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Bolsonaro aponta para placa com foto do general Emílio Garrastazu Médici, ditador entre 1969 e 1974. Foto Flickr.

“Só falta eles soltarem um grito de Viva a Morte!”

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Com um olho na bola e o outro na política, o lendário jornalista esportivo Juca Kfouri mostra que a luta de classes também está nas arquibancadas e conta como a tentativa de Bolsonaro de usar o futebol para acobertar seus crimes pode fracassar - como aconteceu na ditadura.

UMA ENTREVISTA DE

Hugo Albuquerque e Nathália Urban

Entrevista por
Hugo Albuquerque
Nathália Urban

José Carlos Amaral Kfouri (São Paulo, 1950), o Juca Kfouri, é uma das figuras mais lendárias da história do jornalismo esportivo brasileiro. Embora recuse o adjetivo, alegando ser de carne e osso como todos nós, é inegável o papel que ele desempenha nessas décadas de profissão, principalmente na cobertura dos bastidores do futebol. Atualmente, tem uma coluna na Folha de S. Paulo, um blog no UOL e apresenta o programa Entrevistas na TV dos Trabalhadores (TVT).

Poucos jornalistas reúnem a obstinação e a resiliência que Juca tem ao lutar duramente contra as estruturas do esporte considerado paixão nacional. Essa luta reproduz o drama da vida brasileira: de um lado, toda a criatividade do povo, as torcidas e o espetáculo de cores, sons e ginga, do outro, a exploração bárbara disso pela oligarquia nacional.

Juca é um militante incansável que luta para transformar o futebol brasileiro, inclusive no período democrático. A trajetória dele se inicia na Aliança Libertadora Nacional (ALN) – movimento de resistência à ditadura liderado por Carlos Marighella – e no Partido Comunista Brasileiro (PCB).  

Rigoroso, ele cuida de analisar futebol e política considerando a autonomia dos dois fenômenos, o que ajuda a entender melhor a relação entre ambos, em alianças quase sempre desfavoráveis à classe trabalhadora.

Hoje, ele não mede palavras e chama as coisas pelo nome, não poupando adjetivos como “fascista” ou “genocida” para classificar Jair Bolsonaro, o ora ocupante da presidência brasileira, que usa o futebol de forma recorrente, nas suas camaleônicas e constantes trocas de camisa.

Enquanto larga milhões de brasileiros à morte sem vacinas, Bolsonaro se empenhou para receber a Copa América, ou nas palavras de Juca “Cova América, em solo brasileiro para pura autopromoção por ufanismo nacional. Trata-se da maior intervenção no futebol nacional desde a demissão de João Saldanha, o revolucionário treinador da Seleção Brasileira, pela Ditadura Militar às vésperas da Copa do Mundo de 1970. É nesse contexto, que Juca fala à Jacobin Brasil e cuja íntegra pode ser vista aqui.


HA/NU

O que o jovem Juca, aluno de Ciência Sociais da Universidade de São Paulo (USP), aprendeu sobre a luta de classes nas arquibancadas?

JK

Eu só fui para a faculdade de Ciência Sociais da USP porque já havia tido muitas lições da luta de classes nas arquibancadas. A primeira noção clara [de lutas de classes] que eu tive foi no estádio do Morumbi, cujas cadeiras cativas eu frequentava por conta de parentes que eram dirigentes são-paulinos. A coisa que mais me deixava enfurecido, quando o São Paulo ganhava do Corinthians, no período da fila corintiana, era quando eu ouvia das cativas a torcida do São Paulo berrar para a do Corinthians “vão tomar ônibus seus pobres! Agora vão pegar fila seus pobres!”. Eu pensava “mas que absurdo, já não bastava ganhar o jogo e ainda pisoteia uma comunidade mais humilde”. Nesses episódios, olhando para a torcida da elite São Paulo nas cadeiras cativas mandando os pobres corintianos nas arquibancadas “tomar ônibus”, eu entendi que havia uma diferença essencial que move o mundo.

Como corintiano, nunca tive problemas com o Palmeiras, mas eu ficava realmente angustiado, sofrido e magoado quando o Corinthians perdia para o São Paulo. Eu só superei isso quando me tornei profissional por duas razões. Quando chegou ao São Paulo um uruguaio fabuloso chamado Pablo Forlán, o mais corintiano dos são-paulinos, e depois com a chegada do Telê Santana nos anos 1990. Telê me fazia torcer pelo tricolor, salvo quando jogava contra o Corinthians. 

HA/NU

Para o assombro de alguém que viu a ditadura, mas depois viu a redemocratização, o que é viver sob o Bolsonarismo, ainda mais nesse contexto pandêmico?

JK

É um pesadelo que eu jamais pensei que iria viver de novo. Com uma diferença enorme e muito triste. Eu só tinha quatorze anos quando se deu o golpe de 1964. Eu consigo me lembrar do meu pai, um democrata visceral, dizendo que “essa porcaria iria durar mais de vinte anos” – como acabou durando. Mas eu só fui me politizar mais tarde, aos 16 ou 17 anos, por influência de três primos que me introduziram na Aliança Libertadora Nacional (ALN), o grupo clandestino de resistência à ditadura cujo grande líder era Carlos Marighella. Aí, eu acabei participando da retirada do país de pessoas perseguidas pelo regime e, inclusive, na esteira disso fui motorista do braço direito do Marighella, o Joaquim Câmara Ferreira, também chamado pelos codinomes de “Velho” ou “Toledo”. Assim, eu comecei minha militância política para valer. Acabei preso no Doi-Codi, depois ingressei no Partido Comunista Brasileiro (PCB) quando a luta armada deu-se como derrotada. 

Mas veja, era uma época em que você lutava para restabelecer um processo democrático que havia sido interrompido pelos fuzis e botinas das Forças Armadas. Antes de 1964, o Brasil vivia uma democracia e em 1965 haveria uma eleição presidencial. Naquele pleito, provavelmente, seria eleito Jucelino Kubistchek, que de comunista não tinha nada – e se não fosse ele, ganharia uma liderança de direita, o Carlos Lacerda. Pelo alegado medo do “comunismo” deram um golpe no governo democrático de João Goulart. Foi por essa indignação, essa perplexidade, que muitos jovens como eu começaram a vida política, sem ter muita noção das coisas, e por tudo o que vivíamos: tortura, mortes, censura, corrupção – muita corrupção que sequer podia ser noticiada pela censura. 

Mas a gente olhava para frente com a perspectiva da volta da democracia. Olhava para frente tendo ao lado todo o movimento da música popular brasileira, com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque. Olhava para frente  tendo ao lado todo o movimento cultural, do teatro, a resistência da imprensa, principalmente a imprensa alternativa. Olhávamos para a frente com otimismo, com a certeza que mais cedo ou mais tarde, derrubaríamos a ditadura. Hoje vivemos o inverso, toda luta é para impedir que haja uma nova noite sob o Brasil para não permitir que aconteça outra ditadura. Só que ali, eu tinha meus 20 anos, hoje eu tenho 70 anos. Olhar para isso hoje e viver isso de novo é uma coisa inacreditável. Eu me peguei pensando sobre isso: eu corro risco de voltar a ser preso. Quando eu tinha 20 anos, eu tinha muito medo de ser preso. 

Embora eu soubesse que estava fazendo uma coisa legítima, que era resistir à ditadura, também sabia que estava fora da legalidade que o regime fixou e poderia ser torturado ou morto. Eu tinha livros ditos subversivos, tinha codinome, atuava numa organização clandestina, sabia que podia ser preso. Eu tinha medo. O meu medo com 20 anos era, sob tortura, entregar gente. Eu não poderia suportar isso. 

Eu me dou conta que posso ser preso de novo, hoje, avô de duas netas. A diferença é que eu não tenho medo por duas razões: a primeira, é que estou dentro dos cânones da democracia brasileira ou do que restou dela e a segunda é que aos meus 70 anos, eu tenho total superioridade moral sobre essa gente, esses fascistas – o que eles podem fazer contra mim? Eles podem me bater, me pendurar num pau de arara, me dar um tiro? Vai ser desagradabilíssimo, mas o que eles podem arrancar de mim? O que eu estou dizendo aqui, o que eu escrevo toda semana, aquilo que eu falo vinte e quatro horas por dia? Eu não tenho nada o que esconder. Sim, eles são fascistas, são adeptos da tortura, são genocidas, estão matando meio milhão de brasileiros. Há essa diferença. 

É terrível viver assim. Minhas netas estão crescendo e me perguntam, sobretudo a mais velha, ao ver a CPI: “isso não pode ser verdade, vovô” — e eu sou obrigado a dizer a elas, “eles recusaram as vacinas, são genocidas, estabeleceram a necropolítica no Brasil”. Só falta eles soltarem um grito de “Viva a Morte!” como o célebre general espanhol fascista José Millán-Astray. Só isso que falta no Brasil.

HA/NU

Os militares, tanto na ditadura quanto atualmente, continuam obcecados pelo futebol. Comente um pouco sobre a demissão de João Saldanha, às vésperas da Copa de 1970 e o projeto da Escola de Educação Física do Exército.

JK

Recentemente, eu escrevi sobre isso: o Tite não é o Saldanha. O Saldanha classificou a Seleção Brasileira com seis vitórias para a Copa do Mundo. Ele foi assistir ao sorteio das chaves da Copa no México, que seria o país-sede, deu uma coletiva para a imprensa internacional e entregou a todos uma relação dos presos políticos no Brasil. Quando ele retornou, a ditadura se deu conta que teria de derrubar Saldanha da Seleção .Um comunista absolutamente declarado, treinador da Seleção Brasileira, podendo voltar da Copa do Mundo como campeão. Ele teria de ser derrubado como acaba acontecendo. Já ali, era um projeto fascistóide de usar a Seleção como um circo para quem estava com fome, um motivo de alegria para compensar todas as barbaridades que os golpistas estavam fazendo nos subterrâneos do país. A classe trabalhadora estava absolutamente aprisionada, os salários arrochados. 

Então, eles colocam a Seleção para treinar na Escola de Educação Física do Exército, com uma comissão técnica também de lá e um brigadeiro como chefe da delegação. “Brasil ame-o ou deixo-o” foi ali que eles cometeram um erro de achar que a população era tão desprovida de inteligência a ponto de imaginar que o campeão do mundo [para o povo] era o Emílio Garrastazu Médici, não o Pelé, o Tostão ou o Rivelino. É assim que a História registra. Quem é o Médici? É o presidente da tortura. O Médici não é o presidente do radinho de pilha no Maracanã, como ele imaginou que seria lembrado. E, assim, entraram para a História todos os os generais que se revezaram como ditadores. 

No entanto, a utilização do futebol e dos esportes como propaganda política não é um fenômeno apenas dos regimes autoritários. É também dos regimes democráticos. Recentemente, os atletas da NBA se recusaram a ir à Casa Branca ser recebidos por Trump como era tradição. Ou também para ilustrar esse raciocínio, lembremos do Brasil pentacampeão mundial, depois de um voo de 26 horas vindo do Japão. A Seleção desce no aeroporto de Brasília e, em vez, do presidente, um sociólogo [Fernando Henrique Cardoso], ir ao avião condecorar os atletas e logo em seguida lhes mandar para casa descansar, ele os coloca em cima de um caminhão do Corpo de Bombeiros e, aí eles seguem para o Palácio do Planalto levando mais sete horas. A única pessoa sensata nesse episódio foi o Vampeta, que de tão bêbado que estava deu cambalhotas na rampa do Palácio do Planalto. 

O fato do futebol se misturar permanentemente com a política não é motivo para imaginar que haja uma relação de causa e efeito entre as conquistas do futebol e o sucesso de quem o utiliza. Sob Mussolini, a Itália foi bicampeã mundial de futebol, mas poucos anos depois ele morreu pendurado pelo povo italiano. O Brasil ganhou sua primeira Copa no governo Juscelino Kubitschek que morreu cassado. Ganhou a segunda Copa no governo João Goulart que morreu cassado.  Ganhou a terceira Copa sob o Médici, hoje lembrado como o presidente da tortura, não do “tri”. Em 2014, o Brasil sediou uma Copa e o time tomou de 7×1 da Alemanha na semifinal e de 3×0 da Holanda na decisão do 3° lugar, mas Dilma foi reeleita três meses depois. Não existe essa relação de causa e efeito com o futebol. O que existe é uma utilização política do futebol e esse genocida, ao usar as mais variadas camisas de clubes, procura disseminar uma imagem popularesca.  Embora, cause mais raiva do que admiração ao fazer isso, pois todo mundo sabe que ele é palmeirense, então, o corintiano odeia Bolsonaro ao ver ele com a camisa do Corinthians e assim por diante. No Brasil se diz que você troca de tudo, menos de clube – e Bolsonaro troca todo dia.

HA/NU

Muitas torcidas organizadas pelo mundo têm um caráter antifascista. Torcidas de times europeus como do Celtic de Glasgow, da Escócia, ou do St. Pauli,  da Alemanha, sempre fizeram campanhas muito marcantes por causas políticas internacionalistas, agora adicionaram o Brasil a esse movimento. Como você vê o caráter político dessas torcidas? Elas são importantes para denunciar internacionalmente a situação atual do Brasil na atual crise sanitária?

JK

Eu cresci vendo a Anistia Internacional denunciando torturas no Brasil. Você ia para a Europa e não havia um fim de semana em que não tinha protesto contra a ditadura brasileira. Estamos vendo isso de novo. Acrescido ao fato de que, hoje, além dessas torcidas antifascistas estrangeiras clássicas, temos também torcidas antifascistas nos nossos grandes clubes e que se mobilizam contra o genocida. São bem-vindas as manifestações e a solidariedade internacional porque o Brasil está precisando. Nós estamos perdendo meio milhão de pessoas, segundo todos os cálculos científicos o máximo de mortos que teríamos chegado era de 180 ou 200 mil pessoas. Mas são 500 mil pessoas. Nós precisamos de socorro.

HA/NU

O futebol brasileiro é uma instância da vida nacional que nunca conheceu uma democratização, muito menos uma redemocratização. Como você analisa o momento atual de quedas sucessivas de presidentes da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a Copa América realizada dessa forma e agora a chegada do Coronel Antônio Carlos Nunes de Lima que foi prefeito biônico na época da ditadura?

JK

Se esse coronel tivesse sido apenas prefeito biônico da ditadura estaria bom. Ele esteve envolvido em políticas de repressão e extermínio da população indígena e, ainda, foi tratado como anistiado político, porque em algum momento do regime ele perdeu um cargo na aeronáutica – em alguma questão interna entre a extrema direita, o que ele usou para se colocar, erradamente, como perseguido político perante a Comissão de Anistia. 

Vou corrigir vocês dois: não existe Copa América, mas Cova América. Esse torneio é um tapa na nossa cara. Esse governo vai comemorar meio milhão de mortos em plena Cova América. Um torneio que ele trouxe para o Brasil uma competição que os argentinos abdicaram de realizar, em nome da saúde pública. Uma competição que o povo colombiano não deixou que se realizasse em seu país. Esse genocida trouxe para o Brasil. Mas veja, infelizmente a superestrutura do esporte brasileiro, aí incluso o futebol, não é apenas conservadora, ela é profundamente reacionária, avessa a qualquer tipo de mudança, corrupta e corruptora.

Três dos últimos presidentes da CBF foram banidos do futebol e, dois deles, não podem pôr o pé para fora do país que a Interpol pode prendê-los. O outro, José Maria Marin, pôs o nariz para fora e foi preso, só tendo sido solto pela Justiça Americana por conta da idade.  Esses três são sucedidos por esse Rogério Caboclo, que sai no meio de um escândalo grave de assédio sexual. Eles são todos da mesma árvore. 

Não se esqueçam que não foi apenas no futebol que tivemos escândalo de corrupção. O Dr. Carlos Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), se tornou também presidente do Comitê Organizador das Olimpíadas do Rio em 2016 – fato inédito na história das Olimpíadas modernas pelo evidente conflito de interesses que isso gera. O que aconteceu em seguida? O Nuzman foi preso por compra de votos para aprovar as Olimpíadas no Rio. Não pode sair do Brasil também. Toda estrutura esportiva brasileira é orientada para eleger esse tipo de gente, seja no futebol ou no esporte olímpico. Em regra, nossos dirigentes esportivos são pessoas incompetentes, que não se deram bem em suas vidas profissionais e que miram sucesso no esporte, um deserto ético, uma terra de ninguém. 

Mas por que o esporte é isso? Porque na economia do entretenimento, o esporte ocupa um espaço imenso com preços intangíveis. Qualquer valor que eu dizem as pessoas acreditaram. E por conta disso o futebol é um lugar muito bom para se lavar dinheiro. É bem difícil provar isso e eles sabem fazer uma engenharia maluca envolvendo paraísos fiscais e etc..

HA/NU

Nos anos 1980, havia bons ventos também no futebol. Experiências como a Democracia Corintiana e, bem ou mal, o Clube dos 13. Além disso, inúmeros jogadores e personalidades do futebol estavam envolvidas no movimento pelas Diretas Já! O que aconteceu naquele momento histórico para que em uma década víssemos a fabulosa reação dos anos 1990? Se mudou tudo para não se mudar nada?

JK

Eu tive um professor de sociologia chamado Gabriel Cohn, que dizia não acreditar em sociólogos que não tivessem as calças roídas pelas arquibancadas de um estádio. Um belo dia, o Brasil teve um presidente da República com as calças roídas pelas arquibancadas chamado Luiz Inácio Lula da Silva. Antes dele, na democracia, nenhum outro presidente sabia o que era a bola. Fernando Henrique Cardoso achava que Biro-Biro era o nome de uma jogada, não de um ídolo do Corinthians. Quando Lula assumiu a presidência, estava em vigor por Medida Provisória o texto do chamado Estatuto do Torcedor. A única medida aprovada por unanimidade em oito anos de governo FHC. O estatuto era um conjunto de declarações a favor da luz elétrica ou da água encanada, dizendo coisas óbvias que, por incrível que pareça, precisavam ser postas no papel. Falo de coisas como “o torcedor precisa ter o direito de sentar na cadeira cujo número corresponde ao ingresso que ele comprou” ou “o organizador do jogo tem a obrigação de colocar uma ambulância ao lado do gramado”. O Lula teve a generosidade de converter essa Medida Provisória em Lei.

Quando isso aconteceu, Gilberto Carvalho, então assessor direto do Lula, me ligou para me convidar para a assinatura da Lei. Eu fui. No começo do discurso, Lula dizia que “nunca mais vamos ouvir o jornalista Juca Kfouri dizer que no Brasil o torcedor é tratado como gado”. Foi uma salva de palmas e eu não sabia o que fazer. Não havia um único dirigente importante do futebol no Palácio do Planalto naquele dia. Os dirigentes ameaçaram fazer um locaute e paralisar o Campeonato Brasileiro. Porque diziam que era impossível numerar os estádios ou colocar uma ambulância à beira do gramado. Mas fizeram. E Lula terminou o discurso dizendo que a minha presença era uma homenagem a todos os jornalistas que foram processados, tiveram credenciais negadas por essa cartolagem malsã que há tantos anos infelicitava o futebol brasileiro. Eu já tinha 53 anos, isso foi em 2003. Eu não tinha mais o direito da ingenuidade, mas eu tomei um táxi do Palácio do Planalto para o aeroporto esmurrando o ar em comemoração. Eu dizia para mim mesmo “esses cartolas pegaram agora um presidente com os fundilhos das calças corroídos pelas arquibancadas, eles estão ferrados!”. 

Seis meses depois, o Lula estava de braços dados com o Ricardo Teixeira para fazer aquele jogo no Haiti, que foi belíssimo, mas a partir dali tudo mudou e sua linha de confronto com os cartolas alterou. Lula deu inúmeras vantagens para dirigentes esportivos sem exigir qualquer contrapartida em termos de modelo de gestão. Agora a tese: por que isso é assim? Porque o futebol tem um poder de sedução como ninguém pode imaginar? Pensem na imagem que é Ricardo Teixeira levando um atleta como o Ronaldo Fenômeno para visitar Lula e o efeito positivo disso para a posteridade.

Raramente um presidente da CBF se dá mal com um presidente da República. Isso nunca aconteceu. Ou melhor, quase aconteceu. José Maria Marin, quando era deputado estadual em São Paulo, fez um aparte num discurso de seu colega, Wadih Helú, que resultou na prisão, tortura e morte de Wladmir Herzog. O mesmo Marin que condecorou o torturador da ditadura Sérgio Paranhos Fleury, que torturou o ex-marido e pai da única filha da então presidente Dilma Rousseff. 

Dilma conviveu com Marin para a construção da Copa do Mundo no Brasil, em 2014. Tiraram fotos juntos. E eu perguntei para ela um dia: como a senhora consegue conviver com esse traste? Ela me respondeu “era uma relação institucional e ele é quem tem explicações a dar, ele que perdeu”. É por isso que eu sou jornalista e não político. Não tenho estômago para isso e há certas coisas que são inegociáveis ou indesculpáveis.

HA/NU

|Mas tem alguma esperança que isso possa mudar? Como rearticular esse campo e retomar esse caminho das experiências inventivas da década de 80?

JK

Tenho. Se não tivesse, não seria mais jornalista. O jornalista luta para que as coisas aconteçam e tenho uma esperança ativa. Eu não escrevi à toa um livro chamado “Confesso que perdi”, porque se eu olho o Brasil de 50 anos atrás e projeto sobre o Brasil de hoje, estamos muito longe do que eu gostaria – isso vale para o futebol. Mas esse “perder” não significa que eu não esteja buscando empatar. Ou virar o jogo. Vou continuar tentando e colocando tijolinhos para que meus filhos ou netas tenham um Brasil melhor.

HA/NU

Circula que o presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, pode ser vice de Bolsonaro. Como você vê essa movimentação e esse vínculo profundamente orgânico do Bolsonaro em relação ao futebol?

JK

Primeiro, Landim vice de Bolsonaro me parece um balão de ensaio. Eu adoraria que ele fizesse essa bobagem, porque ele é uma figura que não tem a simpatia nem da própria torcida do Flamengo. Se Bolsonaro acha que vai faturar com o fato de ter o Landim ao lado porque o Flamengo tem sido, nos últimos anos, vitorioso, isso se trata de um erro brutal. Os não rubro-negros não gostam nem um pouco dele, e entre os rubro-negros ele não é aceito por tanta gente. 

A última instituição que vai mudar no Brasil é o futebol. Eu acredito piamente que, se em 2022, conseguiremos reestabelecer um governo progressista no país e andaremos para frente caso tenhamos aprendido as lições dos erros cometidos. Copa do Mundo no Brasil ou Olimpíadas jamais deveriam ter sido feitas aqui. E andaremos para frente se desmilitarizarmos as polícias,  inserirmos conteúdo democrático nos currículos das escolas militares, aprovarmos uma lei de mídia democrática entre outras coisas. São lições que temos de aprender para exercer corretamente o nosso papel. Se conseguirmos derrotar esse genocida em 2022, colocando lá um governo progressista com a devida autocrítica e o balanço dos 13 anos, aí o carro correrá diferente.

HA/NU

O socialismo, tantas vezes assassinado, insiste em dar provas de sua atualidade pelo mundo.  Qual a mensagem de resistência você deixaria para os jovens?

JK

Se a pandemia teve algum mérito foi abrir os olhos do mundo sobre, pelo menos, um ponto: saúde pública não é uma questão de capital privado, não é para dar lucro, é para atender à população. O que eu tenho de dizer aos jovens é muito simples. Se eu, aos 70 anos, não desisti, por quê um jovem haveria de desistir? Eu me guio por algumas frases: “jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”, de Millôr Fernandes. Outra, do mesmo Millôr, é “quem se curva aos poderosos mostra a bunda aos oprimidos”. Uma outra, de Guimarães Rosa é muito verdadeira e poética “viver é muito perigoso”. A última é da dupla Vítor Martins e Ivan Lins, que é como costumo terminar minhas entrevistas na TVT: “desesperar jamais”.

Sobre os autores

é um jornalista esportivo que escreve com frequência no seu blog do UOL.

é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).

é uma jornalista independente e comentarista política, anti-imperialista. Nascida no Brasil mas radicada na Escócia.

Cierre

Arquivado como

Published in América do Sul, Entrevista, Esportes and Política

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