagonistas dessa história, do presente e do futuro, que nos encontramos hoje. Devemos fazer dos próximos atos e levantes uma possibilidade, na esperança de construir um outro mundo possível, diferente da realidade desumana construída para servir os interesses dos de cima, contra os de baixo. Tomando consciência de nossa tradição libertadora, educando uns aos outros, a construção de um novo mundo se dá a partir das lutas do presente. Como nos lembra Paulo Freire:

“Esperançar é se levantar,
Esperançar é ir atrás,
Esperançar é construir, 
Esperançar é não desistir!
Esperançar é levar adiante,
Esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo.”

Para a esperança se concretizar, não podemos nos dar ao luxo de uma espera passiva, nesse momento em que o governo da morte sabota o isolamento social e já sentimos o sistema de saúde entrar em colapso. Os direitos políticos e trabalhistas básicos que hoje existem foram conquistados por meio de muita luta, e é também só por meio da luta que a superação do Covid-19 será possível. Nesse momento, para enfrentar a pandemia temos que aliar nossa esperança com uma práxis estratégica. 

A massificação do movimento Fora Bolsonaro, mostrada na expressiva adesão dos atos de rua, é uma oportunidade para reconstruir nossa força social, acreditando na tradição libertadora que os movimentos sociais e políticos, dos de baixo, feministas, antirracistas, libertários, socialistas, têm. A classe trabalhadora, e todos os oprimidos, devem estar vivos para esperançar.

Sobre os autores

é doutor em História Social (USP), professor do ensino fundamental, militante sindical e pesquisador integrante do Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA).

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Antifascismo and Educação

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