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Monark do Flow Podcast. Foto: Reprodução

A “liberdade” usada em defesa do discurso antivacina é uma falácia

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Liberais e conservadores têm manejado o argumento em defesa da "liberdade individual" para justificar a recusa em tomar vacina. Mas há um enorme perigo, e falta de embasamento, por trás dessa narrativa que deveria estar bem claro para todos após uma pandemia ceifar a vida de mais de 600 mil brasileiros.

Embora não pareçam ter muita expressividade no Brasil, os movimentos antivacina passaram por uma nova onda de projeção na esfera pública com a pandemia da Covid-19. Em algumas partes do mundo, inclusive em alguns países centrais e produtores de tecnologia médica, como nos Estados Unidos, a questão se tornou ainda mais controversa quando os governos restringiram a circulação ao trabalho e ao acesso de certos serviços a pessoas que não se vacinassem – os chamados vaccine mandates, os passaporte de vacinas. 

Entidades privadas e líderes políticos se opuseram a essas regras com base, sobretudo, em um argumento: obrigar alguém a se vacinar fere a liberdade individual. Uma pesquisa que coletou material do YouTube em português sobre o assunto identificou esse argumento na maioria dos vídeos. Esse argumento faz sentido?

Há vários motivos para que não nos convençamos por ele. Alguns deles são relativamente bem explorados na esfera pública. O discurso antivacina parte de um anticientificismo vulgar, que se vale de notícias falsas para gerar um ceticismo antissistema com consequências nefastas para a saúde pública. Sob a perspectiva propriamente moral, poderíamos, ainda, questionar se nenhuma perda de liberdade justifica nenhum bem-estar coletivo, ainda que a perda individual seja mínima e o ganho de bem-estar seja imenso. 

Deveríamos respeitar o capricho dos sujeitos que se recusam a tomar a vacina, mesmo que isso significasse um exercício de liberdade, diante dos danos graves que sua opção seria capaz de provocar não só para eles, mas também para a comunidade, fomentando o alastramento de um vírus mortal? Para muitas pessoas, a resposta a essa pergunta é um retumbante não. 

Precisamos analisar o núcleo do argumento da liberdade, aceitando provisoriamente sua premissa de que liberdades devem ser respeitadas e separando-o dessas outras questões. Nesse caso, será que é possível defender um direito apenas porque ele preserva liberdades?

De que liberdade estamos falando?

Delimitar dessa maneira a questão é útil por ao menos dois motivos. Primeiro, a narrativa da liberdade torna a pauta palatável como parte do discurso liberal. Quem, afinal, pode ser contra a liberdade? Emplacar a narrativa de que uma certa bandeira é uma defesa da liberdade funciona como artifício retórico para tentar equiparar seus opositores a autoritários. Além disso, pode ter o efeito prático de dificultar represálias institucionais, como o estudo que citei mostra ser o caso quanto ao controle de conteúdo do YouTube em relação a vídeos antivacina.

Em segundo lugar, a retórica da liberdade é empregada em muitas outras pautas além das capitaneadas pelo movimento antivacina. A liberdade de expressão, por exemplo, que no passado recente foi por vezes instrumentalizada em defesa de propagadores de discurso de ódio, veio, na esteira de movimentos autoritários dentro e fora do Brasil, a ser empregada também para defender ataques golpistas a instituições democráticas.

Esclarecer o que é liberdade nesse sentido político da palavra, adotando, embora criticamente, a perspectiva dos próprios liberais e libertários, pode, portanto, trazer clareza sobre um instrumento retórico poderoso. O que é, então, uma liberdade?

A primeira intuição sobre liberdade para maioria das pessoas provavelmente passa pela ideia de poder fazer alguma coisa. Mas não “poder” em qualquer sentido. Não posso, por exemplo, voar, mas essa incapacidade decorre, digamos, de eu não ter asas, e não de eu não ser livre. Falamos em liberdade quando não somos impedidos de fazer algo por outras pessoas. É essa a conceituação, por exemplo, de Isaiah Berlin – um liberal – sobre liberdade “negativa” (em contraste a liberdade positiva ou política) em seu livro Dois conceitos de liberdade

“normalmente, chamam-se livre na medida em que nenhum homem ou grupo de homens interfere em minha atividade”. 

É desse tipo de liberdade que falam os movimentos antivacina ou os defensores da liberdade de expressão irrestrita: a obrigação de se vacinar e a vedação a certos discursos torna as pessoas menos livres porque, devido à coação de terceiros, algo que essas pessoas desejam fazer ou deixar de fazer lhes é negado.

Não tenho problemas com essa conceituação. Acho que ela delimita bem de que estamos falando e corresponde em grande medida à forma como a palavra é usada em português. Mas qual é sua força moral, em sentido amplíssimo, e política? É possível defender um direito apenas porque sua supressão implica a perda de uma liberdade?

Algumas liberdades valem mais que as outras

Libertários e alguns liberais dirão que sim, a partir da premissa de que as organizações políticas, em especial o Estado, só se justificam quando preservam, na maior medida possível, as liberdades dos envolvidos. Esse é um passo bastante controverso na filosofia política. Quero, antes, apontar uma circularidade lógica em que ele recai. Para isso, recorro ao trabalho do filósofo britânico G. A. Cohen.

Cohen foi um filósofo político marxista – algo raro, já que, segundo ele próprio, a ideia de fazer filosofia moral ou política parecia para boa parte de seus colegas uma perda de tempo falaciosa. Um de seus méritos, que me parece ainda insuficientemente apreciado pela academia brasileira, foi empregar o rigor lógico da filosofia analítica para criticar categorias políticas importantes do liberalismo e do libertarianismo – inclusive a de liberdade.

Tomando por paradigma o libertarianismo de Robert Nozick, o autor do clássico libertário Estado, Anarquia e Utopia, Cohen começa a conceituar liberdade da mesma maneira que fizemos, ou seja, como a ação não impedida por terceiros. Cohen destaca, então, que libertários como Nozick definem justiça a partir de liberdade: um arranjo social justo precisa maximizar as liberdades dos sujeitos envolvidos, a partir de um Estado tão pequeno quanto possível, necessário apenas para assegurar essas liberdades, inclusive por meio da força. Liberdade aparece, então, à primeira vista, como um conceito logicamente simples, definido sem recurso a outras entidades politicamente controversas.

Acontece que essa ideia não basta para resolver sequer problemas morais simples. Digamos que A e B sejam sujeitos em uma sociedade libertária, e que B, por não ter uma casa ou por qualquer outro motivo, decida montar uma barraca em um imóvel pertencente a A. Como o Estado libertário compromete-se firmemente com a defesa da propriedade – que é vista como um desdobramento das liberdades básicas –, é muito provável que agentes desse Estado removam B do terreno de A, à força, se necessário. Essa coação sobre B acarreta uma indiscutível redução de sua liberdade, já que uma ação sua – montar e habitar uma barraca em um certo local – é impedida por terceiros. E, no entanto, ela é aceita por libertários. Por quê?

A resposta óbvia é que nem todas as liberdades são iguais. Algumas são legítimas, outras não. Essa ideia também é muito intuitiva e se mostra no uso da palavra: não tenho a liberdade de roubar seu celular, por exemplo, e se o fizer deverei ser punido por isso, talvez com encarceramento (no Brasil, chamamos esse tipo de pena de “privativa de liberdade”). Mas, se isso é verdade, então deve haver algum critério para distinguir as minhas liberdades de não tomar vacina ou de incitar violência contra instituições – defensáveis para certo discurso libertário – das liberdades de roubar seu celular ou ocupar seu quintal – condenáveis para esse discurso.

Esse critério só pode ser moral. Devemos poder separar de algum modo liberdades “boas”, no sentido de moralmente valiosas e merecedoras de proteção pelo Estado, de liberdades “ruins”, ou ao menos pouco valiosas. Mas, para isso, precisaríamos ter uma concepção de justiça independente da concepção de liberdade, sob pena de circularidade lógica. E isso os libertários não têm, já que, como vimos, sua concepção de justiça é estabelecida em termos da maximização de liberdades.

Poderíamos parar por aqui. Essa crítica já mostra que não é possível defender um direito exclusivamente com base em liberdade. O argumento de que obrigar pessoas a tomar vacina diminui sua liberdade só pode terminar com uma vírgula, não com um ponto final: ele pede a explicação do porquê essa liberdade é moralmente preciosa e como seu valor se justifica em relação aos outros sujeitos.

O debate que realmente importa

Um debate mais rico, assim, depende de um critério valorativo para a ação, que não pode ser apenas a própria liberdade. Esse é um ponto reconhecido há milênios na filosofia moral, e é como começa a Ética a Nicômaco, de Aristóteles: tudo o que fazemos é para alcançar aquilo que é bom, embora as pessoas discordem sobre o que seja esse bem. 

Ao interditar essa discussão quanto aos fins da ação, libertários e alguns liberais terminam com uma teoria da justiça e do Estado em certo sentido vazias e, por isso, incapazes de resolver problemas práticos, embora às vezes aptas a alimentar paixões ideológicas. Deveriam, antes, formular, como o liberal John Rawls e como muitos filósofos de outras vertentes, uma teoria que conecte liberdades a uma boa vida, dando-lhes uma finalidade. Para Rawls e outros autores, precisamos ser livres para vivermos bem, e na medida em que algumas liberdades, e não outras, sejam conducentes a uma boa vida. Precisamos de liberdades que sirvam para algo.

É verdade que o meu argumento não demonstra que obrigatoriedade de vacinação ou sancionamento do discurso de ódio ou o que incita violência contra instituições são legítimos; há muito mais em jogo. Pode ser, por exemplo, que tenhamos bons motivos para desconfiar que o Estado não seja capaz de exercer um controle justo sobre o discurso de modo a distinguir o que é odioso do que não é. 

Esse, porém, é um argumento sobre a falibilidade do Estado, que deve ser formulado, digamos, em termos da virtude da tolerância que devemos ter em relação a discursos que nos ofendem para coibir censura. Não é um argumento sobre a liberdade, e reconhecer isso força seu enunciante a formulá-lo claramente e em seus próprios termos, o que nos permite, por sua vez, mostrar porque também esse tipo de raciocínio não procede.

Não é possível defender nenhuma dessas pautas simplesmente em nome dela. Suspeito, no mais, que isso baste para submeter libertários, certos conservadores e até mesmo alguns autoritários a um ônus argumentativo e político insuportável, e que, sem essa instrumentalização da defesa da liberdade, muitas de suas pautas percam sua plausibilidade e apoio.

Sobre os autores

é advogado da União, atuando com litigância estratégica junto ao STF. É também mestre e doutorando em filosofia do direito pela USP.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise and Imprensa

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