UMA ENTREVISTA DE
Daniel DenvirDaniel Denvir
Porque a cultura está tão impregnada pelo niilismo, pela vontade do exercício de poder cru e transgressivo, dominação e crueldade, desde Donald Trump e Jair Bolsonaro até as pessoas mais comuns?
Em seu livro, Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política anti-democrática no ocidente, traduzido para o português pela Editora Filosófica Politeia, Wendy Brown aponta para o papel do neoliberalismo. Não apenas como um programa econômico que esmaga o movimento trabalhador, privatiza os serviços públicos, desregulamenta a indústria, libera a mobilidade do capital e reduz os impostos sobre os ricos, mas também como uma força que “preparou o terreno para a mobilização e legitimação das forças antidemocráticas que emergiram na segunda década do século XXI. A ascensão da política antidemocrática avançou no vácuo dos ataques à sociedade entendida como vivida e cuidada em comum, e à legitimidade e prática da vida política democrática”.
Brown adverte contra a tentação intelectual de confiar numa única grande ideia como o neoliberalismo para explicar tudo. Os danos causados pelo neoliberalismo também explicam muito sobre os problemas que afligem os liberais e democratas que se opõem a Trump e Bolsonaro. Como ela coloca, “ultraje, moralização, sátira, e vãs esperanças de que fragmentação interna ou escândalos à direita produzam sua autodestruição são muito mais comuns que estratégias sérias para desafiar essas forças com alternativas convincentes”. Isso se deve, em parte, ao fato dos liberais do establishment democrata procurarem uma saída para o niilismo como Joe Biden, ao representar uma espécie de “volta a normalidade”.
Mas penso que também está em jogo uma forma de niilismo liberal, nas justificativas que muitos apresentaram para não votar em Bernie Sanders, ainda que apoiassem suas políticas. Que as propostas de Bernie ou sua candidatura eram simplesmente impossíveis. Que a democracia, sua promessa de autogoverno e, por meio dele, uma sociedade e um futuro humanos neste planeta podem ser ideais nobres, mas não há nada que possamos fazer para implementá-las.
É tarefa da esquerda, então, lutar pelo social e pela democracia, reconstruir o poder expandindo os horizontes das pessoas, insistir que os nossos destinos estão ligados, e que podemos juntos, imaginar e lutar por um futuro habitável.
DD
Você escreve que muitos debates sobre as causas do trumpismo erram ao oporem explicações econômicas as sociais: “Compreender as raízes e as forças da situação atual requer apreciar a cultura política neoliberal e os sujeitos que ela produz, e não apenas as condições econômicas e racismos duradouros que a gestaram”. Que tipo de cultura política e de sujeitos humanos o neoliberalismo produziu, e como isso, por sua vez, se enquadraria numa análise econômica da ascensão do trumpismo?
WB
Comecemos pelo entendimento do senso comum do neoliberalismo como um conjunto de políticas econômicas. Ele costuma ser assim: o neoliberalismo introduz cortes no Estado social, privatiza bens públicos, transforma a tributação progressiva em regressiva, esmaga os sindicatos e, sobretudo, desregulamenta o capital nos planos local e global. Isso é verdade, mas o neoliberalismo é muito mais que um simples conjunto de políticas. É algo que não apenas transforma o capital, mas que nos governa – a sociedade, a cultura, o modo como compreendemos nós mesmos, como tecemos nossas relações sociais. O neoliberalismo transforma o que poderíamos chamar um Estado social ou uma ordem econômica keynesiana não apenas ao nível da política econômica, mas a um nível muito mais profundo, que diz respeito à nossa compreensão do que seja a liberdade, o Estado, as nossas relações uns com os outros, a sociedade, a moralidade.
Por que isso é importante? Porque o neoliberalismo lança um ataque frontal à própria noção de bem público e de sociedade. Margaret Thatcher disse claramente: “Não existe sociedade. Só existem homens e mulheres individuais” e, depois de uma pausa, “e suas famílias”. Não há bem comum, não há bem social, não há sociedade, apenas indivíduos e/ou famílias.
Essa fala parafraseia ideias que Friedrich Hayek desenvolveu em muitas páginas e livros atacando a própria noção de sociedade e, com ela, a ideia de um Estado orientado para produzir o bem da sociedade como um todo. Isto significa um Estado que pode redistribuir riqueza através da tributação progressiva ou de bens sociais, mas também um Estado que pode implementar justiça social através de medidas anti-discriminatórias e outras políticas pró-igualdade. Um Estado que poderia corrigir erros como o racismo sistêmico, ou as formas sistemáticas e institucionais de submissão das mulheres que fazem com que elas recebam menos, tenham menos autonomia e, fundamentalmente, sejam menos iguais.
O neoliberalismo não ataca apenas a ideia da ordem econômica keynesiana, mas a própria ideia do Estado social, ao nível do social. Porque isso é importante? Porque coloca no seu lugar a ideia da liberdade econômica dos indivíduos, mas também a ideia de uma ordem moral que emana da “moralidade tradicional”. Em vez do Estado intervir nas hierarquias, nas exclusões, nos racismos, nos sexismos, na heteronormatividade que há tanto tempo sustenta a nossa ordem, o neoliberalismo dá lugar a uma cultura política que diz: não, a liberdade e o bem repousam nas ordens morais tradicionais.
O que temos quando líderes autoritários como Trump emergem pelo mundo? Uma população que está há quatro décadas imersa na ideia de que o Estado não deve intervir na liberdade econômica nem na moralidade tradicional.
Temos uma profunda desconfiança na democracia como algo que tende a se exceder, a construir um Estado que legisla demais, que tenta impor o bem comum, forçar a justiça social. Temos uma população influenciada por uma racionalidade que diz que a justiça social é um erro, um ataque à liberdade.
Combine isso com o desastre econômico que o neoliberalismo produziu. Desigualdades extremas e desenfreadas, deslocamentos, desindustrialização no Norte com o capital fugindo para o Sul e para o Leste globais à procura de mão-de-obra e recursos mais baratos. Temos uma população que, por um lado, foi alienada por essa forma de razão neoliberal e, por outro, está tomada de rancor e ressentimento pela piora da sua situação de vida, vendo seu futuro econômico em colapso, e que sente cada vez mais que tem alguém recebendo aquilo que seria seu por direito.
Então Trump aparece e diz: “São os imigrantes. São todas estas pessoas que estão furando a fila. Vocês são ungidos. Vocês deveriam ter a preferência”. Além disso, há toda a demonização das elites globais, do “politicamente correto”, do multiculturalismo, e assim por diante. Tudo isso nasce e é produzido a partir de uma ordem política, econômica e cultural neoliberal.
DD
Você argumenta que não podemos compreender plenamente o neoliberalismo sem análises marxistas e foucaultianas. O que cada uma oferece, e o que fica faltando se nos apoiamos apenas em um e não no outro?
WB
Se ficarmos apenas com os marxistas, ficamos com a ideia de que o neoliberalismo é um capitalismo bombado. Pode ser uma forma particular de capitalismo bombado, porque a financeirização nasce do neoliberalismo, junto com o capital rentista e outras formas de riqueza “improdutiva”. Mas ainda se trata, basicamente, da exploração da mão-de-obra e da transferência da riqueza dos pobres para os ricos. O neoliberalismo não ataca apenas a ideia da ordem econômica keynesiana, mas a própria ideia do Estado social.
Isso é importante. E está absolutamente correto, só que não nos diz nada sobre a ordem maior de razão que produziu uma orientação específica para esse desenvolvimento por parte das populações por ela governadas. Não nos diz nada sobre o impulso antidemocrático do neoliberalismo, o modo como atacou frontalmente as instituições democráticas e a própria ideia de decisões democráticas sobre como as coisas devem ser organizadas, como os bens devem ser distribuídos, como o mundo social e econômico deve ser abordado.
Não nos diz nada sobre o tipo de sujeito, de seres humanos, que o neoliberalismo gera. Como ele converte trabalhadores em capital humano, não apenas precarizando a economia, mas também difundindo a ideia de que o objetivo de cada um é aumentar o próprio valor, impedir sua depreciação, e fazê-lo em todos os níveis: do perfil nas redes sociais ao currículo, do voluntariado às relações pessoais.
DD
O empreendedorismo de si mesmo.
WB
O empreendedorismo é uma primeira fase. Depois dela, temos a financeirização de si mesmo. Nela, ao invés de apenas empreender com seus ativos, você começa a se apresentar como uma marca, para atrair investidores no seu “eu” e calcular seus próprios investimentos. É uma mudança importante. Aqui eu precisaria deixar Foucault, mas manter o arcabouço que ele oferece, para pensarmos as relações de poder pelas quais o “eu” ou os sujeitos são feitas. Ele nos ensina que o neoliberalismo oferece uma ordem na qual nos tornamos empreendedores de nós mesmos – essa era a ideia de Thatcher e Reagan. Mas hoje, temos um modelo financeirizado, que não implica ter literalmente um portfólio financeiro, mas tratar a si mesmo como se fosse um.
DD
Seu livro analisa a relação entre os fundadores do neoliberalismo e suas ideias, como Hayek e Milton Friedman, e o neoliberalismo realmente existente em que vivemos. Por que as ideias desses pensadores importam, se, como você escreve, “O entusiasmo popular por regimes autocráticos, nacionalistas e, em alguns casos, neofascistas, alimentado pela demagogia e promoção de mitos, diverge radicalmente dos ideais neoliberais tanto quanto os regimes comunistas estatais repressivos divergiam das ideias de Marx e dos outros intelectuais socialistas, ainda que, em cada caso, a planta deformada tenha crescido a partir do solo fertilizado por essas ideias”?
Então por que eles importam? Seria porque, embora este não seja o mundo que eles desejaram, é o mundo no qual suas ideias se concretizaram e tornaram necessárias?
WB
Nós não diríamos que Marx não importa porque o comunismo de Estado se desviou tanto da sua visão do comunismo como forma de emancipação, igualdade e retração do Estado, onde reduziríamos o tempo de trabalho a um mínimo e finalmente seríamos livres para “expressarmos nossas energias humanas” de forma verdadeiramente criativa.
Nenhum regime comunista de Estado chegou perto disso, mas nem por isso dizemos: “Ah bom, então não importa… Marx não importa porque as coisas tomaram outro rumo”. Não, as ideias realmente importam, porque foram inspiradoras.
Thatcher se referia a A constituição da liberdade de Hayek como “nossa Bíblia” em conversas com seus assessores sobre como desmantelar o estado de bem-estar social no Reino Unido. Não estou dizendo que apenas as ideias importam. Mas penso que elas importem. Com certeza Friedman foi importante para inspirar a primeira experiência neoliberal no Chile de Augusto Pinochet. Os homens que avançaram a neoliberalização no Chile foram, como sabemos, os chamados os “Chicago Boys”, que se formaram sob a orientação de Friedman. E os “ordoliberais”, essa outra escola de liberalismo menos conhecida dos americanos, foram extremamente influentes na Europa e no desenvolvimento e transformação da União Europeia.
DD
Tanto que alguns chamam a União Europeia de um “Estado ordoliberal”.
WB
Exatamente. Os intelectuais fundadores são muito importantes. E não são todos iguais. Não concordavam em tudo, mas partilhavam uma visão comum do livre mercado e da moralidade tradicional como ordens capazes de organizar o que viam como um Estado totalitário surgindo a partir da social-democracia.
Argumento que essas ideias precisam realmente ser compreendidas em detalhe, quanto à sua visão e seus princípios organizadores – o que Foucault chamou de “racionalidade política” neoliberal. Ao mesmo tempo, precisamos de um pouco de Friedrich Nietzsche. Nenhuma ideia fundadora se concretiza sem sofrer modificações pelo caminho, e até mesmo inversões, à medida que vão se cruzando com outros poderes, e sendo apropriadas e distorcidas. Será que os neoliberais sonhavam com um liberalismo autoritário antidemocrático? É assim que eu descreveria um regime como o de Trump. Será que sonharam com isso? De forma alguma. As próprias ideias não moldam totalmente a história. Intersectam outros tipos de poderes, e geram efeitos que são, muitas vezes, não intencionais.
Ao contrário da massa energizada de seguidores apaixonados do QAnon, eles esperavam que as massas fossem completamente pacificadas politicamente, reduzidas a atores econômicos e morais que apenas cuidam da própria vida. Interessavam-se em despolitizar as massas, despolitizar o Estado e fazer dele um construtor e estabilizador de mercados, seguindo os imperativos do crescimento econômico, facilitação da ordem competitiva global, e proteção de uma ordem moral que havia perdido o rumo – um lembrete de que ideias apenas não fazem história. Elas podem ter um papel importante na produção de novas possibilidades – é por isso que as difundimos, é por isso que você e eu acreditamos nelas, que achamos importante que os estudantes as conheçam e reflitam sobre elas, colocar novas ideias em circulação numa cultura política dominada por ideias que nos parecem terríveis.
Mas as próprias ideias não moldam completamente a história. Interceptam outros tipos de poderes, e geram efeitos que são muitas vezes não intencionais.
DD
Você escreve: “O social é onde somos mais do que indivíduos ou famílias, mais do que produtores econômicos, consumidores ou investidores, e mais que meros membros da nação”. Isso, continua, é “precisamente o que o neoliberalismo se propôs a destruir em termos conceituais, normativos e práticos”.
O que é “o social”, e por que ele é fundamental para uma cultura democrática? Por que neoliberais como Hayek acreditavam que a sociedade não existia? E por que isso lança as bases para o totalitarismo?
WB
Quando tentei defini-lo na passagem que acabou de ler, meu objetivo era lembrar os leitores de que se aceitamos o individualismo exacerbado enraizado nas famílias e compreendemos os indivíduos como simples atores econômicos e morais numa ordem em que perseguem seu próprio bem, valores e crenças, e se nos livrarmos do domínio que chamamos de “sociedade”, eliminamos duas coisas importantes.
Primeiro, eliminamos o domínio em que vivemos realmente juntos, não apenas enquanto indivíduos em grupos familiares, mas em um mesmo mundo comum. Mas também eliminamos o espaço em que Marx e outros pensadores da igualdade e da desigualdade identificam os poderes que submetem alguns grupos, elevam outros, excluem e marginalizam. Eliminamos o espaço onde o racismo, o sexismo e, é claro, a classe age.
Era exatamente isso que os neoliberais queriam eliminar. A ideia de que existe entre nós uma teia de relações que subordinam uns e elevam outros. Eles queriam eliminar a teia de relações e poderes entre nós, que potencialmente nos unem, mas que também nos estratificam e alienam, atomizam, e nos colocam uns contra os outros.
Acreditavam piamente que o social, a crença no social, era a matéria prima do totalitarismo – que era aqui que podíamos estar unidos pelo Estado, cuidados mas também dominados pelo Estado, e por ele rearranjados de uma forma que achavam totalmente inadequada. Que o que precisávamos fazer para nos livrarmos desse Estado inchado era primeiro atacar a própria ideia de que haveria um domínio do social, um domínio da sociedade ao qual o Estado pertencia, e no qual deveria intervir. Isso significa tirar da mesa tudo o que se relacione a justiça racial ou de gênero. E, claro, significa retirar do Estado a tarefa da redistribuição. Então, se você é rico ou pobre, isso tem a ver com seu empreendedorismo ou fracasso individual. O Estado não tem de oferecer escolas ou merenda, ou qualquer outra coisa que possa remediar ou atenuar essas desigualdades.
DD
Uma consequência em rejeitar as relações de poder é que, se a sociedade não existe, então aqueles que reclamam de racismo, sexismo ou exploração são considerados fracos, floquinhos de neve, e também, de modo até contraditório, “déspotas do politicamente correto”. Como a negação do social facilita essa notável inversão, na qual os oprimidos são demonizados como aqueles que oprimem a liberdade dos verdadeiros americanos? E como isso, por sua vez, alimenta a cultura de vitimização tão difundida na direita, desde os evangélicos e seu complexo de perseguição até ao nosso ex-presidente tão chorão e sensível?
WB
É possível ampliar nossa compreensão de como a intervenção do Estado na sociedade e a justiça social foram demonizados. O primeiro a decretar a demonização dos “guerreiros da justiça social” (social justice warriors, ou SJW) foi o próprio Hayek. Esses antagonistas têm, portanto, um belo pedigree.
Para eles, a moralidade tradicional é a ordenação adequada das relações, porque ela foi testada, evoluiu ao longo dos anos; é a nossa forma evoluída de viver bem na Terra, e portanto só pode estar correta. Se o Estado começa a equalizar as relações entre os gêneros, legitimar sexualidades não-normativas, desestabilizar as hierarquias raciais, não só esse despotismo interfere na liberdade das ordens evoluídas e das pessoas que nelas vivem, como é uma interferência na própria ordem das coisas. É estatismo, totalitarismo, ditar onde deve haver liberdade. Isso é o politicamente correto. Mas também é, implicitamente, uma espécie de exoneração dos fracos, dos que estão no fim das hierarquias, os flocos de neve. Que se queixam de que não progredindo ou enriquecendo, ou fracassando na escola, por causa de um ou outro vetor de poder que dizem que deve ser corrigido. Quando na verdade isso é culpa deles, que não são bons empreendedores de si, não agem corretamente como um sujeito neoliberal, além de se lamentar e dependerem do Estado para tudo. Assim, rejeitam a justiça social junto com o politicamente correto, tomando ambos como totalitários e inadequados. Choramingam e reclamam, são fracos e dependentes quando deveriam ser duros e subir por esforço próprio, como o nosso ex-presidente imagina que fez.
Por que vemos todas essas queixas vindas do outro lado do espectro político? Como é possível censurar, simultaneamente, a cultura dos “flocos de neve” e a cultura totalitária, para depois se vitimizar enquanto evangélico ou apoiador de Trump?
Parece-me que é preciso entender como a direita passou a se ver como vítima do politicamente correto. Mas sua revolta se volta também contra o que eles imaginam serem elites que controlam as instituições, inclusive as acadêmicas. É um lamento contra a chamada elite global, e com tudo o que se associa ao mundo de Davos. Contra todos aqueles que conseguiram o que não mereciam, ou que têm poder para prejudicar o povo. Aqui é onde o populismo ressentido dos apoiadores de Trump se funde com o anti-estatismo neoliberal. Eles não são idênticos.
Vemos portanto uma convergência entre o anti-estatismo neoliberal e os movimentos contra a justiça social, que se fundem com o destronamento da branquitude e da masculinidade nos últimos quarenta anos. Não se trata de neoliberalismo puro e simples.
DD
Vamos ligar tudo isto ao modo como os neoliberais viam a política. Você escreve que a igualdade política é um fundamento necessário à democracia, e que, dentro de um Estado-nação capitalista, criar as condições para a igualdade política requer medidas que fomentem a igualdade social e econômica. “Mais que uma persuasão ideológica, a justiça social – a modulação dos poderes do capitalismo, colonialismo, raça, gênero e outros – é o que se coloca entre a manutenção da promessa (sempre não cumprida) de democracia e o abandono total dessa promessa”. Como isso se relaciona à discussão sobre o social? Como a destruição ou degradação do social lança as bases para esse ataque ao político em geral, e à democracia em particular, que é tão fundamental para o projeto neoliberal?
WB
Aqui, eu dividiria sua pergunta em duas. Primeiro, por que a atenção social é tão importante, se queremos ter alguma esperança em qualquer tipo de democracia? Esqueça a democracia constitucional ou “burguesa” liberal. Se quisermos ter quaisquer versões de democracia no século XXI que sejam mais satisfatórias e eficazes, temos de dar atenção a isso. Mas a segunda parte da questão tem a ver com as agressões diretas dos neoliberais à democracia. Às vezes esquecemos que democracia é mais que votar. Se trata realmente de compartilhar um governo, os poderes nos governam, precisamos de igualdade política. Isso não é o mesmo que igualdade econômica. É necessário que todas as vozes sejam ouvidas, que a capacidade de participar seja possível a todos.
É por isso que o domínio que chamamos do “social” é tão importante. Todos devem ser acolhidos, alimentados e cuidados na sua saúde básica, mental e física. Precisam ter uma educação adequada para compreender o que se passa no mundo. Portanto, precisamos de abrigo, alimentação, capacidade participativa, conhecimento e educação, ou informação suficiente para isso.
Se for possível conseguir o apoio das massas, um apoio universal, é possível ter demanda massiva por um Estado social.
Isso não é radical. Os democratas sempre souberam que a democracia precisa ser teorizada e praticada, no Ocidente ou em qualquer outro lugar. Onde a democracia é reduzida às forças do mercado ou ao voto, ou a um mínimo de emancipação – tudo isso, emancipação e voto importam, mas são insuficientes para termos uma democracia.
O melhor exemplo disso são os efeitos da desestruturação da educação pública sobre a democracia americana nos últimos quarenta anos. Sem uma população instruída, não existe democracia. Especialmente agora, quando precisamos ser capazes de compreender o que se passa, de filtrar a informação para que possamos fazer parte das discussões e poderes que nos governam. Por isso é importante pensar sobre a importância do social para a democracia. Não basta querer e de repente nos tornamos democratas.
Em segundo lugar, os neoliberais entenderam que se reduzissem a democracia ao voto, ao liberalismo cru, conseguiriam se livrar do perigo do Estado social. Eles foram muito claros a esse respeito: se concedesse o direito de voto às massas, se universalizassem o voto, passariam a receber demandas dessas massas por um Estado social.
DD
Essa é uma visão antiga dos conservadores, de que o sufrágio universal é um grande problema.
WB
É, eles são muito contundentes com relação a isso. Mas eles não tentaram impedir o sufrágio universal, pelo menos seus principais nomes. Disseram apenas que precisaríamos limitá-lo, conter a democracia entendida como exercício da soberania popular. Não é o povo governando, é apenas o povo com direito ao voto. E aqueles que legislam não devem legislar na economia ou na ordem social – devem apenas legislar a seu favor, para mantê-las de pé, funcionando. Manter os mercados competitivos, construir leis que ajudem a proteger a moralidade tradicional e os mercados. Mas não podem entrar e interferir neles.
E então, se conseguissem constranger os legisladores a não fazerem mais que proteger os mercados e a moral, conseguiriam restringir a democracia sem a necessidade de acabar com o sufrágio universal. E reduziram a democracia a que? Ao liberalismo, ao liberalismo clássico com um viés “neo”. Porque ao invés de suporem que os mercados funcionam por si próprios, e que o melhor Estado é um Estado mínimo ou nulo, precisam de algum Estado para manter tudo funcionando. Precisam de alguns tecnocratas, mas não querem que essas pessoas sejam representantes democráticos.
É aí que chegamos num ponto crucial. Eles estavam perfeitamente contentes, em especial Hayek e os ordoliberais, com algo que chamaram abertamente de “autoritarismo liberal”. Era possível ter um autoritário no poder, desde que ele respeitasse tanto os mercados como a moral e as liberdades civis do povo.
DD
Porque para eles, apenas o totalitarismo era iliberal.
WB
Esse é o problema: para eles, totalitarismo significa um Estado expansivo, intrusivo. Autoritarismo significa simplesmente autoridade, e desde que o liberalismo seja o limite, então tudo está bem. E é isso o que temos hoje. Quer dizer, não temos exatamente a versão que eles queriam, porque eles odiariam Trump. Trump era instável, caótico, atrapalhava os mercados, bagunçava tudo. Ele é um demagogo, operado pela mobilização das energias das massas que os neoliberais queriam desativar. Tudo isso eles detestariam.
DD
Ao invés de “o político” ser limitado, ele agora está em todos os lugares.
WB
Certo. Mas algo como a União Europeia, tudo bem, porque essa é uma operação tecnocrática que garante que todos os Estados, inclusive os do Sul da Europa, sejam atrelados a uma liberalização rigorosa, medidas de austeridade, formas tecnocráticas de governança. Trata-se literalmente de uma governança por algoritmos. Se a Grécia ou a Espanha submetem um orçamento à UE que não esteja devidamente equilibrado e não pareça suficientemente competitivo, ele vai tropeçar num monte de barreiras algorítmicas e será rejeitado, medidas de austeridade serão impostas. Os neoliberais não se importariam com isso.
DD
Milton Friedman escreveu: “A ameaça mais fundamental à liberdade é o poder de coagir, seja pelas mãos de um monarca, de um ditador, de uma oligarquia, ou de uma maioria momentânea”. Mas graças ao neoliberalismo nós temos, de fato, uma oligarquia. Como Friedman e os outros eram capazes de negar a existência de relações de poder nos mercados, e que essas assimetrias do poder privado tendem a crescer se não forem controladas pelo governo? E que esse poder de mercado concentrado inevitavelmente exerce um poder político, não apenas em termos de relações de trabalho capitalistas – que eles também negariam – mas diretamente, através do próprio Estado democrático. Friedman chega a essa ideia apenas definindo tautologicamente a coerção como poder repressivo exercido pelo Estado?
WB
Pela leitura que eu e outros fizemos dos clássicos neoliberais, nenhum deles teria endossado os regimes plutocráticos ou oligárquicos que temos hoje. Eles entendiam que se a democracia pudesse correr sem freios, não só as massas exigiriam um Estado social, mas outro grande perigo seriam os monopólios e a concentração de poder econômico. O sonho deles não era ter um Estado dirigido pelo capital, mas ter um Estado isolado das demandas do povo, por um lado, e da captura pelo capital, por outro. Nenhum dos dois aconteceu. É aqui que vemos a revolução se desviar das formações intelectuais que a inspiraram.
É por isso que o trabalho de pessoas como Thomas Piketty e outros é tão importante. Eles revelam até que ponto a captura do Estado pelos plutocratas, pelo capital, não só tornou os ricos mais ricos, mas também estrangulou as economias no nível da produtividade. As transformou em economias rentistas que estão sempre cortando benefícios fiscais e subsidiando os ricos, ao mesmo tempo em que espremem os pobres. Isso não é uma economia de mercado: é um Estado capturado pelo capital. Os ordoliberais argumentavam que o Estado tecnocrático era uma proteção contra isso, uma tecnocracia que não fosse governada por interesses.
DD
Os ordoliberais parecem muito mais esclarecidos sobre que tipo de poder estatal seria necessário para chegar onde eles desejavam.
WB
Sim. E eles também estavam muito mais próximos do fascismo. Eram o único grupo na Sociedade Mont Pèlerin que não via o fascismo como um inimigo tão perigoso quanto o socialismo. Isso não significa que eles fossem fascistas, mas que não viam problema numa sociedade de massa organizada por um Estado forte que cuidasse do povo por meio de práticas políticas morais e que estabelecesse um regime tecnocrático pouco responsivo às demandas populares.
Há aqui uma espécie de processo multifásico, que se reforça mutuamente. O Estado torna-se menos democrático, mas também gera hostilidade e desinteresse para com a própria noção de democracia. Isso leva as pessoas a uma espécie de redpilling – oh, a democracia é falsa, e agora entendo que é assim mesmo que as coisas sempre funcionam – que abre caminho para o apoio popular ao autoritarismo.
Na minha visão, as coisas parecem bem diferentes na esquerda. A campanha de Bernie Sanders, o Occupy, Black Lives Matter, o Movimento Sunrise, o Green New Deal – todos parecem convergir fundamentalmente na primazia do social. O chamado de Bernie para “lutar por alguém que você não conhece”, a ocupação coletiva do espaço público no Occupy como forma de reintroduzir a política de classe na democracia, o caráter multirracial dos protestos antirracistas de 2020, a insistência do Sunrise de que podemos sim imaginar, e construir juntos, um futuro habitável para todos.
DD
Você acha que o ataque neoliberal à democracia teve um efeito contrário sobre essa nova esquerda socialista, que vem demandando um aprofundamento maior da democracia como nunca tivemos neste país, ao mesmo tempo em que a direita se abraça a um tipo de niilismo antidemocrático?
WB
Sim. Começando neste país, com o Occupy, e depois com a primeira onda do Black Lives Matter, há uma insistência em democratizar a vida política, social e econômica. No Occupy, com a identificação dos 99%, e depois o que se tornou uma palavra de ordem comum nos movimentos sociais da década seguinte: “Isso é a democracia”. Se reunindo em assembleias, praças, protestando, gritando, mas também se apresentando, no Black Lives Matter, Occupy, Extinction Rebellion e outros, como uma espécie de demanda crua por parte do povo por um mundo melhor, no qual o poder não esteja concentrado nem usado contra nós, contra o planeta. Concordo que existe uma demanda e uma visão democrática emergente e radical desses movimentos.
Podemos, no entanto, fazer uma pausa para pensar se o anti-estatismo dos neoliberais seria uma dessas heranças inadvertidas que também fazem parte daquilo que molda e influencia algumas das noções desses movimentos. Penso que a ênfase na ajuda mútua que emerge hoje da ala anarquista de muitos desses movimentos, a desconfiança de formas de distribuição estatais, o modo como o abolicionismo se moveu através de todos os domínios do poder estatal e a desconfiança de qualquer possibilidade de democracia, justiça social ou socialismo que envolva o poder estatal ou o uso do Estado – penso que temos que, no mínimo, refletir sobre isso.
Trago isso à tona porque a campanha de Bernie, que apoiei do início ao fim, mobilizou o povo para o poder popular, para os movimentos sociais, para as demandas populares, para todas as coisas certas. Educação, saúde, mudanças na forma como entendemos os bens públicos – tudo isso, no fim das contas, aterrissa aos pés do Estado. Fazer tudo isso funcionar exigiria não apenas uma quantidade enorme de mecanismos estatais para criar programas, gerar e distribuir bens. Sabemos que todos eles exigiriam, também, o capitalismo. Todos precisam ser financiados de alguma forma, dependem de algum tipo de crescimento. Não estou dizendo que eles exigem a competição desregulada dos neoliberais, mas tampouco se trata de uma economia política radicalmente nova.
Trata-se de um capitalismo radicalmente transformado ou re-regulamentado e redistribuído, mas que não pode ser tão radical a ponto de ruir. Há, portanto, algumas coisas que foram herdadas pela esquerda. E em nossas visões de uma democracia mais radical, um mundo mais justo socialmente, mais sustentável, ainda temos um pouco do anti-estatismo dos neoliberais.
DD
Esta não é uma questão antiga para os socialistas, ou seja, como aproveitar a social-democracia, que levanta recursos do capitalismo tirando-os do topo da pirâmide, ao mesmo tempo em que se busca um horizonte para além do capitalismo?
WB
É uma questão milenar, é realmente grande, especialmente agora que o capitalismo está totalmente globalizado e financeirizado. Isso significa que não é mais possível reproduzir, por exemplo, a experiência nos países escandinavos, pois aquilo foi um produto do pós-guerra, de um capitalismo muito menos globalizado e pré-financiado com muitos recursos nesses estados. Agora o jogo é outro, em termos de onde ocorre a produção da maioria dos bens que a maioria das pessoas neste país, e em outros lugares do Norte, deseja e necessita. E é um jogo diferente, ainda, pela urgência de cortar para ontem nossa relação com os combustíveis fósseis. Portanto, é uma questão antiga com todo um novo conjunto de desafios e dificuldades.
Precisamos estar à altura dela e não prometer mágica, ao mesmo tempo em que respondemos à emergência da crise climática e à devastação que as formas prévias de democracia produziram. Essas crises gêmeas significam que é preciso acontecer bastante dramático. Porém, ao mesmo tempo, as possibilidades de cortar os fios da financeirização são quase nulas. E a possibilidade de ser capaz de reconfigurar radicalmente a produção e distribuição globalizadas, como Bernie prometeu fazer, para devolver os empregos aos americanos – isso também é mágico. Portanto, precisamos ser realistas aqui, mesmo quando precisamos ser radicais e utópicos e urgentes na realidade que tentamos construir.
DD
Vamos voltar à relação do neoliberalismo com o conservadorismo social, tanto em teoria como na prática, que é realmente o cerne do seu argumento no livro. Para Hayek, tanto o mercado quanto a moral se “enraízam na liberdade e geram ordem e evolução espontâneas”. Ambos “produzem ordem e desenvolvimento ‘espontaneamente’, sem depender de amplo conhecimento ou razão, e ou de uma vontade intencional de desenvolvê-los, mantê-los ou dirigi-los”. Para Hayek e outros neoliberais, mercados e moralidade tradicional são semelhantes porém distintos, unidos contra um inimigo comum, ou são mais basicamente parte de uma mesma ordem orgânica que estrutura moralmente as pessoas, e as coloca em relação através da sinalização dos preços?
WB
Eles só são semelhantes para os neoliberais de uma forma significativa, que é essa qualidade que Hayek chama de “espontaneidade”. Com isto, ele quer dizer que ambos emergem a partir de uma força que lhes é própria, sem serem dirigidos pela mente humana ou mesmo pela intenção humana, e não advêm do conhecimento humano – eles surgem de um sistema auto-construído.
Segundo Hayek, os sistemas emergentes dos mercados e da moralidade tradicional funcionam porque já foram experimentados e testados. Eles evoluem, se adaptam, mudam. Eles ordenam nossas ações, mas não no sentido de nos dizer o que fazer. Eles ordenam nossas ações através dos incentivos, constrangimentos e costumes que abrigam.
Mas é nesse ponto que o paralelo provavelmente precisa parar, porque o que Hayek diz sobre os mercados é que a ordem é dada pela concorrência. E o que eles dizem sobre a moral é que essa ordem é dada pela hierarquia, por uma ordem que é estruturada colocando cada um no seu lugar.
DD
Sim, não é coercitivo, assim como os mercados. É uma conformidade voluntária, e de alguma forma não coercitiva.
WB
Exatamente. Não é coercitiva, porque a hierarquia na realidade não implica um Estado. Isto é prestidigitação, é claro, mas estou apenas tentando passar a ideia. Amy Coney Barrett [Ministra da Suprema Corte indicada por Trump] é perfeita aqui. Ela fazia parte de uma ordem religiosa que era totalmente hierárquica. As mulheres eram submissas e concordavam com tudo, desde um lugar inferior na hierarquia até fornecer sexo sob demanda, mas concordavam com tudo porque gratificava a necessidade da ordem. Ela poderia ter ido embora quando bem entendesse.
DD
Submissão voluntária.
WB
Correto.
DD
E o que isso significa?
WB
Provavelmente, que neste ponto precisamos voltar a Platão. Encontre seu lugar na ordem. Nada é melhor do que fazer o que você foi preparado para fazer. A compreensão deles sobre os mercados não é que sejam hierárquicos. Os mercados são desiguais. Eles têm resultados desiguais, e, segundo eles, as pessoas que se sentem prejudicadas com esses resultados os confundem com a liberdade que tinham no próprio mercado – os resultados são separados do fato de que, no mercado, você é livre e igual.
Mas as ordens morais são diferentes. Elas não são estruturadas por igualdade e liberdade. Elas são estruturadas pela hierarquia e por uma ordem que é estável, e reconfortante, generativa, segura, porque foram experimentadas e testadas ao longo do tempo.
Hayek é o melhor teórico sobre esse ponto. É o que vai mais longe. Ele tem consciência de que o que ele chama de moralidade tradicional – uma moralidade cristã, patriarcal, centrada na propriedade privada, familiar – não é a única no mundo. Ele não é ingênuo. Sabe que há outras coisas acontecendo, não apenas no Ocidente mas também fora dele. Mas ele insiste que as únicas ordens morais que realmente duram têm três princípios centrais, que sobrevivem à competição entre as moralidades: a família, a propriedade privada e a liberdade individual. Temos aqui a ideologia completa que torna a moralidade tradicional conciliável com um princípio de liberdade, da família heteronormativa e da propriedade privada.
DD
Isso se baseia em um mal-entendido bastante óbvio de como as tradições realmente funcionam. Para Hayek, esse conjunto burkeano de normas consensuais são refinadas através de um processo quase darwiniano de evolução social. Quando, na realidade, qualquer tradição é constantemente construída e contestada.
Como Corey Robin escreve, ela é volitiva, produtiva, voltada para o futuro, uma reação política que visa a manutenção de formas diversas de hierarquia. Se olharmos para o tipo de tradição mais clássica da história dos EUA, vemos o Antebellum [período escravocrata anterior à Guerra Civil] e o sul das leis [segregacionistas] Jim Crow. Os ordoliberais, pelo contrário, são explicitamente construtivistas. Eles querem um Estado tecnocrático governado por especialistas para proteger o mercado da democracia, mas também um programa político e social para desmassificar a sociedade, “combatendo a proletarização através, por um lado, com a empreendedorização (e portanto re-individualização) dos trabalhadores e, por outro, da sua reintegração em práticas de auto-provisionamento.”
É justo dizer que a versão do neoliberalismo que prevaleceu nos Estados Unidos parece ser, em última análise, um ordoliberalismo reinterpretado através do conservadorismo cristão americano?
WB
É uma boa formulação. Sim e não. Eu diria que sim, na medida em que vemos o que há muito chamamos de neoconservadorismo conjugado com o neoliberalismo. É a ênfase na autoridade familiar e num Estado forte que vem pelo movimento neoconservador, articulado com uma ênfase neoliberal na livre iniciativa, liberdade individual máxima, e Estado mínimo. Parece uma versão do ordoliberalismo, exceto que há uma ansiedade exacerbada com relação ao Estado. Mas acho que sua formulação pode servir, porque o temos ao fim e ao cabo é o endosso de um regime autoritário que protege uma ordem de mercado e uma ordem moral tradicional. Esse movimento que os ordoliberais fizeram, de situar o indivíduo na família e até mesmo numa espécie de vida agrária, aldeã anterior ao século XX, foi muito específico deles. E isso surgiu de algo que está indicado na primeira parte da passagem que você leu: eles tinham muita consciência do perigo do tipo de sociedade atomizada que o capitalismo produz.
Eles se preocupavam com isso sob a rubrica da proletarização. O que acontece quando cada vez mais trabalhadores são transformados em apêndices do capital, despojados de suas famílias, terras, comunidades, e assim por diante. Por isso eles entenderam a necessidade de uma espécie de programa estatal que reinstalasse as pessoas na ordem de coisas, ao mesmo tempo em que permitisse a sua transformação em unidades de capital humano.
DD
Há um paralelo real aqui com o pai do neoconservadorismo, Irving Kristol. Ele achava que o capitalismo era positivo em alguns aspectos, porém moralmente degradante e conduzia ao perigo do niilismo. Então o papel da moralidade conservadora era se contrapor à degradação moral provocada pelo mercado.
WB
Certo. Igreja e Estado. Você precisa de um Estado com uma disposição moral forte e liderança nessa direção, e de pessoas comprometidas com os valores da religião e da família.
DD
Você escreve sobre como o neoliberalismo influenciou a jurisprudência e as políticas sociais conservadoras, unindo liberdade de mercado e moralidade tradicional na proteção do direito privado de discriminação por parte das empresas. Julgamentos recentes na Suprema Corte americana, como o Hobby Lobby ou o Masterpiece Cakeshop, são reveladoramente animados pelos mesmos tipos de ideias com as quais pessoas como Barry Goldwater justificaram sua oposição à Lei de Direitos Civis de 1964.
Como os conservadores conseguiram unir a propriedade privada à moral tradicional e à família, e usar a Primeira Emenda [da Constituição americana] para permitir tanto fóruns privados de dominação religiosa quanto, de modo mais amplo, para restringir o direito do governo de regular os negócios privados?
WB
Nos últimos anos, muitos processos junto à Suprema Corte tentaram barrar o avanço de medidas igualitárias: casamento entre pessoas do mesmo sexo, igualdade de gênero, direitos reprodutivos das mulheres, Hobby Lobby, o caso do bolo de casamento, os chamados “centros de crise de gravidez”, que se passam por clínicas médicas mas que pertencem, na verdade, ao movimento pró-vida. Nesses casos, vemos a Suprema Corte usando a Primeira Emenda e a proteção da liberdade de consciência para expandir os direitos das corporações e empresas. As empresas e corporações foram adquirindo o direito à liberdade de consciência, o direito à liberdade religiosa, como direitos que lhes permitem exercer pressão contra a igualdade de direitos, quando quer que desejem fazê-lo.
É um movimento inteligente que precisa ser entendido como enraizado no neoliberalismo, pois tem a ver com a concessão do status de pessoa a atores econômicos, das grandes corporações às pequenas empresas, enquanto as próprias pessoas são reduzidas a capital humano.
O neoliberalismo transforma cidadãos em sujeitos, e faz da nossa subjetividade capital humana – é pra isso que passamos a existir, é isso que aperfeiçoamos, que protegemos. Ao mesmo tempo, essa personalidade, que é agora capital humano, estendeu o status de pessoa ao capital. E ao fazê-lo, o capital adquire direitos civis, originalmente destinados pelos fundadores [da República estadunidense] a indivíduos. Por exemplo, a liberdade de expressão, graças ao Citizens United, e a liberdade de consciência e religiosa.
Assim, o que temos hoje é, por um lado, o direito do capital de fazer o que bem entende, de se valer do poder de consciência e liberdade religiosa para reverter medidas destinadas a assegurar a igualdade daqueles que não a tinham – aqueles que, em virtude de raça ou religião, religiões minoritárias, gênero ou sexualidade, foram historicamente marginalizados. Os centros de crise de gravidez tentam ao máximo disfarçar o que realmente são, para atrair as mulheres grávidas. Escrevo sobre isso no livro: eles atraem jovens grávidas, geralmente em crise, alegando serem espaços que darão às mulheres a estória completa sobre quais são as suas opções. Quando eles, na verdade, existem para evitar que as mulheres optem por fazer um aborto.
O julgamento em si versava sobre se os centros tinham ou não que fazer uma declaração dizendo que não eram instalações médicas e que havia uma ampla gama de opções médicas logo adiante, e se elas tinham que exibir isso em algum lugar em seus escritórios. E a Suprema Corte decidiu que não, porque essas pessoas têm a liberdade religiosa de fazer o que quiserem. Portanto, há um reconhecimento de que se tratam de entidades religiosas que têm motivações religiosas, e que o que está sendo expandido é a sua liberdade enquanto tal. Isso avança lado a lado com a desregulamentação. Essas entidades não estão sendo regulamentadas. Estão recebendo mais liberdade para agir como bem entenderem.
DD
Talvez a maior contradição entre o neoliberalismo ideal e o neoliberalismo realmente existente seja o Estado securitário e todas as suas manifestações. Nós vemos essas contradições nas fronteiras do país, no Estado carcerário, no exterior através do imperialismo. Mas você escreve que um “modelo duplo de privatização” – a privatização econômica e também essa privatização familiar e cristã – se estende à própria nação. A nação é apresentada alternadamente como uma empresa competitiva que precisa fechar melhores negócios, e como um lar pouco seguro, sitiado por estranhos mal-intencionados ou não”.
Você pode explicar essa dupla privatização, e como ela liga a privacidade de um lar seguro à privacidade de uma nação segura? Por que o Estado neoliberal se mostra tão securitário e repressivo?
WB
Não acredito que seja possível explicar totalmente o Estado securitário, o Estado policial, a militarização cada vez maior das fronteiras apenas através do neoliberalismo. Uma teoria não pode fazer todo o trabalho aqui. Dito isso, embora os neoliberais fundadores não fossem nacionalistas ardentes – Quinn Slobodian escreveu o trabalho definitivo explicando que o neoliberalismo sempre foi um projeto globalista –, a virada nacionalista pode ser explicada não apenas por velhos apegos primitivos, pela crise de imigração na Europa ou pela projeção, sobre “outros” racializados, dos problemas das classes trabalhadoras e médias brancas.
Acho que também precisamos refletir sobre até que ponto a privatização de tudo, o ataque aos bens públicos e ao social, facilitaram o caminho para que os políticos autoritários ou de direita emergissem das ruínas do neoliberalismo, das suas ruínas econômicas e sócio-políticas, com o argumento de que a nação pertence a um povo etno-nacionalista, branco, que está sendo invadido por estrangeiros. O exemplo mais claro disso é Marine Le Pen na França, que, antes de ser derrotada por Emmanuel Macron, literalmente fez campanha com o slogan “Esta é a nossa casa”. Nós temos as chaves. A França é a nossa casa. Temos o direito de decidir abrir a porta ou não, e se a porta está fechada, quem pode entrar.
Essa ideia da nação como uma casa que pertence àqueles que já se encontram ali corrobora perfeitamente a ideia de que não há sociedade, muito menos sociedade global, muito menos sociedade global estratificada pelo colonialismo, pelo pós-colonialismo e pelas sequelas da intervenção americana e europeia no resto do mundo. Ela se encaixa perfeitamente na ideia de que somos donos da nossa casa. Somos donos de nosso país. As fronteiras, as paredes da nação são simplesmente versões ampliadas ou ramificadas das fronteiras e das paredes do lar. Nenhum Estado mundial pode nos dizer quem entra; nenhum Estado-nação pode intervir na minha casa. É um pouco de retórica anti-social, anti-política e obviamente anti-inclusiva. Mas é importante pensar como a privatização neoliberal tem sido facilmente redirecionada para um fim para o qual não foi originalmente pensada.
DD
Seu livro retrata a destruição causada pelo neoliberalismo, e conclui com uma discussão fascinante sobre o tipo de reacionarismo que emerge das ruínas do neoliberalismo. É o tema do niilismo. O niilismo permeia a política de Trump, desde a rejeição da possibilidade de uma verdade fundamentada, até o prazer de provocar ofensa, sofrimento e violência. Desde a trollagem até a indiferença quanto às mudanças climáticas, o movimento incel, a celebração da imoralidade transgressiva de Trump como sinal de sua força e poder, incluindo o poder de vingança. Isso é visível, e resultado de tudo o que vimos discutindo, desde “o transnacionalismo explícito e politização dos valores religiosos” até um discurso de MLK [Martin Luther King Jr.] sendo usado em um comercial da caminhonete Dodge no Super Bowl, a possibilidade de pagar por uma atualização VIP de qualquer coisa, e mais recentemente, a conduta sexual descaradamente desviante de Jerry Falwell Jr. Não se trata, você escreve, “apenas dos efeitos de desigualdade do neoliberalismo”, mas também “seu espírito implacavelmente desigual”. Explique seu argumento sobre essa virada para um niilismo tão difundido e intenso, e por que você afirma que isso é pior que qualquer coisa que Nietzsche poderia ter imaginado.
WB
Comecemos falando um pouco do niilismo. Geralmente, o termo é usado para se referir a uma situação em que nada tem significado, não há valores, apenas escuridão. É usado em muitas culturas da esquerda millennial para chegar ao fatalismo e à escuridão, onde tudo vai acabar mal de qualquer maneira.
O uso que eu faço do termo é um pouco diferente, pois ele vem do século XIX, de todo um conjunto de pensadores como Leo Tolstoy, Fyodor Dostoevsky e sobretudo Nietzsche. O que Nietzsche nos ensina sobre o niilismo? Que não é uma condição em que os valores desaparecem, mas na qual eles são separados de seus fundamentos. O que ele quer dizer é que, quando a ciência e outros feitos da modernidade como a razão e a racionalidade destroem o fundamento de valores estáveis e verdades morais, essas verdades e a própria verdade como valor não desaparecem, mas tornam-se banais, substituíveis, instrumentalizadas.
Essa é a condição em que nos encontramos hoje. Os valores são monetizados, tornam-se marcas, são empunhados como armas. E os exemplos que você acabou de dar são perfeitos. Jerry Falwell Jr. realmente sintetizou isso bem, basicamente dizendo que, ao fim e ao cabo, nunca acreditou em nada daquilo. Foi apenas um bom negócio.
DD
Ele estava no próprio programa de tevê conservador, tipo: opa, me pegaram, fui um garoto mau.
WB
Exatamente. E o fato de Trump ser tão facilmente perdoado por tudo, pelo seu casamento contratual, suas aventuras sexuais. Precisamos entender essa condição não como pessoas que fingem se engajar num conjunto de valores morais ou religiosos rígidos, enquanto trapaceiam nos bastidores. Precisamos entendê-la como uma condição mais geral que afeta a nossa cultura como um todo. Tem muito a ver com as razões pelas quais nos encontramos num mundo da “pós-verdade”.
O que aconteceu ao longo dos últimos séculos foi a desvalorização dos valores. Como os valores foram desvalorizados mas não desapareceram, eles também afrouxaram seu domínio sobre a consciência. Por que? Porque a consciência requer uma certa sublimação daquilo que Freud chamou de “instintos”, e Nietzsche, de “vontade de poder”. A consciência requer um certo estrangulamento da vontade humana, dos instintos humanos, do desejo humano, do impulso humano. E quando os valores são desvalorizados, essa consciência começa a se afrouxar. Os valores tornam-se tangíveis, triviais e instrumentalizados; eles não têm a mesma incidência sobre a formação das subjetividades.
O que ocorre então? Nietzsche nos advertiu sobre a “dessublimação”. Esses instintos, vontades ou desejos vêm à tona. Mas é aqui que precisamos adicionar à mistura o pós-estruturalismo. A ideia de instinto, de vontade como essa coisa disforme, não é muito útil. A ideia de impulso ou de agir a partir das feridas, das formações particulares que temos – rancor, ressentimento, raiva, frustração – isso é outra história.
Um dos exemplos que costumo utilizar é o movimento incel. O que é? Um movimento de caras que se sentem perdedores, e que em vez de apenas se sentirem perdedores – como poderiam ter feito há oitenta anos, dizendo: “Oh Deus, somos só uns caras que não conseguem arrumar uma namorada. Nós realmente nos sentimos mal” – trazem à tona a raiva, rancor, ressentimento, misoginia, revolta contra outros homens que estão levando as garotas. É uma revolta que pode se tornar violenta.
Vemos algo parecido nos Proud Boys [grupo de extrema direita], em outros tipos de impulsos violentos e trollagem cotidiana. Apenas raiva e rancor, ressentimento e agressividade. Portanto, quando dizem que estamos nos tornando uma cultura incivil e que precisamos voltar a ser bonzinhos, não se pensa sobre o porquê dessa falta de civilidade. O que acontece aqui é a mescla de uma forma de niilismo que cresceu lentamente, e depois foi amplificada pelo neoliberalismo, com todas as frustrações e dificuldades, pesadelos e feridas, sofrimento e fracasso de viver neste mundo todos os dias.
DD
Tenho uma teoria sobre o QAnon que queria compartilhar com você, que pensei enquanto lia seu livro. O QAnon é, para a base da direita religiosa de Trump, a re-sublimação do niilismo trumpista na forma de um propósito moral histórico. O que a princípio pode parecer não fazer muito sentido. Mas o QAnon é um movimento milenarista que identifica essa divisão moral máxima entre uma cabala pedófila de elites malignas de um lado, e do outro Trump, o herói, que irá destruí-los e iniciar uma idade de ouro abençoada.
Sua popularidade explodiu durante a pandemia. Portanto, parece estar operando no mesmo nível biopolítico da pandemia e da resposta que o governo dá a ela.
WB
Suspeito que teremos muitos artigos, livros, depois megalivros sobre o QAnon. Tudo isso virá. Mas meu próprio pensamento é um pouco diferente, porque, antes de tudo, precisamos lembrar que o QAnon não é popular apenas nos Estados Unidos. Li uma estatística assustadora há alguns dias, de que uma em cada quatro pessoas pesquisadas na Inglaterra acha o QAnon perfeitamente credível. Ele tem muitos seguidores na Alemanha.
Portanto, sim, quanto ao efeito pandêmico. E certamente um dos efeitos da pandemia tem a ver com o paralelo entre extrair um soro dessas criancinhas e as ansiedades sobre o vírus e seu movimento, mas também a possibilidade de vacinas e assim por diante, o que se conecta com os antivacina.
Mas também acho que não devemos nos apegar muito aos conteúdos específicos do QAnon. Por que? Porque ele continua a amadurecer. Desde o início havia a pedofilia, mas o resto continua mudando e se adaptando, e os seguidores continuam crescendo. Então, precisamos nos perguntar por que uma teoria da conspiração – que, como você diz, é muito maniqueísta e oferece forças causais do mal e salvadores do bem – teria tanta eficácia hoje. Por que ela é tão popular neste momento? Em algum nível, ela faz o que todas as teorias da conspiração e a maioria das religiões fazem, que é oferecer uma visão explicativa do mundo em meio a uma enorme complexidade e poderes de todos os tipos, diante dos quais as pessoas se sentem não apenas impotentes, mas ignorantes.
Mas eu acho que o ponto sobre o Trump é interessante porque, sim, corre em paralelo à invocação constante que o próprio Trump fez das forças ocultas que o ameaçavam, da mídia, do Estado profundo. Isso ocorre em paralelo à constante afirmação de inocência, sua e de seus seguidores, em meio a toda a escuridão, terrenos pantanosos e inimigos. Mas Trump também é cada vez menos credível. Eu me pergunto até que ponto o QAnon, enquanto teoria da conspiração, ajuda a manter os seguidores de Trump apoiando-o, enquanto prestam cada vez menos atenção no que ele diz.
Isso é algo estranho de dizer sobre uma teoria da conspiração tão selvagem e louca. Mas eu só me pergunto se há algo além de todos aqueles poderes que não conseguimos classificar hoje, e diante dos quais nos sentíamos impotentes antes, se há algo além dos efeitos isolantes da pandemia que, como muitos apontaram, são aplacados pela socialidade no universo alternativo do QAnon, porque ele oferece às pessoas novos amigos, mundos e causas. Se não haveria também algo no sentido de ressuscitar o enquadre de mundo que Trump desenhou e a ideia dele como salvador, mesmo que ele esteja, na prática, extrapolando a imagem que o cristianismo evangélico construiu: “Certo, ele é um salvador improvável, mas é o nosso homem, Deus o enviou para nós com um propósito”. O QAnon dá mais um passo nessa direção e, de certa forma, está além de qualquer coisa que Trump possa dizer ou fazer.
Acho que precisamos tratar o QAnon como uma espécie de espectro ou continuum, em vez de algo completamente diferente por si só. Há tanta coisa hoje que a direita e a esquerda precisam entender sobre o que poderíamos chamar de poderes invisíveis, ou poderes que estão além de nossa compreensão. Os trolls russos, o vírus, o capitalismo de vigilância, as finanças, quem diabos é capaz de entender tudo isso? Mesmo os investidores financeiros altamente treinados não entendem. Mas há também o chumbo na nossa água, o tráfico sexual e de drogas, o 5G. Mesmo o escândalo Irã-Contra foi difícil para muitos acompanharem.
Há algo no campo de forças dos poderes contemporâneos – não me surpreende que, à medida que vamos tentando montar os quebra-cabeças, alguns ajuntamentos de peças acabam assumindo essa forma peculiar. Um pouco mais extremo, mas não tão esotérico assim, enquanto um desvio dos esforços gerais para mapear os poderes que nos cercam, que nos organizam e que ameaçam nos matar, inclusive as mudanças climáticas.
DD
E usando, na verdade, o material mais comum e já disponível produzido durante décadas de pânico moral sobre segurança infantil, medo de estranhos, pânico sexual.
WB
Certamente. E isso combina tão bem com as outras formas com que o pânico moral e as forças pró-vida vêm pintando o mundo. Mas aqui é onde eu terminaria. Se é verdade que a atração pelo QAnon vem de alguma combinação entre uma figura substituta do próprio Trump – porque mesmo que Trump esteja no quadro, ele não precisa mais ser ouvido ou acreditado, como eu disse – e um modo de navegar os poderes contemporâneos quando nos sentimos tão pequenos, assustados e existencialmente ameaçados por eles, talvez o que precisamos seja algo como uma nova narrativa psicossocial para a estrutura do fetiche. Freud nos explicou que essa estrutura consistia em: “Eu sei, mas ainda assim…”. Isto é, eu sei que não é verdade, mas ainda assim acredito. Eu sei que carregar aquele pé de coelho no bolso não vai me manter seguro, mas ainda assim, não consigo sair de casa sem ele.
E como o conteúdo do QAnon e de outras teorias conspiratórias, inclusive aquelas que organizam as milícias de direita, continua se transformando, mudando, talvez o “eu sei, mas ainda assim” seja parte da sua eficácia. É realmente lamentável que a neuropsicologia esteja em ascensão hoje enquanto forma de explicar o comportamento humano, quando o que realmente precisamos são narrativas sobre a psique em uma população global que enfrenta perigos existenciais. Os poderes que acabo de descrever não têm idade. E não há autoridade confiável, apenas ondas de catástrofes e problemas. Veja o que estamos enfrentando aqui mesmo na Califórnia: pandemia, recessão, incêndios florestais, mares em ascensão – é avassalador. Talvez o que precisamos sejam narrativas psicossociais da nossa subjetividade, nossos desejos, o que nos atrai, o que nos orienta, e não melhores relatos neuropsicológicos sobre as substâncias químicas que movimentam nossos cérebros.
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