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Um soldado patrulha a área próxima à delegacia de Pétion-Ville, onde as pessoas protestam pelo assassinato do presidente haitiano Jovenel Moïse em 8 de julho de 2021, em Porto Príncipe, Haiti. (Richard Pierrin / Getty Images)

Estariam os capitalistas do Haiti por trás do assassinato do presidente Moïse?

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Tradução
Cauê Seignemartin Ameni

O presidente haitiano Jovenel Moïse foi assassinado esta semana por supostos mercenários. Em uma entrevista à Jacobin, o editor do Haiti Liberté diz que suspeita que algumas das famílias mais ricas do Haiti contrataram os assassinos para prevenir uma potencial revolução - e possivelmente até desencadear uma intervenção militar dos EUA.

UMA ENTREVISTA DE

Arvind Dilawar

Entrevista por
Arvind Dilawar

Durante a madrugada de 7 de julho, horas antes do raiar do dia, nove SUVs chegaram à casa do presidente haitiano Jovenel Moïse nos arredores de Porto Príncipe. Moïse estava agarrado à presidência desde fevereiro, gerando manifestações semanais de milhares de haitianos que o acusavam de corrupção – especialmente em relação ao Petrocaribe, um programa por meio do qual a Venezuela forneceu ao Haiti bilhões de dólares em petróleo e fundos destinados a apoiar o desenvolvimento.

O que meses de protestos populares não conseguiram, um pequeno bando de supostos mercenários o fez em minutos. Alegando ser agentes da Agência Antidrogas dos Estados Unidos (a DEA, que mantém presença no Haiti para auxiliar nas operações antidrogas), o grupo conseguiu entrar na casa e matar o presidente.

O assassinato de Moïse ocorre em meio a um fervor cada vez mais revolucionário no Haiti. As manifestações populares contra a corrupção, apoiadas por opositores burgueses do ex-presidente, deram lugar mais recentemente a forças abertamente radicais, como aquelas em torno de Jimmy “Barbecue” Cherizier. Um ex-policial que se tornou líder, Cherizier tem buscado unir muitos grupos armados de comunidades no Haiti, e até mesmo gangues criminosas, sob a bandeira das “Forças Revolucionárias da Família G-9 e Aliados” para derrubar o Estado. Sua base fica nas favelas do Haiti, onde milhões de ex-camponeses agora formam um “lumpemproletariado” de trabalhadores desempregados.

Embora as pessoas por trás do assassinato de Moïse permaneçam desconhecidas, o editor do Haiti Liberté, Kim Ives, disse a Jacobin que acredita que a trama pode ser uma tentativa de reverter a maré revolucionária – e talvez até trazer fuzileiros navais dos EUA. O colaborador da Jacobin Arvind Dilawar falou com Ives sobre o assassinato, seus potenciais patrocinadores e a possibilidade de uma intervenção militar dos Estados Unidos. A conversa foi editada para maior clareza e brevidade.


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O que aconteceu no Haiti em 7 de julho?

KI

Havia um bando de mercenários com veículos Nissan Patrol novos. Eles claramente conheciam os detalhes do complexo presidencial, onde Moïse morava. Eles foram claramente financiados e bem preparados. Foi uma operação muito sofisticada.

Então a pergunta central é: quem tinha dinheiro para fazer isso? E quem iria querer fazer isso?

A hipótese que estamos trabalhando no Haiti Liberté é que os mercenários, mais do que provavelmente, foram contratados por um ou um consórcio de famílias burguesas que se opõem a Moïse. Reginald Boulos é um deles. Dimitri Vorbe é outro. Existem vários outros que estavam descontentes com Moïse.

Se essa hipótese estiver correta, o medo é do levante que está saindo das vastas favelas do Haiti, onde o lumpemproletariado se organiza em gangues armadas, que agora juraram realizar uma revolução contra a burguesia e “o sistema podre”, como eles chamam no Haiti.

As gangues são lideradas por Cherizier, um ex-policial entusiasta que se radicalizou devido ao seu infortúnio e traições – não apenas pela liderança da polícia, mas pela oposição burguesa e também por Moïse. Então, ele está defendendo esses “miseráveis da Terra”, como Franz Fanon os chamou – esse vasto número de pessoas essencialmente desenraizadas.

Cinquenta anos atrás, a sociedade haitiana era basicamente uma sociedade camponesa rural. Mas nos últimos trinta e cinco anos, desde a queda do ditador Jean-Claude Duvalier, as reformas neoliberais defendidas por Washington no Haiti – o despejo de alimentos em excesso, de farinha a arroz e óleo – dizimaram a agricultura haitiana. O resultado é que milhões de camponeses foram arruinados e se mudaram para as cidades para se juntar às fileiras desse enorme lumpemproletariado.

A burguesia está absolutamente apavorada com esta revolução. Na semana passada, Cherizier disse: “Vamos entrar em seus bancos, sua concessionária de automóveis, seus supermercados e pegar o que é nosso”. A burguesia não tinha nenhuma proteção de Moïse. Ele não tinha autoridade estadual. Ele estava totalmente isolado, mas se recusava a sair. Então eu acho que eles optaram que tirá-lo.

A última notícia que vejo é que eles mataram quatro dos agressores, de acordo com a polícia, e dois foram capturados. Agora, esses dois vão dizer quem os contratou? Eles sabem?

Reginald Boulos é um dos homens mais ricos do Haiti e o que mais discorda de Moïse. Acho que ele fugiu do país. Ele tinha um mandado de prisão contra ele, o que também pode ter motivado seu apoio a uma unidade mercenária para matar Moïse. No entanto, pode ter exigido mais dinheiro do que uma família poderia ter fornecido. Pode ter havido alguma combinação de famílias envolvidas. Isso é o que aconteceu em golpes anteriores, como aquele contra o ex-presidente Jean-Bertrand Aristide – basicamente, uma coleta foi feita entre a burguesia e eles levantaram dezenas de milhares de dólares para financiar o golpe de 1991.

Vemos hoje que o presidente Iván Duque da Colômbia – talvez o presidente mais reacionário do continente sul-americano – está propondo que a Organização dos Estados Americanos (OEA) intervenha no Haiti, da mesma forma que interveio na República Dominicana, vizinha do Haiti, em 1965. A OEA pode concordar com presidentes reacionários, como Jair Bolsonaro no Brasil e Duque e em alguns outros países como Honduras, para dar alguns soldados. Mas, assim como foi para a República Dominicana em 1965, a principal espinha dorsal dessa força da OEA seriam os fuzileiros navais dos Estados Unidos.

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O que é, em sua opinião, que deixa claro que o assassinato não teve relação com o movimento revolucionário e foi uma tentativa de eliminá-lo?

KI

Era muito caro. Eles chegaram, como eu disse, com nove veículos Nissan Patrol novos. Eles gastaram claramente muito tempo planejando a operação. E eram mercenários estrangeiros. Não era algo que o lumpemproletariado das cidades pudesse fazer.

Pude ver quem executou o ataque. Talvez você pudesse perguntar: “Isso está vindo de um dos grupos armados de bairro em Porto Príncipe?” Mas esses caras eram estrangeiros, ao que parece, falando espanhol, falando inglês e se apresentando como DEA.

Isso não se encaixa em nada com os traços das forças revolucionárias crescendo nas favelas do Haiti. Parece mais uma unidade mercenária – muito parecida com os mercenários que foram contratados há dois anos para roubar US$ 80 milhões do Fundo Petrocaribe do Banco Central do Haiti.

Isso é mais ou menos típico da burguesia local. Eles vão apenas contratar o poder de fogo e os músculos que precisam, da mesma forma que contratavam bandidos do lumpemproletariado no passado para realizar seu trabalho sujo. Mas Cherizier diz: “Não estamos mais trabalhando para você, não vamos fazer o seu trabalho sujo”. E então eles tiveram que buscar no exterior.

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Parte da cobertura midiática do assassinato quase fez com que parecesse uma consequência da “violência das gangues”. Quem são essas gangues? Quais são seus objetivos? Como eles são diferentes de nossa concepção de gangues em outros países?

KI

A ditadura Duvalier tinha uma grande gangue chamada Tonton Macoute, os Voluntários para a Segurança Nacional, que era essencialmente uma força paramilitar usada para salvaguardar os interesses da família Duvalier. Eles eram os olhos, os ouvidos e os punhos do regime, e eles protegeram esse poder com muita eficácia durante três décadas.

Mas depois que Jean-Claude Duvalier fugiu do país em 1986, os Tonton Macoute meio que se tornaram agentes livres e começaram a atacar bairros populares. Eles costumavam se exibir, sacudindo descaradamente as pessoas, pegando o que queriam de uma loja, escolhendo qualquer mulher com quem eles quisessem dormir – você escolhe, todos os tipos de abuso que os tornavam infames.

Quando o Tonton Macoute começaram a agir por conta própria após a partida de Duvalier, os bairros populares do Haiti estabeleceram o que foi chamado de brigadas de vigilância. Essas brigadas de vigilância começaram principalmente como um grupo batendo potes e panelas e assim por diante para assustar os saqueadores, mas gradualmente foram armados e contratados pela burguesia para proteger suas fábricas, suas casas ou suas terras. Eventualmente, eles passaram do trabalho defensivo para o trabalho ofensivo – “Eu tenho um rival lá que tem um posto de gasolina que está competindo com o meu. Vá queimá-lo”.

À medida que a luta política no Haiti se tornava cada vez mais acirrada, as gangues também eram usadas para todos os tipos de crimes políticos – assassinatos e assim por diante. Isso mudou, com o passar dos anos, para uma guerra entre gangues que trabalhavam para a burguesia e outras que trabalhavam para, digamos, o governo Lavalas de Aristide, que tinha um antagonismo com a burguesia. Como resultado, as batalhas eram muito políticas.

Já em 2019, 2020, 2021, a autoridade do Estado diminuiu para quase nada. O governo de Moïse é ilegítimo, é insultado por corrupção e repressão. As favelas, e suas gangues, estão abrindo negócios por conta própria, principalmente por meio de sequestros. O sequestro é muitas vezes de pessoas pobres, da população, bastante indiscriminado e bastante aleatório, e às vezes muito mortal. Mesmo que o resgate fosse pago, a vítima, o refém, o sequestrado eram mortos. Tornou-se um terror e um trauma total para a sociedade haitiana.

Entra Cherizier, um policial de uma unidade de elite da Polícia Nacional do Haiti chamada UDMO, a Unidade Departamental de Manutenção da Ordem. Em novembro de 2017, recebeu ordens da chefia policial de reunir uma equipe de dez pessoas da delegacia que comandava em Cité Soleil para realizar uma operação contra as gangues da área de Martissant.

Seguiu-se uma batalha dramática entre policiais e membros da gangue. Vários membros das gangues foram mortos e talvez alguns civis também. Não está claro exatamente o que aconteceu. A liderança policial disse: “Oh, não, esta foi uma operação desonesta, foi Cherizier quem a fez”. Eles fizeram dele o bode expiatório. Isso iniciou imediatamente sua radicalização. Ele começou a ver que essa força que ele tanto se dedicava estava traindo-o e tentando usá-lo para encobrir seus próprios erros.

Depois disso, Cherizier voltou para seu bairro, que foi atormentado por esses sequestradores e estupradores. Ele foi com seus amigos UDMO a essas gangues e disse: “Escutem, rapazes, vocês têm uma escolha: podem parar o que estão fazendo, podem deixar a área ou vamos matá-los.” E eles fugiram, a maioria desses membros da gangue. Eles foram para outras partes da cidade.

Então Cherizier começou a ganhar reputação fazendo brigada de vigilância. Ele era muito sério, um cara da lei e da ordem. Ele começou a desenvolver uma reputação, e ele começou a desenvolver relações com algumas das potências da oposição, como a burguesia que se opunha a Moïse.

Mas Cherizier também começou a entrar em conflito com esses caras. Por exemplo, Boulos pediu-lhe que incendiasse uma concessionária Toyota que seu pessoal na vizinhança havia fornecido proteção e cuidado por um longo tempo. Ele ficou muito chocado com isso. Ele começou a se irritar também com essas figuras da oposição burguesa.

Cherizier começou a ver que tudo estava podre – não apenas a polícia, não apenas o governo, mas também a oposição, a burguesia. Ele estava cada vez mais radicalizado e viu que temos que mudar, como ele diz agora, todo o sistema podre e fedorento – que está podre da cabeça para baixo. Ele basicamente lançou este movimento para fazer uma revolução, como ele o chama, contra as doze famílias que governam o Haiti.

AD

Você acha que o assassinato de Moïse forçará acontecer a eleição presidencial que ele estava travando?

KI

Não. O assassinato visa colocar no poder um presidente que fará as ordens da burguesia. A oposição, que é dominada pela burguesia, já faz um bom tempo que clama por um governo de transição, e agora talvez eles consigam.

A grande questão é: há alguém que tenha poder suficiente, apoio ou simpatia do povo, para realizar uma reforma do Estado? Haverá um presidente, um primeiro-ministro e um chefe de polícia que terão força, inteligência e recursos suficientes para impedir esse levante nas favelas? Eu duvido muito.

Então, isso significa que eles provavelmente terão que ir para o plano B, que é uma intervenção militar estrangeira. É aí que entram Duque e a OEA. A burguesia vai ficar muito feliz em vê-los ali para proteger seus interesses – que são praticamente concomitantes com os interesses comerciais dos Estados Unidos. Em muitos casos, eles são representantes de corporações dos Estados Unidos e, em alguns casos, até mesmo de cidadãos dos Estados Unidos.

Acho que esse assassinato foi essencialmente para preparar o cenário para a repressão, para a destruição do movimento G9 e, se necessário, para trazer uma força militar estrangeira – a quarta neste século.

Sobre os autores

é editor da Haïti Liberté e co-apresentador de um programa semanal sobre o Haiti na WBAI-FM.

é um escritor e editor cujo trabalho apareceu na Newsweek, no Guardian, na Al Jazeera e em outros lugares.

Cierre

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Published in América Central, Entrevista, Militarismo and Política

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