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A tomada da Bastilha não representa o ápice nem o catalisador da Revolução Francesa. Em vez disso, foi o momento em que as massas de oprimidos parisienses se juntaram ao processo que já estava em andamento no resto da França.

Um guia para a Revolução Francesa

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Tradução
Cauê Seignemartin Ameni

14 de julho de 1789 foi uma das datas mais importantes da história da humanidade. Para resgatar o dia da Tomada da Bastilha, trouxemos as melhores respostas para um monte de dúvidas sobre a Revolução Francesa.

Hoje, militantes do mundo celebram a Tomada da Bastilha Saint-Antoine de 1789 – uma rebelião popular dramática que provocou a Revolução Francesa.

Mas o que foi a Revolução Francesa, como ela remodelou a Europa e o mundo e qual a relevância para o movimento operário hoje? Aqui está um breve guia, compilado com amor para a Jacobin marcar a ocasião.

Como foi a Revolução Francesa?

A Revolução Francesa foi uma das mais importantes revoltas sociais da história. Em 1856, o sociólogo francês Alexis de Tocqueville analisou os chamados “livros de agravo” – listas de demandas feitas pelas várias camadas sociais da França aos Estados-Gerais, a assembléia que minaria o reinado de Luís XVI e levaria finalmente a revolução. O que ele descobriu assustou-o.

“Quando cheguei a reunir todos as demandas individuais, com um sentimento de terror percebi que suas demandas eram pela abolição geral e sistemática de todas as leis e todas as práticas atuais no país. De imediato, vi que a questão aqui era uma das revoluções mais extensas e perigosas já observadas no mundo.”

O processo revolucionário começou com a rebelião aberta no verão de 1789 – incluindo a Tomada da Bastilha em 14 de julho. Pouco tempo depois, isso iria derrubar a monarquia absolutista de Luís XVI; despojar a nobreza de seu poder hereditário; e minar completamente a influência política da Igreja Católica.

Esta revisão dramática na sociedade francesa desencadeou um processo caótico de avanço revolucionário e retrocesso reacionário. As forças proprietárias não estavam dispostas a permanecer quietas porque seus enormes privilégios foram ameaçados; eles tentaram desfazer todas as mudanças radicais trazidas pela revolução e restaurar as velhas hierarquias sociais, mesmo quando os revolucionários trabalharam para combinar um tipo de sociedade inteiramente diferente baseada em ideais mais igualitários.

A partir desse cadinho instável surgiu Napoleão, que construiria o Estado bonapartista através da guerra e do império, levando, finalmente, à subjugação renovada da França pelos antigos poderes da Europa e à restauração da monarquia.

Como era a França como antes da revolução?

A grande maioria das pessoas na França vivia na miséria, com pouca chance de escapar de sua condição. Os camponeses estavam inteiramente à mercê da nobreza, que tinham preservado uma grande parte da relação de poder fundamental do feudalismo. Como Jean Jaurès descreveu em 1901, a subjugação econômica no campo era profunda:

“Não havia uma ação na vida rural que não exigisse que os camponeses pagassem uma compensação… Os direitos feudais, portanto, estendiam suas garras sobre todas as forças da natureza, tudo o que crescia, se movia, soprava […] até o fogo ardendo no forno para cozinhar o pão do pobre camponês.”

Isso levou a uma pobreza quase universal no campo. O agricultor inglês Arthur Young observou na época:

“Os pobres parecem pobres de fato; os filhos terrivelmente esfarrapados, se possível pior vestidos do que se não possuíssem roupas; quanto aos sapatos e meias, eles são luxos… Um terço do que eu vi dessa província parece inculto, e quase tudo na miséria. O que tem reis, ministros, parlamentos, e Estados, a responder por seus preconceitos, vendo milhões de mãos que seriam trabalhadoras, ociosas e famintas, através das máximas execráveis ​​do despotismo ou dos igualmente detestáveis ​​preconceitos de uma nobreza feudal?”

A população urbana de artesãos e assalariados vivia dificuldades semelhantes. As reorganizações econômicas no reino ameaçaram o sistema de aprendizagem, comprometendo a habilidade dos artesãos de controlar seu próprio trabalho. Os assalariados – que eram permitidos nas cidades apenas quando pudessem possuir documentos que comprovassem seu emprego – eram perseguidos pela polícia real.

Ao mesmo tempo, uma onda de imigração trouxe mudanças demográficas dramáticas para Paris. O historiador Eric Hazan estima que, em 1789, os imigrantes eram cerca de dois terços da população da cidade, e cada um tinha que “solicitar um passaporte na região de origem para evitar ser preso no caminho como vagabundo e enviado às colônias de mendigos”.

O clero e a nobreza, que compunham aproximadamente 1,6% da população, iam bem – a maioria dos nobres vivia em extrema opulência e herdavam suas posições hereditariamente. A Igreja Católica controlava cerca de 8% da riqueza privada total.

Mas nos anos anteriores à revolução, uma nova classe de financiadores – geralmente artesãos móveis ou camponeses ascendentes – começou a crescer nas cidades, ameaçando substituir a nobreza por ser a camada mais decadente das camadas sociais.

Enquanto isso, o reino estava em meio a uma crise financeira catastrófica. O rei estava quebrado e o sistema de contabilidade que se desenvolveu caoticamente durante a Guerra dos Sete Anos deixou seus funcionários incapazes de explicar a riqueza do reino até quase desaparecer. Os financiadores estrangeiros estavam cobrando suas dívidas, a colheita de 1788 foi dizimada por uma seca e uma série de tempestades de granizo, e o acordo de livre comércio negociado entre a França e a Grã-Bretanha no final da Guerra dos Sete Anos inundou o mercado francês com produtos têxteis britânicos, arruinando a produção de vestuário francesa.

As coisas estavam ruins. Em pânico sobre a crise financeira, Louis XVI apertou ainda mais as pessoas, exigindo maiores impostos de todas as camadas da sociedade.

Mas houve rumores de resistência, tanto nas cidades como no campo. Elites como Louis-Sébastien Mercier expressaram consternação com a insubordinação dos trabalhadores urbanos:

“Há insubordinação visível entre os indivíduos há vários anos, e especialmente nos comércios. Aprendizes e rapazes querem mostrar sua independência; eles não têm respeito pelos mestres, eles formam corporações [associações]; esse desprezo pelas antigas regras é contrário à ordem… Os trabalhadores transformam uma loja de impressão em uma cova de fumo real.”

E os camponeses, que ainda esperavam sacrificar até os seus alimentos mais básicos como tributo ao rei e à igreja, resolveram as coisas com suas próprias mãos à medida que a fome surgia. Como um prefeito de um distrito rural observou: “É impossível encontrar dentro de um raio de meio légua um homem preparado para carregar um carrinho de trigo. A população está tão enfurecida que mataria por um alqueire.” Os camponeses famintos não estavam dispostos a entregar farinha aos seus mestres feudais para satisfazer as demandas de uma enorme dívida de guerra; eles preferiam comê-la em vez disso.

Qual outra solução senão revolução?

O que aconteceu em 14 de julho de 1789?

A tomada da Bastilha em 14 de julho de 1789 representa o momento inaugural da revolução popular na história. Encorajados pelo ritmo acelerado das reformas – e exasperados com a relutância da Assembléia Nacional em assumir uma linha mais dura com as intransigentes do rei – a massa de artesãos e operários atacaram a Bastilha de Saint-Antoine, apreenderam armas, pólvora e soltaram o punhado de prisioneiros ali mantidos.

Ao reivindicar a fortaleza em nome da revolução, enviaram uma mensagem poderosa às forças da velha riqueza que ainda dominava o reino – a reviravolta na França não seria uma simples reorganização legislativa, mas sim uma revolução social. Desse ponto em diante, o processo revolucionário francês tomaria, em muitos aspectos, a inciativa de uma volátil insurreição popular que voltava a surgir cada vez que seus ganhos eram ameaçados.

Hazan descreve da seguinte maneira:

“A tomada da Bastilha é o evento mais famoso da Revolução Francesa e, além disso, tornou-se seu símbolo em todo o mundo. Mas essa glória distorce seu significado histórico. Não foi um momento de milagre, nem uma conclusão, nem um ponto culminante da ‘boa’ revolução antes do início do ‘mal’, de 1793 ao Terror; a Tomada da Bastilha foi um ponto brilhante na trajetória da insurreição de Paris, que continuou sua curva ascendente…”

Prenunciando a dramática tomada das Tulherias por milhares de sans-culottes em 1792 – o que estabeleceria a Comuna Insurrecional e finalmente deporia o rei – a Tomada da Bastilha não representa nem a culminação nem o catalisador da Revolução Francesa. Em vez disso, foi um momento em que massas de parisienses oprimidos se lançaram no processo de reforma já em curso na França, desafiando o absolutismo do rei, bem como a autoridade das supostas assembleias legislativas. Desta forma, eles ajudaram a transformar o que poderia ter sido um período de reforma cautelosa em um período de verdadeira revolução.

Quem eram os sans-culottes?

Os sans-culottes eram o insurrecionário “movimento dos trabalhadores pobres” que, nas palavras do historiador Eric Hobsbawm, “constituíam a principal força de impacto da revolução”. Nomeados assim por não possuirem os calções usados ​​pelas elites, os sans-culottes habitavam o terreno político da rua e da praça, enquanto os revolucionários burgueses realizavam seu trabalho político nas assembleias e nos órgãos legislativos.

Mais precisamente, os sans-culottes estavam preocupados em estabelecer um sistema de democracia direta que pudesse garantir um preço consistente de provisões vitais – os pobres ansiavam pela mesma segurança alimentar que os nobres, e ressentiam-se da profunda diferença entre o pão consumido pelas elites ricas e o pão disponível para trabalhadores comuns.

Uma revolta popular expulsou Louis XVI de seu último esconderijo em Tuileries em 10 de agosto de 1792 – uma tremenda vitória para os exércitos de sans-culottes que desciam em massa atrás do rei, acusando-o (com razão) de conspiração traiçoeira com monarquias estrangeiras para esmagar a revolução em seu próprio país. Depois dessa vitória, os sans-culottes formaram a Comuna Insurrecional e propuseram uma reforma abrangente: “igualdade e pão”. Eles escreveram: “Riqueza e pobreza devem desaparecer em um mundo baseado na igualdade. No futuro, os ricos não terão o seu pão feito de farinha de trigo, enquanto os pobres terão o seu feito de farelo”.

Aspirações parecidas motivaram os sans-culottes: liberdade da tirania e acesso ao pão.

A demanda dos sans-culottes por preços fixos em alimentos oferece um insights sobre o desenvolvimento da economia francesa neste período – à medida que mais artesãos foram privados de sua auto-suficiência e forçados a aceitar trabalho assalariado, eles se descobriram incapazes de pagar bens de consumo básicos. Para os sans-culottes, exigir preços mais baixos dos alimentos – não salários mais altos – foi a resposta intuitiva à transição para o trabalho assalariado.

Muitas vezes armados apenas com lanças – úteis para desfilar pela rua com as cabeças decepadas de colecionadores de alimentos ou monarquistas, como era seu hábito – os sans-culottes fizeram mais do que apenas representar uma grave ameaça às antigas hierarquias da monarquia. Eles também forçaram corpos revolucionários formais como a Assembléia Legislativa a adotar posições mais radicais para atender às expectativas dos pobres insatisfeitos e insurgentes.

Embora o historiador Albert Soboul tenha tentado argumentar que os sans-culottes eram um tipo peculiar de proletariado – como o fez o socialista Jean Jaurés -, essa categoria faz pouco sentido no contexto da sociedade francesa do século XVIII. Em vez disso, os sans-culottes eram uma coalizão social formada por aqueles que foram afetados mais duramente pela economia francesa em transformação, incluindo diaristas que buscavam constantemente um trabalho mal remunerado, artesãos (como os fabricantes de roupas) cuja subsistência foi ameaçada pela transição para modos mais industriais de fabricação, e aprendizes que não podiam mais formar “corporações” (associações comerciais).

Como eram negadas a democracia e a abundância constantemente prometidas pela revolução, os sans-culottes repetidamente tomaram as coisas em suas próprias mãos, forçando o impulso revolucionário para frente cada vez que a burguesia se mostrava hesitante em desafiar ainda mais o status quo. Qualquer que seja sua posição de classe, sua contribuição para a revolução foi profunda. Como Hazan escreve:

“É verdade que a noção [de “sans-culotte“] é bastante elástica, por vezes evocada pela metonímia do mundo da Paris popular, por vezes as multidões dos grandes journesés revolucionários, por vezes de novo os militantes que dominaram a vida das secções. Mas os confrontos muitas vezes violentos com as assembleias e autoridades estabelecidas não eram obra de um ideal estereotipado: eles mostram a presença real desse ser de carne e osso, o sans-culotte parisiense.”

Os sans-culotte eram o que os sans-culotte fizeram. O constante conflito com os privilegiados, muitas vezes violentamente e na rua, exigindo um mundo em que a comida fosse facilmente acessível e a democracia simples e direta – esta orientação, mais do que qualquer outra coisa, determinava um sans-culotte.

Quem eram os jacobinos?

Após a insurreição em massa dos sans-culottes que efetivamente dissolveram a monarquia e levaram a burguesia armada ao poder, as monarquias europeias temiam que o exemplo francês desestabilizasse seu poder em seus próprios países. A Áustria ficou do lado do regime deposto, assim como a Prússia. A França revolucionária respondeu com declarações de guerra em 1792.

Enquanto isso, os sans-culottes – tendo aprendido recentemente o poder da mobilização armada – continuaram a fazer exigências ao governo revolucionário, ameaçando não apenas as velhas figuras do antigo regime, mas também a burguesia ascendente.

Em resposta a esta crise, o Comitê de Salvação Pública foi formado como um baluarte contra a agressão dos ricos, fossem franceses ou estrangeiros. O Comitê foi convocado sob a liderança da seção mais militante da burguesia revolucionária – os jacobinos.

Oficialmente chamado Sociedade dos Amigos da Constituição, o Clube Jacobino, no período de Maximillien Robespierre, incorporou a resposta mais radical à crise revolucionária; para derrotar as forças da reação, eles se viram obrigados a tomar medidas radicais – incluindo controle de preços, apreensões de comida e o período de violência tática que viria a ser conhecido como o “Reino do Terror”. Enquanto nos primeiros períodos o Clube dos Jacobinos havia incluído atores mais moderados, a ala radical que se unia em torno de Robespierre – conhecida como Montagnards – acabou se tornando a tendência dominante dentro das fileiras jacobinas.

Politicamente, esses jacobinos eram radicalmente diferentes das forças que detinham o poder nos estágios iniciais da revolução – monarquistas constitucionais como Lafayette (que desprezavam os jacobinos, chamando-os de “uma seita que infringe a soberania e tiraniza os cidadãos”), liberais como o astrônomo e prefeito de Paris Jean-Sylvain Bailly e republicanos mais conservadores como o militarista Jacques-Pierre Brissot.

Embora sua liderança tenha saído das fileiras da burguesia intelectual – e não dos sans-culottes – os jacobinos estavam comprometidos em separar o direito de participação política da propriedade; Robespierre escreveu em 1791, “todo cidadão tem o direito de cooperar na legislação e, portanto, de ser eleito ou elegível, sem distinção de fortuna”.

O Clube Jacobino – junto com as redes de organizações fraternas que surgiram para disseminar os ensinamentos revolucionários – foi instrumental na produção das próprias camadas de trabalhadores radicais que mais tarde viriam a ser conhecidos como os sans-culottes. Na ausência de partidos políticos como os entendemos hoje, os sans-culottes receberam sua educação política de sociedades revolucionárias como os jacobinos, que produziam jornais e convocavam reuniões em que a propaganda revolucionária era lida em voz alta.

O Clube dos Jacobinos, em virtude de seu tamanho e militância, chegou a influenciar as discussões na Assembléia Nacional durante os primeiros estágios da revolução. Como o Abbé Grégoire recordou:

“Os jacobinos a colocaram [uma questão vaiada pela maioria conservadora da Assembleia] em suas publicações; foi discutido por quatrocentas ou quinhentas sociedades afiliadas e, três semanas depois, os discursos foram dirigidos à Assembleia, pedindo um decreto sobre um assunto inicialmente rejeitado, mas que a Assembleia então aceitou por uma grande maioria, desde que a opinião pública foi amadurecida pela discussão.”

Eric Hazan explica: “A sociedade e seus ramos funcionavam como um sistema para disseminar ideias revolucionárias em todo o país. Nada é mais absurdo do que a ideia de ‘jacobinista’ como uma ditadura de Paris autoritária e intrometida.”

Acima de tudo, os jacobinos estavam intensamente preocupados em traduzir o fervor revolucionário de 1789 em uma sociedade revolucionária durável e sustentável. Eles viram seu papel de fortalecer e aprofundar os ideais radicais da revolução, protegendo-a de ataques. Como Robespierre escreveu em 1794:

“Quando, por esforços prodigiosos de coragem e razão, um povo rompe as correntes do despotismo para transformá-las em troféus de liberdade; quando pela força de seu temperamento moral vem, por assim dizer, dos braços da morte, para reconquistar todo o vigor da juventude; quando por turnos é sensível e orgulhoso, intrépido e dócil, e não pode ser parado nem por baluartes inexpugnáveis nem pelos inumeráveis exércitos dos tiranos armados contra ele, mas se detém ao confrontar a imagem da lei; então, se não subir rapidamente ao cume de seus destinos, isso só pode ser culpa de quem o governa.”

O que devemos pensar sobre o “Reino do Terror”?

O Reino do Terror foi um período de intensa violência liderada pelos jacobinos de Robespierre, durante o qual a guilhotina tornou-se a ferramenta política mais poderosa e a repressão a tarefa política mais vital. Embora muito menos do que os milhões que perderam suas vidas durante as Guerras Napoleônicas, cerca de 17.000 pessoas – contra-revolucionários, bem como pensadores dissidentes dentro da revolução – foram executados pela guilhotina. Dezenas de milhares de pessoas foram mortas sem julgamento ou morreram na cadeia – o historiador Timothy Tackett estima que um total de mortes chega perto de 40.000.

O legado desse período ainda é muito debatido. Mas é difícil contestar que o terror surgiu em resposta à necessidade urgente de defesa política e militar. As velhas figuras do antigo regime eram mais do que meros símbolos de opulência ou tirania histórica; muitos eram antagonistas ativos da revolução, trabalhando para desmantelar seu progresso e assassinar seus soldados precisamente na época em que a transformação revolucionária era mais vulnerável.

Robespierre escreveu em 1794:

“Se a fonte do governo popular na paz é a virtude, a fonte do governo popular em revolução é ao mesmo tempo a virtude e o terror: a virtude, sem a qual o terror é funesto; o terror, sem o qual a virtude é impotente. O terror não é outra coisa senão a justiça pronta, severa, inflexível; é, portanto, uma emanação da virtude: é menos um princípio particular que uma consequência do princípio da democracia aplicado às mais prementes necessidades da Pátria.

Já foi dito que o terror é o princípio do governo despótico. O seu governo, portanto, se assemelha ao despotismo? Sim, como a espada que brilha nas mãos dos heróis da liberdade se assemelha àquela com a qual os capangas da tirania estão armados. Deixe o déspota governar pelo terror seus sujeitos brutalizados; ele está certo, como um déspota. Subjugue pelo terror os inimigos da liberdade, e você estará certo, como fundadores da República. O governo da revolução é o despotismo da liberdade contra a tirania. A força é feita apenas para proteger o crime? E o raio não está destinado a atingir as cabeças dos orgulhosos?

Indulgência para os monarquistas, choram certos homens, misericórdia para os vilões! Não! misericórdia para os inocentes, misericórdia para os fracos, misericórdia para os infelizes, misericórdia para a humanidade.”

Mais uma coisa parece quase certa: enviar oponentes políticos nas fileiras dos revolucionários para a guilhotina – os dantonistas, os hebertistas – era um reflexo da fraqueza política que deixou Robespierre isolado e, finalmente, indefeso contra os planos que ele tanto temia.

Com o benefício da retrospectiva, Engels escreveu em uma carta para Marx em 1870 que:

“Esses pequenos pânicos perpétuos dos franceses – que surgem todos do medo do momento em que eles realmente terão que aprender a verdade – dão uma ideia muito melhor do Reino do Terror. Pensamos nisso como o reino das pessoas que inspiram o terror; pelo contrário, é o reino de pessoas que estão aterrorizadas. 

O terror consiste principalmente de crueldades inúteis perpetradas por pessoas amedrontadas para se tranquilizarem. Estou convencido de que a culpa pelo Reino do Terror, em 1793, é quase exclusivamente da burguesia excessivamente nervosa, que se rebaixa como patriota.”

O próprio Marx, embora certamente crítico das particularidades do “terror revolucionário”, como se desenrolou na França, adotou uma postura menos ambígua em relação à violência na defesa da revolução:

“Aqui há apenas uma maneira em que as agonias de morte da velha sociedade e os espasmos de nascimento sangrentos da nova sociedade podem ser encurtados, e essa maneira é o terror revolucionário.”

Quem arruinou a Revolução Francesa?

No verão de 1794 – cinco anos após o agitado verão que viu a convocação dos Estados Gerais, a formação da Assembleia Nacional e a Tomada da Bastilha – a revolução se fragmentou e Robespierre ficou cada vez mais isolado, levado a ocupar um flanco à esquerda da liderança revolucionária em grande parte desprovido de aliados ou apoio.

Temeroso de conspirações contra sua vida, Robespierre defendeu a execução de outros líderes revolucionários como Hebert e Danton, enquanto presidia o Comitê de Segurança Pública. Previsivelmente, Robespierre foi vítima de uma conspiração da direita, e a escassez de possíveis aliados – as fileiras dos moderados e da esquerda tendo sido severamente abatidos pelas expedições de Robespierre à guilhotina – selou sua destruição.

No 9 de Termidor (27 de julho) de 1794, a Convenção Nacional, seguindo o exemplo de Jean-Lambert Tallien, condenou Robespierre e três outros jacobinos radicais à morte. Depois de uma insurreição de curta duração contra a Assembléia Nacional – liderada pela Comuna de Paris, a assembleia formada pelos sans-culottes e seus aliados burgueses após a vitória em Tuileries dois anos antes – Robespierre e seus aliados foram presos. No dia seguinte, eles foram executados na guilhotina.

Um violento expurgo da Comuna seguiu-se. Dos seus noventa e cinco líderes presentes no momento da captura de Robespierre, oitenta e sete morreram na guilhotina. Como escreve Eric Hazan, “um novo terror começou”.

Filippo Buonarroti, um comentarista contemporâneo e amigo de Robespierre, lamentou a derrota monumental, interpretando-a como o resultado de uma aliança vulgar entre os elementos sobreviventes da velha aristocracia e os revolucionários oportunistas na ala da direita. Para justificar suas ações, afirma ele, os líderes da chamada “reação termidoriana” tiveram que distorcer os legados daqueles a quem se opunham, cinicamente distorcendo princípios revolucionários a serviço do privilégio. Ele escreveu:

“Os professores interessados na democracia, e os antigos partidários da aristocracia, encontravam em concordância mais uma vez. Certos gritos de guerra que recordavam as doutrinas e instituições da igualdade eram agora considerados os uivos impuros da anarquia, do banditismo e do terrorismo.”

Eric Hazan, escrevendo séculos depois, é similarmente pessimista:

“O que foi brutalmente concluído com Thermidor é a fase incandescente da Revolução, na qual os homens de governo, às vezes seguidos e, às vezes, impulsionados pela parte mais consciente do povo, procuraram mudar desigualdades materiais, relações sociais e modos de vida. Eles não tiveram sucesso, com certeza.”

Deixado desprotegido pela insurgência popular dos sans-culottes que, em uma época anterior, pode ter vindo em sua ajuda, Robespierre morreu sem ver a conclusão do projeto revolucionário que ele incorporou, e a Revolução Francesa morreu logo depois.

O enfraquecido Estado francês, despojado de grande parte de seu potencial democrático, não conseguiu cumprir as promessas da revolução e ficou sob o controle daqueles que veriam os avanços mais radicais da revolução derrubados. Desse contexto político, logo surgiu Napoleão Bonaparte, e a revolução logo se transformou no Estado bonapartista, construído através da guerra e do imperialismo no exterior e da tirania aristocrática em seu próprio país. Naquele que foi, talvez, o exemplo mais perverso da inversão de princípios revolucionários apontada por Buonarotti, a agenda revolucionária de liberdade e igualdade tornou-se uma doutrina de dominação global através das expedições imperiais de Napoleão.

A revolução foi, em muitos aspectos, derrotada – embora suas memórias ainda motivassem levantes democráticos como a Comuna de Paris liderada pelos trabalhadores décadas mais tarde.

Como o resto da Europa viu a revolução?

A insurreição dos sans-culottes e a liberalização do sistema político francês tiveram profundos efeitos nas monarquias vizinhas. Previsivelmente, a reação dos monarcas foi muito diferente da resposta das massas.

Os monarcas da Áustria e da Prússia – incluindo Leopoldo II, um parente da realeza francesa – interessaram-se imediatamente pela agitação popular que desestabilizou o reino vizinho, até mesmo em conluio com Luís XVI e Maria Antonieta para orquestrar uma guerra entre reinos para enfraquecer o constitucionalista Estado.

Depois que Luís XVI foi impedido de fugir do país por camponeses enfurecidos e a evidência de sua traição foi descoberta em Paris, o povo francês ficou tão indignado que eles capturaram as Tulherias e depuseram o rei, provocando escaramuças com os monarcas vizinhos.

Mas as pessoas comuns nas regiões vizinhas viram inspiração para sua própria libertação na luta popular francesa. Guardas suíços – contratados como mercenários para defender Louis XVI – desertaram para as fileiras dos sans-culottes em massa durante a tomada de Tuileries, e houve incidentes semelhantes de troca ao longo da fronteira, enquanto soldados representando a nação francesa absorveram tropas estrangeiros dissidentes.

Após a Revolução Francesa, rebeliões populares também ocorreram na Itália e na Suíça, citando a luta francesa como um exemplo ideológico e militar.

Qual foi a relação entre a Revolução Francesa e a Haitiana?

Entre 1791 e 1804 – durante o mesmo período de levante revolucionário na metrópole – os escravos da ilha francesa de São Domingos se rebelaram contra o sistema de plantation que mantinha sua miséria, exigindo para si os direitos dos cidadãos. Os escravos rebeldes despojaram a classe dos proprietários de sua riqueza, executaram os proprietários restantes na ilha, aboliram a escravidão e estabeleceram o Haiti, a primeira república livre nas Américas.

Entre os documentos inaugurais da nova nação estava um apelo ao mais fundamental dos tratados revolucionários franceses: a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão“.

Faríamos bem em lembrar o aviso de Marx: “As idéias nunca podem ir além de uma velha ordem mundial, mas pode ir, apenas, além das idéias da velha ordem mundial. As ideias não podem realizar absolutamente nada. Para realizar as idéias, são necessários homens que possam exercer força prática.” Portanto, cuidado é essencial para evitar exagerar o papel da ideologia revolucionária francesa na formação da rebelião de escravos através do Atlântico – o desafio mais dramático já apresentado à hegemonia da escravidão europeia.

Mas está claro que os panfletos revolucionários da França – que eram muitoschegaram às mãos dos escravos em São Domingos. E certamente as demandas de escravos para serem incorporados ao projeto revolucionário da França metropolitana – para não mencionar a demanda por inclusão na comunidade dos chamados “valores iluministas” – moldaram o desenvolvimento da revolução na Europa, desafiando-a a expandir seu entendimento sobre homem e cidadão. C.L.R. James escreve:

“Excluindo as massas de Paris, nenhuma parte do império francês desempenhou, em proporção ao seu tamanho, um papel tão grandioso na Revolução Francesa quanto o meio milhão de negros e mulatos nas remotas ilhas das Índias Ocidentais.”

O que os bolcheviques pensavam sobre os jacobinos?

Eles eram fãs. Embora os bolcheviques construíssem um partido dos trabalhadores de massa para inaugurar uma sociedade socialista, muito diferente do que os jacobinos procuravam realizar, Lenin viu muito o que admirar em seu exemplo revolucionário. Ele escreveu em 1917:

“Historiadores proletários vêem o jacobinismo como um dos picos mais altos na luta de emancipação de uma classe oprimida. Os jacobinos deram à França os melhores modelos de revolução democrática e de resistência a uma coalizão de monarcas contra uma república. Os jacobinos não estavam destinados a obter a vitória completa, principalmente porque a França do século XVIII estava cercada no continente por países atrasados demais e porque a própria França não possuía a base material do socialismo, não havia bancos, sindicatos capitalistas, nem indústria com máquinas e ferrovias. 

O ‘jacobinismo’ na Europa ou na linha divisória entre a Europa e a Ásia no século XX seria o domínio da classe revolucionária, do proletariado, que, apoiado pelos camponeses pobres e aproveitando as bases materiais existentes para avançar para o socialismo, poderia não apenas fornecer todas as coisas grandiosas, inerradicáveis e inesquecíveis proporcionadas pelos jacobinos no século XVIII, mas também trazer uma vitória mundial duradoura para os trabalhadores.

É natural que a burguesia odeie o jacobinismo. É natural que a pequena burguesia tenha medo disso. Os trabalhadores com consciência de classe geralmente colocam sua confiança na transferência do poder para a classe revolucionária e oprimida, pois essa é a essência do jacobinismo, a única saída para a crise atual e o único remédio para o deslocamento econômico e a guerra .

Como devemos lembrar a Revolução Francesa?

A Revolução Francesa foi uma enorme reorganização social que afetou cerca de 25 milhões de pessoas na França e inúmeras outras em regiões tão distantes geograficamente como o Haiti. Durante os cinco anos de resistência entre as forças da reação e a vontade dos revolucionários, as pessoas comuns passaram por grandes dificuldades, mas também pela oportunidade sem precedentes de intervir na política nacional e interromper as relações de poder exploradoras que definiram suas vidas. Como Hobsbawm nos lembra:

“Não foi uma fase confortável de se viver, pois a maioria dos homens estava com fome e muitos com medo; mas foi um fenômeno tão terrível e irreversível quanto a primeira explosão nuclear, e toda a história foi permanentemente mudada por ela. E a energia que gerou foi suficiente para varrer como palha os exércitos dos antigos regimes da Europa.”

Eric Hazan conclui seu livro com outro lembrete – a Revolução Francesa, de muitas maneiras, terminou em derrota. A história principal é a história dos vencedores, as forças da reação que conseguiram cauterizar a revolução no Termidor. Portanto, nossa tarefa é escavar a história da grande revolução da França, agora soterrada por mais de dois séculos de contra-revolução permanente. Ele escreve:

“Os herdeiros termidorianos, que nos governaram e nos ensinaram continuamente desde então, buscam travestir essa história. Contra eles, vamos manter a memória viva, e nunca perder a inspiração de uma época em que se ouvia dizer que ‘os infelizes são os poderes da Terra’, que ‘a essência da República ou da democracia é a igualdade’ e que ‘o propósito da sociedade é a felicidade comum’.”

Avante para a felicidade comum. Feliz dia da Tomada da Bastilha!

Sobre os autores

é doutorando em geografia na Rutgers, The State University of New Jersey.

Cierre

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Published in Análise, Europa and Revoluções

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