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Boric, da coalizão Apruebo Dignidad, tira uma selfie com integrantes de sua campanha e apoiadores em Santiago no dia 1º de novembro. Foto de Esteban Felix / AP

O Chile que deseja superar os limites do possível

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Apesar da trajetória meteórica de Gabriel Boric, do movimento estudantil à presidência da República em 9 anos, seu triunfo foi fruto de uma estratégia lastreada na maior mobilização popular latino-americana dos últimos tempos: o estallido social. Nesta entrevista, feita em 2017, Boric antevia quais seriam os principais passos para desenhar uma nova Constituição para implodir o neoliberalismo chileno. 

UMA ENTREVISTA DE

Joana Salém Vasconcelos

Quando entrevistei Gabriel Boric em 2017, jamais podíamos imaginar que quatro anos depois ele seria escolhido presidente do Chile com a maior taxa de participação eleitoral da história do voto facultativo no país (vigente desde 2012): 55% dos 8,3 milhões de votos válidos depositados nas urnas no 2º turno. E mais: que Boric venceria contra a extrema direita mais perigosa do seu país, pinochetista crua e aliada direta do bolsonarismo.

No momento da entrevista, eu morava no Chile para fazer meu doutorado e observava ativa e atentamente a construção da Frente Ampla (FA), que era ainda um projeto sem forma definida na mente de Giorgio Jackson e Gabriel Boric, uma espécie de “organização de emergência” para abrigar movimentos e grupos da luta popular em contraponto ao duopólio que governava, desde o fim da ditadura, em harmonia com a Constituição de 1980. A FA tinha pretensão de dar corpo político às forças sociais não representadas na política institucional, excluídas pelo sistema eleitoral binomial e que defendiam, antes de mais nada, uma nova Constituição popular e democrática para o país. Por pressão das lutas sociais, o segundo governo Bachelet desarmou o sistema binomial e bastou isso para que a FA emergisse como 3ª força do país nas eleições ocorridas cinco meses depois da entrevista.

Nas lutas estudantis, Gabriel Boric se consagrou presidente da Federação de Estudantes da Universidade do Chile (FECh), em 2012, vencendo a super popular Camila Vallejos, que se candidatava à reeleição da entidade e se tornou vice de Boric na gestão seguinte. Camila era, sem dúvida, a mais influente liderança pública das mobilizações de 2011.

Nas eleições de 2013, Boric se elegeu deputado independente pela região de Magallanes, no extremo sul, onde nasceu e cresceu. Já existia no Chile essa possibilidade do candidato independente, cada vez mais explorada pelo movimento popular dali em diante. Quando se tornou deputado, Boric tinha 27 anos e era militante de um grupo político chamado Izquierda Autónoma (IA), que se reivindicava “neta” do MIR, o Movimiento Izquierda Revolucionaria dos tempos do Salvador Allende. Entre o MIR e a IA existiu uma organização intermediária chamada La Surda, criada em 1992 e liderada pelo professor universitário Carlos Ruiz. (A verdade é que, no Chile, vários grupos de esquerda reivindicam o MIR e todos questionam a legitimidade histórica de seus rivais).

Foi como militante da IA que Boric se tornou um dos quatro deputados-estudantes em 2013, tendo como principal parceiro Giorgio Jackson. Em 2011, Jackson tinha sido presidente da Federação Estudantil da Universidade Católica (FEUC), e também foi eleito como independente, mas logo se tornou o principal fundador da Revolución Democrática (RD), um agrupamento novo formado por ativistas estudantis e dissidentes do Partido Socialista (PS). Foi a RD que, em 2017, concentrou a coleta de assinaturas para legalização do registro partidário que viabilizaria a Frente Ampla, sobre a qual até hoje exerce hegemonia. Junto com eles, Camila Vallejos e Karol Kariola, ambas do Partido Comunista, também se elegeram deputadas-estudantes em 2013, representando uma força totalmente nova da juventude do seu partido.

Não demorou para que o Boric rompesse com a IA em 2016 e criasse seu próprio coletivo, o Movimento Autonomista (MA), pequeno e sem registro partidário, baseado em seu próprio mandato. O autonomismo chileno não tem o mesmo sentido que no Brasil: significa autonomia das regiões e descentralização territorial da política, o que não quer dizer necessariamente anarquismo ou ausência de personalismo. O MA, por exemplo, foi um coletivo pequeno e totalmente dependente da figura de Gabriel Boric. 

Entre 2018 e 2019, o MA se aglutinou a outros pequenos partidos sem registro para formar a Convergência Social (CS), que seria a ala minoritária da Frente Ampla (hegemonizada pela RD, de Jackson). Ou seja, na data da entrevista de 2017, Boric liderava o menor setor (em formação) de uma esquerda totalmente nova e sem institucionalidade partidária, em um contexto de grande estabilidade dos partidos tradicionais (apesar das crises cumulativas geradas por diferentes ciclos de protestos).

Não preciso dizer que outubro de 2019 chacoalha esse processo de maneira alucinante. Boric foi o deputado mais questionado na assinatura do acordo pela paz social do dia 15 de novembro de 2019, justamente porque era o líder do agrupamento mais à esquerda do FA, e dele se esperava mais interação orgânica com as forças das ruas. Ele foi o único deputado que assinou o acordo sozinho, individualmente, à revelia de seu partido CS. Sua postura individualista gerou uma crise sem precedentes na recém-criada CS, que rachou em muitos pedaços contra sua atitude. Todos os demais políticos do acordo assinaram como representantes de sua organização. O nome de Boric ali, sozinho e individual, parecia um gesto de petulância e personalismo.

Apesar da trajetória meteórica e completamente imprevisível de Boric, da FECh à presidência da República em nove anos, seu triunfo foi fruto de uma estratégia lastreada na maior mobilização popular latino-americana dos últimos tempos, o estallido social de 2019, que originou a coligação Apruebo Dignidad (FA e PC). Em 2017, a necessidade de uma Nova Constituição e outros temas fundamentais da luta social de 2019 já estavam todos postos à mesa. 

A entrevista a seguir continua atual e por isso vale a pena e relê-la.


JS

Desde o levante estudantil de 2006, e mais fortemente desde 2011, a educação se tornou um dos temas mais importantes da agenda política chilena. Mas a reforma educacional de Bachelet está sendo rechaçada pelos movimentos estudantis e sindicatos de professores. Na sua visão, quais são os principais problemas dessa reforma?

GB

A raiz do nosso desacordo com essa reforma é a mesma que levou a milhares de estudantes, professores e “apoderados” (mães, pais, responsáveis) chilenos a sair às ruas: o fato de que não se garantia, com ela, uma educação pública, gratuita e de qualidade. A educação não é gratuita. A pergunta é: quem deve financiá-la? Nós dizemos que deve ser a sociedade como um todo e, para obter esses recursos, se deve fazer um aporte substancial dos mais ricos. Acreditamos que isso deve ser feito mediante uma reforma tributária mais incisiva que a que finalmente se aprovou. Estamos dispostos a conversar sobre a gradualidade desse processo, mas sem colocar em questão o espírito da reforma.

A exigência emanada do mundo social é clara: gratuidade universal. Mas o governo apresentou uma reforma que não explicita isso. Pelo menos conseguimos garantir o fim do Crédito com Aval do Estado (CAE), mecanismo criado pelo ex-presidente Ricardo Lagos. O CAE ampliou a cobertura de crédito, mas a custo de um endividamento de milhares de estudantes chilenos com altas taxas de juros. Por tudo isso, finalmente decidimos com Giorgio Jackson [deputado da mesma geração pelo partido Revolução Democrática] nos abster na primeira tramitação do Projeto de Reforma. Justamente para que possamos seguir discutindo mais adiante, com a participação real dos movimentos sociais, até que se aproxime daquilo que a cidadania está exigindo há algum tempo.

JS

A atuação da Juventude do Partido Comunista Chileno (JJCC) foi muito destacada nas mobilizações estudantis de 2011, contra o lucro na educação. Naquele ano, Camila Vallejos era presidente da FECh e tornou-se uma liderança com projeção internacional. Qual foi o papel do Partido Comunista e particularmente da deputada Camila Vallejos na condução da reforma educacional de Bachelet?

GB

Sem dúvida, Camila ocupou uma posição de liderança muito importante para o movimento estudantil. Mas não se deve separar isso da sua militância no PC, partido que naquele momento era oposição ao governo Sebastián Piñera. Hoje o PC é parte do governo Michele Bachelet e muitos de seus militantes, Camila entre eles, parecem estar em uma posição incômoda. Por um lado, tem sinceros desejos de seguir apoiando às demandas dos estudantes de hoje. E por outro, são freados pelos compromissos de participação em um governo que não deu os passos decisivos para acabar com o lucro na educação chilena. Mas nós não perdemos a esperança de que algum dia essas diferenças sejam deixadas pra trás e nos encontremos politicamente.

JS

Um dos mais fortes legados de Pinochet sobre as instituições políticas chilenas foi o sistema binomial, que originou uma democracia controlada pelo chamado duopólio: Concertación/Nueva Mayoria e Alianza/Chile Vamos. A reforma política de Bachelet pode efetivamente colocar fim ao sistema binomial, como está sendo anunciado? Quais são os avanços e limites dessa reforma?

GB

Nós acreditamos que o fim do sistema binomial foi um avanço, mas não é suficiente para acabar com o duopólio porque isso se expressa para além do âmbito eleitoral, abarcando todo o espectro político e social. Trata-se simplesmente de que o neoliberalismo é preservado sob a aparência de que exista uma disputa política, quando na realidade o que há é uma luta pelo poder em si mesma, sem nenhuma vocação de impulsionar verdadeiras transformações. Com isso que a Frente Ampla busca romper.

JS

E nesse contexto, quais são as potencialidades e desafios da Frente Ampla para quebrar o duopólio nas eleições de 2017?

GB

Nosso maior desafio até o momento é como crescer, deixando de ser um grupo marginal dedicado a denunciar para sermos um conglomerado de movimentos e partidos que ofereçam alguma proposta de transformação para o país. Não na “medida do possível” (como uma vez disse o ex-presidente Aylwin), mas sim “para empurrar os limites do possível”. Hoje estamos irrompendo no cenário político nacional não apenas por méritos nossos, mas pelo desgaste daqueles que parecem ter perdido a conexão mais essencial da política: dos governantes com os governados. Temos o potencial de ajudar a reconstruir um tecido social do nosso país e isso é algo que nos move e emociona.

JS

A presidenta Bachelet anunciou uma Reforma Constituinte, como demandado pela cidadania nas ruas. Atualmente se vive a etapa de decisão sobre qual será a instância de votação da nova Constituição: o Congresso ordinário, uma Convenção mista com deputados e cidadãos, uma Assembleia Constituinte eleita para este fim ou um plebiscito para definir entre as três opções anteriores. Mas a ausência de um plebiscito pode significar um processo vicioso, no qual deputados e senadores garantem sua perpetuação no poder. Como analisa essa disputa?

GB

Estamos convencidos de que uma nova Constituição é uma transformação indispensável para que a maioria do país se aproprie da política e para que o Chile adote uma estrutura de direitos que efetivamente dê conta dos interesses da cidadania e das possibilidades do país. O itinerário que foi proposto e levado a cabo timidamente pelo governo nos coloca uma série de dúvidas. Por exemplo: por que o governo seguiu o caminho mais difícil para levantar uma nova Constituição, requerendo um amplo apoio da direita para desfazer as amarras que ela mesma impôs? Acreditamos que isso é reflexo de um problema central que atravessa esse governo: a ambiguidade, a contradição, ou melhor, a falta de convicção. Os sinais mostram que o governo, ou parte importante da sua coalizão, na realidade está cômodo com esta Constituição.

JS

Quais são as principais propostas do Movimento Autonomista para uma nova Constituição chilena?

GB

Para nós, uma nova Constituição deve garantir os direitos sociais e recursos naturais que hoje foram violados e saqueados em nome do mercado. Deve reconhecer a plurinacionalidade de nosso país, a pré-existência dos povos indígenas como nação e suas formas de organização territorial. Deve delimitar claramente os limites entre a política e os negócios. E enfim, o importante é que o Chile necessita uma Constituição legitimada, nascida na democracia, voltada aos desafios do século XXI.

JS

Em 2011, você se dedicou às mobilizações estudantis. Em 2012, virou presidente da FECh, ultrapassando a competitiva candidatura de Camila Vallejos. Em 2013, tornou-se deputado com uma candidatura independente por Magallanes, rompendo a lógica do sistema binomial. Agora, nos últimos meses do seu mandato, como analisa essa trajetória do movimento social para a institucionalidade, suas conquistas e dificuldades? E quais as chances de um novo mandato?

GB

O que aconteceu comigo como político já excedeu o âmbito da minha pessoa. Tem a ver com a constituição de um projeto político coletivo, que está em crescimento há uma década, para construir uma alternativa política concebida para superar o neoliberalismo que ainda nos domina. Gosto de pensar que o mandato que ganhamos em 2013 foi um campo de provas e treinamentos para desafios ainda maiores. Demonstramos que se pode fazer política sem subestimar as pessoas, estando ao seu lado, escutando suas inquietudes e sonhos. O Movimento Autonomista (MA), agrupamento político ao qual pertenço, solicitou que eu me recandidate por Magallanes e eu já manifestei plena disposição para fazê-lo, não pela simples ânsia de manter uma posição de poder. Tudo indica que logo já não estaremos sozinhos no parlamento, porque a Frente Ampla já é uma força eleitoralmente competitiva e isso será demonstrado nas próximas eleições.

Sobre os autores

é um político chileno e ex-líder estudantil que é membro da Câmara dos Deputados desde 11 de março de 2014, representando Magalhães e Antártica Chilena e presidente eleito do Chile nas eleições presidenciais de 2021.

é Doutora em História Econômica pela USP, professora da Faculdade Cásper Líbero e organizadora do livro “La vía chilena al socialismo 50 años después: historia y memória” (CLACSO, 2020).

Cierre

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Published in América do Sul, Entrevista and Política

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