Rocky (1976), ganhador de um Oscar de Melhor Filme e responsável por estabelecer Sylvester Stallone como um astro de Hollywood, talvez seja a mais famosa história de um underdog – ou azarão. Esse tipo de trajetória, na qual o mais fraco e pobre se impõe para vencer na vida (ou se tornar um campeão) funciona muito bem com o público. É um recurso narrativo que facilmente engaja o espectador e o faz torcer pelo protagonista.
Além disso, os personagens que contrariam as possibilidades limitadas pelas desigualdades sociais inerentes ao capitalismo — um sistema de cartas marcadas e vencedores pré-determinados — têm um potencial enorme de cativar as pessoas, que muitas vezes se identificam com os “perdedores”. Em outras palavras, é simplesmente muito mais divertido torcer pelo lado mais fraco da disputa.
Foi dentro dessa mesma temática do underdog que uma história de outro boxeador, semelhante a de Rocky, começou a ser escrita alguns anos antes, do outro lado do mundo. Estamos falando de Ashita no Joe — em tradução literal, Joe do Amanhã — um mangá publicado na icônica revista japonesa Shonen Magazine, de 1968 a 1973, escrito por Ikki Kajiwara e ilustrado por Tetsuya Chiba, com 20 milhões de cópias vendidas.
O mangá narra a vida de Joe Yabuki, um pobre e selvagem órfão que se revela um grande talento das lutas de boxe, e sua trajetória de ex-presidiário juvenil até lutas oficiais pelo título continental e mundial. Para além do sucesso midiático, Ashita no Joe acabou se tornando um símbolo para a classe trabalhadora e para os estudantes japoneses, por se verem representados na figura do protagonista.
O arquétipo do underdog fez muitos lerem o mangá e torcerem pelas vitórias de Joe. No entanto, havia algo maior acontecendo no Japão, conectando o povo ao protagonista da trama para além de recursos narrativos e construções de personagens. Portanto, para entender o real impacto de Ashita no Joe, é necessário olhar para todo o contexto socioeconômico e político no qual viviam seus leitores.
Contexto socioeconômico e político
Em 1968, ano de lançamento da obra, o Japão se beneficiava do rápido crescimento econômico do mundo pós-guerra, e a economia do país já era a segunda maior do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.
A industrialização acelerada causou grandes transformações nos meios de produção e na paisagem urbana nipônica, enquanto as culturas americana e europeia influenciavam mais e mais a cultura japonesa.
Nesse cenário, diversos problemas sociais se desencadearam no país. Apesar dos avanços econômicos, grande parte da população pertencia à classe trabalhadora. Essas pessoas se esforçavam em meio às adversidades para não serem deixadas para trás durante a guinada econômica do país.
Crescia também no país o movimento estudantil, fortemente marcado por uma ideologia anti-imperialista. A soma destes elementos resultou num aumento da insatisfação popular, que começou a ser manifestada nas ruas.
Para se ter uma ideia da efervescência política que tomava conta do Japão, em outubro de 1968, aproximadamente 290 mil pessoas foram para as ruas de Tóquio protestar contra a guerra do Vietnã. O ato tomou rumos violentos e terminou em confronto com a polícia.
Nesse contexto, o personagem Joe passou a ser não apenas um herói do povo, mas também um símbolo político para a chamada Nova Esquerda que surgia no país, formada majoritariamente por universitários.
O Exército Vermelho Japonês, por exemplo, surgiu a partir desse movimento estudantil mais radical, no fim dos anos 60, quando protestos violentos e confrontos com a polícia eram comuns. O grupo passou a realizar ações radicais, incluindo um dos mais famosos sequestros do país, que possui ligação com o mangá.
Em 1970, nove membros do Exército Vermelho armados com espadas samurai e bombas improvisadas sequestraram um avião em voo doméstico no Japão e o desviaram para a Coréia do Norte. Todos os passageiros foram liberados da aeronave, que pousou na Coréia do Sul antes de chegar ao seu destino final. O líder desse grupo expressou na declaração de responsabilidade pelo ato: “Não se enganem. Nós somos o Joe do Amanhã (Ashita no Joe)”.
A maioria dos membros envolvidos no incidente já morreu (houve prisões), mas quatro deles permanecem na Coréia do Norte, onde foram recebidos como heróis nacionais. Entre eles, Moriaki Wakabayashi, o baixista original da Les Rallizes Dénudés, uma das primeiras e mais revolucionárias bandas de rock psicodélico do Japão.
Pode-se dizer que Ashita no Joe foi além e se tornou algo próximo de uma unanimidade no país, agradando a gregos e troianos, ou esquerda e direita. Yukio Mishima, famoso escritor, ator e militante de direita, também era leitor assíduo do mangá.
Tornou-se notório o fato de que, certo dia, Mishima apareceu tarde da noite no escritório da Shonen Magazine, implorando para comprar a revista. Ele havia passado o dia inteiro ocupado, gravando o filme Black Lizard (Kurotokage, 1968), e por isso não conseguiu passar em uma banca de jornal.
Mesmo assim, Mishima precisava da sua dose semanal de Ashita no Joe, e não podia sequer esperar até a manhã seguinte. O escritório da editora Shueisha não realizava vendas e sequer possuía um caixa, mas ofereceu como cortesia o exemplar da revista para o escritor.
Apenas dois anos depois do lançamento desse filme, o escritor engajou-se numa ação política que resultou em sua morte. Em 1970, Mishima invadiu uma base militar no centro de Tóquio junto a outros quatro membros da Tatenokai (Sociedade da Armadura) — milícia criada pelo próprio Mishima, dedicada aos valores culturais tradicionais japoneses e à veneração ao Imperador.
Após deter breve controle sobre a base militar, o escritor declarou um discurso numa tentativa de inspirar as Forças Armadas a se erguerem e derrubarem a constituição japonesa de 1947, a qual ele se referia como “a constituição da derrota”. Em seguida, gritou “Vida longa ao imperador!” e cometeu suicídio, realizando o ritual do seppuku, o ritual suicida do código dos samurais.
A mais famosa curiosidade referente ao sucesso da obra se deu quando o poeta e ícone da contracultura, Shuji Terayama, organizou um funeral de verdade para um dos personagens, Tooru Rikiishi, um mês após sua morte fictícia.
Cerca de 700 fãs lotaram o auditório da sede da editora Kodansha, localizada na cidade de Tóquio, em plena terça-feira à tarde, para se despedir do rival de Joe. Entre eles, estavam desde estudantes do ensino médio até trabalhadores de escritório, os dois autores do mangá e Fighting Harada, ex-campeão mundial de boxe nas categorias peso galo e peso mosca.
As pessoas compareceram vestidas de preto e a cerimônia foi realizada na presença de um monge. Incensos foram acesos e sutras comuns de funerais japoneses foram recitados. Havia uma foto do personagem e até um ringue de boxe. Terayama recitou um discurso, no qual declarava sua interpretação da obra. Para o poeta, Rikiishi era uma representação da elite pró-Estados Unidos que dominava o país, enquanto Joe seria a classe pobre, com potencial revolucionário.
Percebe-se que o significado mais profundo de Ashita no Joe está atrelado ao contexto de sua época. Por isso, seu protagonista foi entendido como uma representação do cidadão comum, aqueles passando por dificuldades e trabalhando duro para superá-las. Ele também expressava a visão dos estudantes que contestavam o establishment — a elite social, econômica e política do país.
Nas páginas da Shonen Magazine, a classe trabalhadora japonesa teve a oportunidade de se identificar e torcer por um dos seus: um jovem pobre e sem perspectivas, mas com a determinação de realizar seus sonhos. Para isso, ele contava apenas com seu talento, sua perseverança e uma forte personalidade.
Aparentemente, assim como Joe, alguns leitores do mangá levavam a vida a sério e seguiam com suas convicções até as últimas consequências, como no caso dos militantes do Exército Vermelho e do escritor Yukio Mishima. Mas o que havia na obra e nos seus personagens para comover e mobilizar tantas pessoas?
Joe Yabuki, o seu amigão da vizinhança
Diferente dos mangás fantásticos que faziam sucesso até então, como o clássico de Osamu Tezuka, Astro Boy, a trama Ashita no Joe era construída em cima de uma temática realista. Mesmo funcionando perfeitamente como entretenimento, ele contava com esse forte aspecto da identificação do povo para com o seu herói. Comparando levianamente com os quadrinhos norte-americanos, Joe está para o Homem-Aranha como o Astro Boy está para o Super Homem.
Vale ressaltar que os mangás de esportes ganharam muita força na época da ocupação do Japão pelos países aliados, liderada pelos Estados Unidos, ao longo do período pós-guerra. O gênero de esportes ainda foi impulsionado pelos Jogos Olímpicos de Verão de 1964, e o boxe crescia de popularidade no Japão, uma vez que o país conseguiu se destacar ao conquistar medalhas olímpicas de ouro (1964) e bronze (1968) na categoria peso-galo.
No início da história de Ashita no Joe, somos apresentados a Joe Yabuki, um garoto sem teto vagando pelo distrito de Sanya, área periférica de Tóquio, conhecida então como um de seus mais pobres bairros. Era justamente em Sanya que moravam as pessoas responsáveis por construir o Japão moderno, ao longo das décadas do pós-guerra: A Torre de Tóquio, as instalações para os Jogos Olímpicos de Verão de 1964 e a via expressa metropolitana. Ou seja, a infraestrutura que estabeleceu as bases da megalópole de hoje.
É nesse local que o protagonista do mangá encontra o ex-boxeador alcoólatra Danpei Tange, que reconhece o talento do jovem e começa a treiná-lo. Danpei almeja usar seus conhecimentos e sua experiência de boxe para fazer daquele pobre desconhecido o maior boxeador do Japão.
Apesar da sinopse simples, Joe é um personagem complexo. Atormentado por demônios interiores (além dos exteriores), a sua principal virtude é nunca desistir. Esse aspecto de sua personalidade talvez seja o mais marcante e é por conta dele que o protagonista não se permite nunca descansar, relaxar, ou sequer manter relações normais com outras pessoas. Joe chega ao extremo de abdicar de sua saúde, segurança e felicidade para seguir lutando.
Durante o treinamento de Joe, enquanto está preso na penitenciária, recebe instruções via cartas de Danpei. A correspondência de seu treinador sempre vem com o título “para o amanhã”. Essa mensagem que Joe recebe periodicamente ao longo do encarceramento, e junto ao seu treinamento, é o que o faz se manter motivado.
Quando o personagem enfrenta fortes oponentes no ringue, é constantemente surrado e leva mais socos do que qualquer ser humano normal aguentaria. Trata-se de uma cena recorrente em Ashita no Joe: sob suor, sangue e os gritos de seu treinador, o boxeador se levanta lentamente para encarar o adversário e seguir com a luta.
Diferentes da maioria dos protagonistas da época, Joe não era um herói perfeito, repleto de virtudes. Pelo contrário, era um ser humano como outro qualquer, cheio de falhas. Por conta do meio onde cresceu, Joe se tornou um marginal violento e egoísta, desprezando a lei. O personagem representa muitas vezes um lado ruim dos seres humanos, e é justamente isso que abre margem para o seu amadurecimento e o possibilita se tornar uma pessoa melhor.
Um dos momentos mais marcantes e profundos da série se dá quando Joe é questionado sobre seu estilo de vida por um de seus interesses românticos. É uma das poucas cenas em que vemos o protagonista desabafando sobre seus sentimentos de maneira serena — uma passagem que se mostra chave não só para o desenvolvimento do personagem, mas para a temática da obra. Nela, Joe diz que, em nome do seu amor pelo boxe, deseja lutar até que seu corpo entre em combustão e vire apenas “cinzas brancas”.
A filosofia de vida das “cinzas brancas” de Yabuki inspirou muitos japoneses, em contextos diversos. A força de vontade e a fixação pelo futuro personificadas em seu protagonista iam de encontro à atitude e à ética de trabalho do povo japonês, virtudes fundamentais durante a reconstrução do país no período pós-guerra. As dificuldades existiam, mas a crença era de poder vencê-las através do trabalho duro — “para o amanhã”.
Influência popular até hoje
Por isso, um dos motivos pelos quais Ashita no Joe se mantém relevante até hoje é o seu protagonista. É ele, Joe, quem mais funciona como um espelho para os seus leitores. Sua determinação, carisma e ousadia.
Mas também sua agressividade, seu egoísmo e teimosia. Seus exageros. Pode-se dizer que a masculinidade tóxica, um assunto muito em discussão atualmente, é um fator predominante na obra.
Talvez toda a agressividade do personagem não seja fruto apenas das dificuldades do meio no qual foi criado, mas também do que ele entendia ser um “verdadeiro homem”. Há um ideal de masculinidade refletido não só em Joe, mas também em seu rival, Rikiishi.
Este elemento é expresso principalmente no orgulho de cada um, fazendo com que os personagens treinem e lutem até o fim. No entanto, o mangá não foge de mostrar as consequências de tais atos, e isso o traz mais próximo de uma abordagem realista.
Talvez, seguindo essa linha de pensamento, o destino dos personagens esteja atrelado à sua própria percepção de gênero. Esta seria apenas mais uma das leituras possíveis do mangá, a qual precisaria de um outro artigo para ampliar a reflexão.
Depois de todos esses fatos e análises, pode-se dizer que Ashita no Joe capturou o zeitgeist do Japão. Vemos que o surgimento e a popularidade do mangá eram produtos do seu próprio tempo, mas impacto do seu conteúdo e a filosofia de vida do seu protagonista foram capazes de atravessar gerações. Como dizia Joe, a ideia era dedicar-se de corpo e alma, manifestando no trabalho o seu amor pelo ofício — queimar até que sobrem apenas cinzas brancas. “Nem mesmo brasas pequenas. Só cinzas brancas.” Por tudo isso, ele será lembrado para sempre.
Republicado do Jbox
Sobre os autores
é bacharel em Cinema e Mestre em Comunicação Social pela PUC-Rio. Também é escritor, roteirista e pesquisador.
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