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Foto de João Pires / Estadão

Por uma pedagogia da escuta

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No centenário do pedagogo e militante socialista Paulo Freire vale resgatar uma das questões centrais da Educação Popular: o processo de escuta. Precisamos voltar a escutar as ruas e os movimentos, sobretudo indígena, para estabelecer diálogos e travar o bom combate na transformação social.

Este artigo faz parte da série que acompanha a terceira edição da Jacobin Brasil, “Educação & revolução”, em homenagem ao centenário de Paulo Freire, o patrono da edução brasileira, que já está disponível em pré-venda para comprar avulsa. Quem assinar um de nossos planos, receberá esta edição em novembro e a “Derrubem este muro!” em outubro.


Muitos educadores, em determinado momento de sua prática, são convocados para envolver-se com a Educação Popular. E por qual razão? Porque ouvem seu chamamento à vida. No dia de hoje, centenário de Paulo Freire, refaço o movimento inicial, bato minha palma e faço uma invocação a este educador popular a fim de que ele escute as reverberações de sua contribuição pedagógica na transformação do mundo. Decerto, Paulo Freire não é sinônimo de Educação Popular, mas pensar a Educação Popular no Brasil é lembrar de seu trabalho e compromisso com a palavra.

Para Freire, o ponto de partida para o trabalho com a Educação Popular é o diálogo por meio do qual mulheres e homens do povo dizem sua palavra. Diálogo no qual as palavras dizem respeito ao seu trabalho, à sua dor, à sua fome. Um dizer concreto porque têm relação direta com a vida. De onde vem a voz da Educação Popular senão das situações sociais do ensino-aprendizagem das quais vida, educação e política estão intimamente imbricadas?

A voz da Educação Popular está presente nas rodas de capoeira, nos slams das minas, como também nas assembleias de bairro, nas pastorais sociais, desde uma torcida organizada de futebol, no chão das escolas de samba ou dos terreiros de candomblé; nas lutas dos movimentos negros e também das feministas negras, indígenas, refugiadas, brancas; desde às populações de rua; no cotidiano de um assentamento. Lugares onde é possível ver concretamente as faíscas do sonho coletivo para experimentar a liberdade, onde seus participantes aprendem e ensinam simultaneamente, onde a escuta é uma exigência para que mulheres e homens reconheçam a si mesmos como criadores e criaturas da cultura e digam sua palavra.  

Apesar da estrutura vertical e escravocrata como legado dos opressores, os elementos da cultura dos oprimidos no Brasil apontam às formas circulares de organização enquanto espaço de resistência, entendida aqui como pressão desde baixo, e também como ato de criação. A superação da realidade injusta perpassa por prestar menos atenção nos quadradismos esquemáticos que nada têm a ver com a vida para escutar a mensagem destes potenciais círculos de cultura.

O círculo de cultura funciona como grupo de trabalho e debate visando a democratização fundamental, no sentido radical do termo. Freire ouviu certa vez de um dos seus educandos-educadores que a democratização tem de partir daquilo que somos e do que fazemos como povo, não do que pensam e queiram para nós. O que coloca como urgente a tarefa-busca por uma pedagogia da escuta.

Um exercício de escuta dentro e fora do círculo de cultura

Há muitas formas de dizer algo, pela boca, pelos gestos e pelo olhar. Assim como há formas de escutar, seja pelos olhos ou pelas mãos e pelos ouvidos. Há silêncios, entendidos aqui como indisposição à comunicação.

Ao apresentar sua teoria da dialogicidade, Freire apresenta uma questão existencial: pronunciar o mundo é modificá-lo. Isto porque, enquanto sujeitos pronunciantes, este mundo pronunciado tem força concreta. Quando se visualiza este mundo que se tornou concreto por meio das palavras, há a oportunidade de problematizá-lo. Uma vez problematizado, as palavras retornam em direção ao sujeito pronunciante, modificando a si e sua forma de pronunciar, agora nova. Pronunciar o mundo é descobrir-se sujeito, é ser transformado por essa descoberta e transformá-lo daqui em diante. Operação que não se faz no silêncio ou tampouco na solidão.

A Educação Popular freiriana é capaz de sentir com o outro no ato de dizer sua palavra, porque a dialogicidade pressupõe a busca pela palavra autêntica e denúncia verdadeira, mas também a posição de escuta atenta. Até mesmo quando é necessário confrontar concepções alheias, fala-se com o outro “como sujeito da escuta de sua fala crítica e não como objeto de seu discurso”.

A palavra autêntica não é o ponto final que premia o vencedor, mas um dizer compromissado. É um dizer da palavra que acompanha o compromisso da escuta do que o outro tem a dizer, fazer tal escuta   com paciência, para que seja possível seguir em uma nova direção. Vencer, para Freire, é superar a situação de opressão na qual estamos situados e sofrendo sucessivas derrotas. Dialogicidade, essa palavra difícil, que é encontro e trabalho, refere-se a um ato de criação – um lugar de fala e escuta.

Por isso ele diz: a conquista implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, não a de um pelo outro. Conquista do mundo para a libertação dos homens”. 

Reflorestando mentes

Entre os dias 7 e 11 de setembro, mulheres e meninas indígenas de 172 etnias reuniram-se em Brasília para a realização da II Marcha das Mulheres Indígenas. Sob o título “Mulheres originárias: reflorestando mentes para a cura da Terra”, o acampamento teve como objetivo a luta em defesa da vida, ameaçadas pelo racismo e violência de gênero, pelo agronegócio e a mineração, materializados pelos projetos de lei que favorecem a grilagem e a tese supremacista branca do Marco Temporal. A marcha de mulheres indígenas com seu “corpo [coletivo] consciente” ocupou Brasília com seus cantos, danças e pedagogias a quem estivesse aberto a escutar.

Antes da plenária final, Célia Xakriabá pegou a palavra e denunciou a chama: como aquela que incendiou a casa da liderança Munduruku Maria Leusa sendo a mesma chama que destrói a Amazônia, Cerrado, Pantanal anualmente, mas inverteu seu sentido e fez da denúncia, o anúncio do programa político-pedagógico das mulheres indígenas para o país e para o mundo, convocando um grande mutirão com objetivo de reflorestar territórios, cabeças e corações. O que seria este movimento senão a palavra autêntica de Paulo Freire, na qual palavra e ação não estão sacrificadas uma pela outra, mas sim no diálogo que desemboca na práxis e na transformação do mundo? No lugar da dicotomia mundo-homens, tivemos a afirmação e conduta das mulheres-bioma.

Muita coincidência que um dos maiores movimentos de 2021 que trabalham com Educação Popular no Brasil, a II Marcha das Mulheres Indígenas, aconteça no mês do centenário de Paulo Freire. Em sua última entrevista, Paulo Freire comentou sobre a alegria de ver o Brasil cheio, em seu tempo histórico, de marchas. Em 1997, ano de seu falecimento, o Movimento Sem Terra (MST) ocupava as ruas. Hoje, junto com eles estão as mulheres indígenas organizadas pelo direito originário de seu território. Freire dizia que as marchas são andarilhagens históricas pelo tempo (….) que é preciso mesmo brigar para que se obtenha um mínimo de transformação“.

Em tempos de lugares de fala como reivindicação legítima, faz-se necessário compromissar-se com lugares de escuta, com este chamamento à vida pela transformação: escutar as ruas, escutar os movimentos, reflorestar os caminhos, abrir círculos, estabelecer diálogos para então fazer o bom combate. 

Sobre os autores

é educadora popular, professora e historiadora pela Universidade Federal Fluminense. É professora de História da rede privada do DF, coordenadora do setorial de mulheres do Fórum de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana – Águas Lindas-GO/Paranoá-DF, participa do Comitê de Campanha pelo Direito à Educação e organiza o Círculo de Cultura Dialogicidade.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise and Educação

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