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(Wikimedia Commons)

A história oculta de Muhammad Ali

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Tradução
Gercyane Oliveira

O boxeador Cassius Marcellus Clay, mais conhecido como Muhammad Ali, nasceu neste dia em 1942. Sua luta contra o racismo e o imperialismo pertence não apenas à década de 1960, mas ao futuro comum da humanidade.

Extraído do livro What’s My Name, Fool? Sports and Resistance in the United States (Haymarketbooks, 2005).


Os vídeos de Muhammad Ali são usadas para vender tudo, desde refrigerantes até carros. A imagem que mais circula do carismático lutador é dele dançando no ringue e gritando “eu sou o maior”.

No final da vida Muhammad Ali também foi uma figura muito pública, apesar de sua quase total incapacidade de se mover ou falar. Sua voz foi silenciada tanto nos anos de boxista quanto pela doença de Parkinson. E este Ali tem sido abraçado pelo establishment como um santo ambulante.

Em 1996, Ali foi enviado com suas mãos trêmulas para acender a Tocha Olímpica em Atlanta. Em 2002, ele “concordou em estrelar em uma campanha publicitária produzida em Hollywood, destinada a explicar a América e a guerra no Afeganistão para o mundo muçulmano”.

Ali foi absorvido pelo establishment como uma lenda – um ícone inofensivo. Quase não resta nenhum vestígio da verdade controversa: nunca houve um atleta mais ofendido pela grande imprensa, mais perseguido pelo governo dos EUA, ou mais amado no mundo todo do que Muhammad Ali. Agora mal há uma menção a este Ali, que foi um dos principais catalisadores que trouxe as questões do racismo e da guerra para o esporte profissional.

O mero pensamento de atletas usando o esporte, hipercomercializado, como plataforma para tomar posição contra a injustiça é hoje quase impensável. Essas ações quebrariam a regra de ouro dos grandes esportes – “atletas” não devem falar de política, exceto quando se trata de saudar bandeiras e apoiar a guerras.

É por isso que, quando Toni Smith, a capitã de basquete da Little Division III Manhattanville College, virou as costas para a bandeira em 2003, o ataque foi raivoso. No mesmo ano, o astro do basquete Wake Forest All-American, Josh Howard disse sobre a guerra dos EUA no Iraque, “é tudo sobre o petróleo… é assim que eu me sinto”. Howard não só foi ridicularizado publicamente, mas também os relatórios da NBA declararam: “Os comentários anti-guerra refletem rumores de um comportamento errático”.

A história oculta de Muhammad Ali e a revolta do atleta nos anos 60 é uma história viva.

Rodemos compreender mais do que as lutas dos anos 60 e ver como a luta pode moldar todos os aspectos da vida sob o capitalismo – até mesmo no esporte.

A luta pela justiça

Nenhum esporte mastigou os atletas e os cuspiu – especialmente os atletas negros – como o boxe. Para os poucos que “podem” escolher, este nunca é o esporte preferido. O boxe sempre foi destinado aos pobres, para as pessoas nascidas nas franjas da sociedade.

Os primeiros boxeadores nos Estados Unidos foram escravos. Os donos de plantações do sul se divertiam juntando os escravos mais fortes e fazendo-os lutar enquanto usavam coleiras de ferro.

Mas após a abolição da escravidão, o boxe era único entre os esportes porque, ao contrário de todos os outros grandes esportes, foi desagregado já na virada do século passado. Isto não se deu porque os organizadores que geriam o boxe eram de alguma forma progressistas. Muito pelo contrário. A brutalidade do esporte em si deu aos organizadores um palco para ganhar dinheiro com o racismo desenfreado da sociedade norte-americana.

Sem querer, estes primeiros financiadores de luta abriram espaço onde as ideias de supremacia branca podiam ser desafiadas.

Esta foi a era da pseudociência profundamente racista. A atitude não era apenas de que os negros eram mentalmente inferiores, mas também fisicamente inferiores aos brancos. Os negros eram lançados como preguiçosos e indisciplinados demais para serem levados a sério como atletas.

Quando Jack Johnson se tornou o primeiro campeão de boxe negro de peso pesado em 1908, sua vitória criou uma grave crise. Os meios de comunicação fizeram um frenesi em torno da necessidade de uma “grande esperança branca” para restaurar a ordem no mundo. O ex-campeão Jim Jeffries saiu da aposentadoria e disse: “Vou entrar nesta luta com o único propósito de provar que um homem branco é melhor que um negro”.

Na luta, que aconteceu em 1910, a banda do ringue tocou: “todos os negros me parecem iguais”, e os promotores lideraram a multidão toda branca no canto “kill the nigger”. Mas Johnson era mais rápido, mais forte e mais esperto do que Jeffries. Ele o deixou inconsciente com facilidade.

Após a vitória de Johnson, houve motins raciais por todo o país – em Illinois, Missouri, Nova York, Ohio, Pensilvânia, Colorado, Texas e Washington, D.C. A maioria dos motins consistia em linchamentos de brancos atacando os negros, e negros lutando contra eles.

Esta reação a um combate de boxe foi uma das revoltas raciais mais explosivas nos Estados Unidos até o assassinato de Martin Luther King, Jr., em 1968. Grupos religiosos de direita imediatamente se organizaram para proibir o boxe. Na verdade, o Congresso aprovou uma lei proibindo filmes de boxe.

Até mesmo alguns líderes negros, como Booker T. Washington, pressionaram Johnson a condenar os negros por tumultos e a seguir a linha. Mas Johnson permaneceu desafiador e enfrentou assédio e perseguição durante a maior parte de sua vida. Ele foi forçado ao exílio em 1913, sob a falsa acusação de levar uma mulher branca para a prostituição.

A reação contra Johnson aconteceram vinte anos antes da ascensão de outro campeão negro de peso pesado – Joe Louis, “o homem-bomba marrom”. Louis estava calado onde Johnson era desafiador. Ele foi tratado com muito cuidado por uma equipe administrativa que tinha um conjunto de regras que Louis tinha que seguir, incluindo, “nunca ser fotografado com uma mulher branca, nunca ir a um clube sozinho e nunca falar com ninguém a menos que falassem com ele”.

Mas ele foi devastador no ringue, marcando 69 vitórias em 72 lutas profissionais – 55 delas por nocaute. Apesar de ter uma imagem manipulada na mídia, Joe Louis – e seu domínio no ringue – representava muito para os pobres negros e para a classe trabalhadora radicalizada dos anos 30.

Ele ficou mais conhecido durante duas lutas contra o pugilista alemão Max Schmeling em 1936 e 1938. Schmeling foi fortemente promovido por Adolf Hitler como prova da “grandeza ariana”. No primeiro combate, Schmeling nocauteou Louis. Não só Hitler e o propagandista nazista Joseph Goebbels tiveram um dia de vitória, como a imprensa do sul dos Estados Unidos achou engraçado. Uma coluna no jornal New Orleans Picayune escreveu: “Acho que isto prova quem realmente é a raça mestre”.

A revanche Louis contra Schmeling em 1938 foi praticamente um plebiscito político – um referendo físico sobre Hitler, o Jim Crow South [lei de segregação racial] e o antirracismo. O Partido Comunista dos Estados Unidos organizou audiências de rádio sobre a luta de Harlem a Birmingham que se tornaram reuniões de massas. Hitler fechou as salas de cinema para que as pessoas fossem obrigadas a ouvir a luta.

Louis devastou Schmeling em um só round. Hitler rapidamente cortou a energia do rádio em toda a Alemanha quando estava claro que o nocaute estava chegando.

O “homem-bomba Marrom” manteve o título de peso pesado por doze anos, o reinado mais longo da história. Ele derrotou todos os adversários, a esmagadora maioria deles brancos – defendendo com um sucesso recorde seu título de pesos-pesado 25 vezes. Como escreveu a poeta Maya Angelou sobre Louis, “o invencível negro, aquele que enfrentou o homem branco e o derrotou com seus punhos. De certa forma, ele carregou tantas de nossas esperanças e talvez até mesmo nossos sonhos de vingança”.

Trinta anos após a luta, Martin Luther King Jr. escreveu em Why We Can’t Wait,

“Há mais de 25 anos, um dos Estados do Sul adotou um novo método de pena capital. O gás venenoso suplantou a força. Em seus estágios iniciais, um microfone foi colocado dentro da câmara da morte selada para que os observadores científicos pudessem ouvir as palavras do prisioneiro moribundo para julgar como a vítima reagiu nesta nova situação.

A primeira vítima foi um jovem negro. Quando a pastilha caiu dentro do recipiente e o gás se espalhou, através do microfone vieram estas palavras. ‘Salve-me Joe Louis. Salve-me Joe Louis. Salve-me Joe Louis’.”

Em uma sociedade tão violentamente racista, o boxe se tornou uma saída para a raiva das pessoas – um jogo de moralidade sobre a capacidade frustrada, os talentos não reconhecidos e o espírito de luta implacável que moldou a experiência negra nos Estados Unidos.

Rei do mundo

A identidade de Muhammad Ali foi forjada nos anos 50 e 60, quando a luta pela liberdade negra se aqueceu até ferver. Ele nasceu como Cassius Clay, em Louisville, Kentucky, em 1942. Seu pai, um artista frustrado, ganhava a vida como pintor de casas. Sua mãe era uma empregada doméstica.

A juventude de Ali era uma comunidade segregada de mestiços, onde ser negro significava ser visto como parte de uma classe de serviçais.

Mas o jovem Clay podia boxear e falar ao mesmo tempo. Nenhum lutador, atleta ou figura pública negra tinha essa habilidade retórica até então. Joe Louis costumava dizer: “Meu empresário fala por mim. Eu falo no ringue”. Clay falava, dentro do ringue e fora. A imprensa o chamava de “lábio de Louisville”, “boca impetuosa”, “boca poderosa” e “Cassius de gás”.

Ele costumava dizer que falava porque seu herói era um lutador falastrão de luta livre chamado Gorgeous George. Mas uma vez ele disse: “Onde você acha que eu estaria na próxima semana se eu não soubesse gritar e gritar? Eu provavelmente estaria em minha cidade natal lavando janelas e dizendo sim sinhô e não sinhô e conhecendo meu lugar.”

Mas Ali era mais do que um falador. Sua habilidade no boxe lhe valeu a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 1960 aos 18 anos de idade. Quando ele voltou dos Jogos Olímpicos – e este é o primeiro passo em sua trajetória política – ele deu uma conferência à imprensa no aeroporto, com sua medalha de ouro balançando de seu pescoço, e disse:

“Fazer da América a campeã é o meu objetivo

Então eu venci o russo e venci o polonês

Para os EUA ganhar a medalha de ouro.

Os gregos disseram que você é melhor do que o Cassius de antigamente.”

Clay adorou sua medalha de ouro. A companheira olímpica Wilma Rudolph disse: “Ele dormiu com ela, ele foi com ela para o refeitório. Ele não tirava nunca”. Uma semana depois de voltar das Olimpíadas para casa, Clay foi comer um cheeseburger com sua medalha balançando ao pescoço em um restaurante de Louisville – e foi-lhe negado o serviço. Depois disso, ele jogou sua medalha no rio Ohio.

O jovem Clay começou então a procurar ativamente respostas políticas e começou a encontrá-las quando ouviu Malcolm X falar em uma reunião da Nação do Islã (NOI). Ele ouviu Malcolm dizer: “Você pode ver esses negros que acreditam na não-violência e nos confundir com um deles e colocar suas mãos sobre nós pensando que vamos virar a outra face – e nós o mataremos assim mesmo.”

O jovem lutador e Malcolm X tornaram-se tanto aliados políticos quanto amigos rapidamente. Malcolm se manteve com Clay enquanto treinava para sua luta contra o “grande urso feio”, o campeão Sonny Liston. Com Malcolm por perto, rumores voavam pelas páginas esportivas de que Clay iria se juntar ao NOI, e a imprensa o perseguia querendo saber. A certa altura ele disse: “Eu poderia, se você continuar me perguntando”.

Quando todos estavam prevendo um nocaute fácil para Liston, Malcolm disse,

“Clay vencerá. Ele é o melhor atleta negro que eu já conheci e significará mais para seu povo do que Jackie Robinson. Robinson é um herói do establishment. Clay será nosso herói…. Poucas pessoas conhecem a qualidade de espírito que ele tem ali. Esquecemos que, embora o palhaço nunca imite um homem sábio, um homem sábio pode imitar o palhaço.”

Embora o veredito fosse sobre se ele era sábio ou um palhaço, ninguém lhe deu uma chance contra Liston, um ex-condenado que costumava trabalhar para a Máfia quebrando pernas em piquetes. Ali – mais rápido, mais forte e mais corajoso do que qualquer um – chocou o mundo e venceu Liston. Ele disse então a famosa: “Eu sou o rei do mundo!”

Quando Ali disse que ele era o maior, não estava longe da verdade. Seu treinador Angelo Dundee disse certa vez com um sorriso: “Ele destruiu uma geração de lutadores boxeando com as mãos abaixadas. Todos os outros que faziam isso foram esmagados, mas Ali foi tão rápido que ele conseguiu escapar”.

Ali estabeleceu um novo padrão para a velocidade dos ringues. Ele costumava dizer: “Sou tão rápido que posso apagar as luzes do quarto e entrar na cama antes que escureça.” Como disse o escritor Gary Kamiya,

“Ninguém jamais havia visto alguém tão rápido; ninguém jamais havia visto alguém tão gracioso ferir tão gravemente outras pessoas. Combater Ali era como ser forçado a deslizar pelo chão com Gene Kelly em um dueto assassino; um único desvio da batida, um centésimo de segundo de pausa saindo de um giro líquido e um taco de beisebol explodindo contra sua cabeça.”

Em sua carreira profissional, ele ganhou 56 de 61 lutas, com 37 nocauteados.

Um dia depois de vencer Liston, Clay anunciou publicamente que era um membro do NOI. Não há palavras para a tempestade de fogo que isto causou. O campeão estava com um grupo que chamava os brancos de demônios. Não é surpreendente que os homens do mundo conservador, mafioso e corrupto tenham perdido a cabeça.

Ali foi atacado não só pelo mundo esportivo, mas também pela respeitável ala do Movimento dos Direitos Civis. Roy Wilkins, da geração mais antiga dos Direitos Civis disse: “Cassius Clay pode muito bem ser um membro honorário dos conselhos de cidadãos brancos”.

Jimmy Cannon, o mais famoso escritor de esportes da época, escreveu: “O barulho da luta desde seu início podre ter sido o distrito da luz vermelha dos esportes. Mas esta é a primeira vez que ela se transforma em um instrumento de ódio.”

A resposta de Ali, neste momento, foi muito defensiva. Ele disse repetidamente que não se tratava de uma conversão política, mas de uma conversão puramente religiosa. Sua defesa refletia a política conservadora da Nação do Islã. Ali disse,

“Não vou ser morto tentando me forçar a matar as pessoas que não me querem. A integração está errada. Os brancos não a querem, os muçulmanos não a querem. Então, o que há de errado com os muçulmanos? Eu nunca estive na cadeia. Eu nunca estive em um tribunal. Eu não participo de marchas de integração e nunca tenho um sinal.”

Mas, assim como Malcolm X, que na época estava engendrando uma ruptura política na NOI, Clay – para a raiva de Elijah Muhammad – achou impossível explicar sua visão de mundo religiosa sem falar com a luta em massa pela liberdade negra que acontecia fora dos ringues. Ele era seu próprio inimigo – alegando que a sua conversão era uma transformação religiosa e que não tinha nada a ver com política, mas no fôlego seguinte dizia,

“Eu não sou cristão. Não posso ser quando vejo todas as pessoas de cor que lutam pela integração forçada a explodirem. Eles são atingidos pelas pedras e mastigados por cães e depois esses pedaços explodem numa Igreja Negra…. As pessoas estão sempre me dizendo que eu seria um bom exemplo se eu não fosse muçulmano. Já ouvi diversas vezes porque não poderia ser mais como Joe Louis e Sugar Ray. Bem, eles se foram e a condição do homem negro é a mesma, não é mesmo? Ainda estamos pagando no inferno.”

Se a imprensa do establishment ficou indignada, uma nova geração de ativistas foi eletrizada. Como o líder dos Direitos Civis Julian Bond lembrou,

“Lembro-me de quando Ali se juntou à Nação. O ato de aderir não foi algo de que muitos de nós gostássemos particularmente. Mas a ideia de que ele o faria, de que ele saltaria para fora, se juntaria a este grupo que era tão desprezado pela grande maioria nos Estados Unidos e se orgulharia disso, mandou um pouco de emoção… Ele foi capaz de dizer aos brancos e nós para irmos para o inferno; que ele iria fazer isso do jeito dele.”

Nesta época, ele era conhecido brevemente como Cassius X, mas Elijah Muhammad deu a Clay o nome de Muhammad Ali – uma honra tremenda e uma maneira de garantir que o jovem Ali se colocaria ao lado de Elijah Muhammad em seu rompimento com Malcolm X.

Ali continuou comprometido com o que mais tarde ele descreveria como seu maior erro – virar as costas para Malcolm. Mas a política interna da NOI não era o que a classe dominante e a mídia esperavam. Para eles, a mudança de nome – algo que nunca havia ocorrido antes nos esportes – foi mais uma bofetada na cara.

Quase da noite para o dia, se você o chamava de Ali ou Clay indicava onde um indivíduo estava em relação aos direitos civis, Black Power, e eventualmente a guerra no Vietnã. O New York Times insistiu em chamá-lo Clay como uma política editorial para os anos seguintes.

Tudo isso ocorreu contra o pano de fundo de uma luta pela liberdade negra que se desenrolou do Sul para o Norte. Durante o verão de 1964, houve mais de 1.000 prisões de ativistas de direitos civis, 30 edifícios bombardeados e 36 igrejas queimadas pela Ku Klux Klan e seus simpatizantes. Em 1964, ocorreu a primeira das revoltas e tumultos urbanos nos guetos do norte.

A política do Black Power estava começando a emergir e Muhammad Ali era um símbolo crítico nesta transformação. Como disse o apresentador da notícia Bryant Gumbel: “Uma das razões pelas quais o movimento de direitos civis avançou foi que os negros foram capazes de superar seu medo. E acredito sinceramente que, para muitos negros americanos, isso veio de observar Muhammad Ali. Ele simplesmente se recusou a ter medo. E sendo assim, ele deu coragem a outras pessoas.”

Um sinal concreto da influência inicial de Ali foi visto em 1965 quando voluntários do Comitê Coordenador Estudantil Não Violento (SNCC) no condado de Lowndes, Alabama, lançaram um partido político independente. Seu novo grupo foi o primeiro a usar o símbolo de uma pantera negra. Seus adesivos e camisetas eram de uma silhueta preta de uma pantera e seu slogan era direto do campeão: “We Are the Greatest” [Somos os Maiores].

Cada luta depois de sua mudança de nome se transformou em incríveis jogos de moralidade da revolução negra contra as pessoas que se opunham a ela. Floyd Patterson, um ex-campeão negro enrolado firmemente na bandeira americana, disse em sua luta com Ali: “Esta luta é uma cruzada para tomar o título dos muçulmanos negros. Como católico, estou lutando contra Clay como um dever patriótico. Vou devolver a coroa aos Estados Unidos.”

Na luta, Ali brutalizou Patterson durante nove rounds, enquanto gritava: “Vamos lá América! Vamos lá América branca….”. Então, em uma luta contra Ernie Terrell que também insistiu em chamá-lo de “Clay”, Ali o desmontou no ringue e disse repetidamente: “Qual é o meu nome? Meu nome é Clay? Qual é o meu nome, idiota?”

O futuro líder do Partido Pantera Negra Eldridge Cleaver escreveu em sua autobiografia, de 1968, Soul on Ice, “Se a Baía dos Porcos pode ser vista como uma mão direita reta até a mandíbula psicológica da América branca então [Ali/Patterson] era o gancho esquerdo perfeito no intestino”.

Resistindo à Guerra do Vietnã

No início de 1966, o exército chamou Ali e ele foi classificado 1-A – a ser convocado. Ele ouviu esta notícia rodeado de repórteres e exclamou uma das frases mais famosas da década: “Cara, não tenho nenhuma desavença com os vietcongues.”

Esta foi uma afirmação espantosa. Havia pouca oposição à guerra na época. O movimento anti-guerra estava começando e a maior parte do país ainda não estava mobilizada.

A capa da revista Life dizia: “Vietnã, a guerra que vale a pena vencer”. A música, “Balada dos Boinas Verdes” estava subindo nas paradas. E depois havia Ali. Como disse o ativista da paz de longa data Daniel Berrigan, “Foi um grande impulso para um movimento anti-guerra que era muito branco. Ele não era um acadêmico, nem um boêmio ou um clérigo. Ele não podia ser descartado como covarde.”

A reação foi imediata, hostil, feroz e, às vezes, divertida e histérica. Jimmy Cannon escreveu,

Ele se encaixa entre os cantores famosos que ninguém consegue ouvir, os punks que andam de motocicleta, os meninos com seus longos cabelos sujos, as meninas que acabaram de acordar, os universitários dançando nus em bailes secretos, a revolta dos estudantes que recebem mesada do pai, os pintores que copiam os rótulos das latas de sopa, dos vagabundos do surf que se recusam a trabalhar e todo o culto mimado dos jovens entediados.

Jack Olsen escreveu anos mais tarde na Sports Illustrated: “O barulho se tornou um alvoroço, as batidas dos tambores de uma guerra santa. Comentadores de TV e rádio, velhinhas… livreiros e párocos, estrategistas do Pentágono e políticos de todo o lugar se uniram num crescente de Cassius get Cassius get Cassius get Cassius”.

Ali teve todas as oportunidades de se arrepender, de pedir desculpas, de se esconder em algum cômodo frente as tropas e as câmeras, de voltar a ganhar dinheiro. Mas ele se recusou. Sua recusa foi gigantesca por causa do que estava borbulhando na sociedade norte-americana. Tivemos a revolução negra aqui e o esboço de resistência e luta contra a guerra ali. E o campeão de pesos pesados com um pé plantado em ambos.

Como a poetisa Sonia Sanchez lembrou:

“É difícil agora transmitir a emoção daquela época. Esta ainda era uma época em que quase nenhuma pessoa conhecida resistia à pressão. Era uma guerra que estava matando desproporcionalmente jovens irmãos negros e aqui estava este belo e engraçado jovem poético de pé e dizendo não! Imagine por um momento! O campeão de pesos-pesados, um homem mágico, levando sua luta para fora do ringue e para a arena da política e mantendo-se firme. A mensagem foi enviada!”

Uma incrível onda de apoio se ergueu em volta de Ali. É por isso que, apesar do assédio e dos ataques da mídia, ele se manteve firme. Em uma entrevista coletiva no final daquele ano, esperava-se que ele pedisse desculpas. Sempre houve rumores de que ele voltaria atrás na declaração sobre a guerra. Em vez disso, ele se levantou e disse: “Continue me perguntando, não importa por quanto tempo. Sobre a guerra no Vietnã, eu canto esta canção, não tenho nada contra os vietcongs.”

Por esta altura já era 1967 e em outro grande passo para o movimento anti-guerra, Martin Luther King Jr. se posicionou contra a guerra. Em uma entrevista coletiva onde King proclamou pela primeira vez sua oposição, ele disse: “Como diz Muhammad Ali, somos todos – negros, pardos e pobres – vítimas do mesmo sistema de opressão.”

Ali e King, para a raiva do NOI, estabeleceram uma amizade privada que conhecemos graças à boa gente do FBI. Aqui está uma pequena transcrição gravada com Martin Luther King, Jr., na qual Muhammad Ali é chamado ironicamente de “C.”.

“MLK falou com C, eles trocaram saudações. C convidou o MLK para ser seu convidado no próximo combate do campeonato. MLK disse que gostaria de participar. C disse que está acompanhando o MLK e MLK é seu irmão e está com ele 100%, mas não pode correr riscos, e que MLK deveria cuidar de si mesmo e ‘tomar cuidado com as branquelas’.”

A única vez que estes amigos privados se reuniram em público foi mais tarde naquele ano, quando Ali se juntou ao King em Louisville, onde uma luta amarga e violenta estava sendo travada por moradia justa. Ali falou com os manifestantes dizendo,

Em sua luta pela liberdade, justiça e igualdade, estou com você. Vim para Louisville porque não podia ficar em silêncio enquanto meu próprio povo, muitos com quem cresci, muitos com os quais estudei, muitos parentes de meu sangue, eram espancados, pisados e chutados nas ruas simplesmente porque queriam liberdade, justiça e igualdade na moradia.

Mais tarde naquele dia, ele cimentou sua posição como pára-raios entre a luta pela liberdade e a luta contra a guerra, quando um repórter continuava a falar sobre a guerra, até que finalmente ele se virou, com as câmeras girando e dizendo,

“Por que deveriam me pedir para vestir um uniforme e ir a 10.000 milhas de casa e lançar bombas e balas sobre os marrons no Vietnã, enquanto os chamados negros em Louisville são tratados como cães e negados simples direitos humanos? Não, eu não vou a 10.000 milhas de casa para ajudar a assassinar e queimar outra nação pobre simplesmente para continuar o domínio dos senhores de escravos brancos do povo negro em todo o mundo. Este é o dia em que tais males devem chegar ao fim.

Fui advertido que tomar tal posição me custaria milhões de dólares. Mas eu já disse uma vez e vou dizê-lo novamente. O verdadeiro inimigo do meu povo está aqui. Não vou desonrar minha religião, meu povo ou a mim mesmo, tornando-me um instrumento para escravizar aqueles que lutam por sua própria justiça, liberdade e igualdade….

Se eu pensasse que a guerra traria liberdade e igualdade a 22 milhões de pessoas do meu povo, eles não teriam que me escrever, eu me juntaria amanhã. Não tenho nada a perder ao defender minhas crenças. Então eu irei para a cadeia, e daí? Estamos na cadeia há 400 anos.”

Julian Bond lembrou: “Quando Ali se recusou a dar aquele passo simbólico, todos sabiam disso segundos depois. Você podia ouvir as pessoas falando sobre isso nas esquinas das ruas. Estava na boca de todos. As pessoas que nunca haviam pensado na guerra – pretos e brancos – começaram a pensar bem no assunto por causa de Ali.”

A recusa de Ali em lutar no Vietnã foi notícia de primeira página em todo o mundo. Na Guiana havia um piquete de apoio em frente à embaixada dos EUA. Em Karachi, os jovens paquistaneses jejuaram. E houve uma manifestação em massa no Cairo.

Em 19 de junho de 1967, Ali foi processado por um júri totalmente branco em Houston. A sentença eram de 18 meses nesse tipo de caso. Mas Ali levou cinco anos de prisão e o confisco de seu passaporte. Ele apelou imediatamente. Ali, invicto e intocado, foi destituído de seu título por se recusar a servir no Exército, dando início a um exílio de três anos e meio do ringue.

O apoio veio de fontes improváveis. Floyd Patterson, que estava sendo moldado pelos movimentos ao seu redor, disse: “O que me incomoda é que Clay está sendo obrigado a pagar uma penalidade muito pesada por fazer o que é certo. O lutador nos Estados Unidos não deve falar muito sobre política, particularmente se suas opiniões se opõem às do governo e podem influenciar muitos entre a classe trabalhadora que segue o boxe.”

Um grupo que compreendeu profundamente o significado de Ali foi o Congresso dos EUA. No dia de sua condenação votaram 337 a 29 para estender o veredicto por mais quatro anos. Eles também votaram 385 a 19 para tornar um crime federal profanar a bandeira.

Nesta época, mil combatentes vietnamitas estavam sendo mortos a cada semana pelas forças norte-americanas. Cem soldados morriam todos os dias, a guerra custava 2 bilhões de dólares por mês e o movimento contra a guerra estava crescendo. A provocação de Ali é muito mais do que uma nota de rodapé no movimento. Como disse um observador: “Ele tornou a dissidência visível, audível, atraente e destemida”.

Por volta de 1968, Ali estava sob fiança – abandonado pela NOI – e despojado de seu título. Mas ele nunca foi tão ativo porque havia uma geração jovem de negros e brancos que queriam ouvir o que ele tinha a dizer. E Ali agradeceu.

Em 1968, ele falou em duzentas universidades. Aqui está um discurso, cheio de confiança – como se o Estado norte-americano não fosse mais ameaçador do que Floyd Patterson:

“Espera-se que eu vá ao exterior para ajudar a libertar as pessoas no Vietnã do Sul e ao mesmo tempo meu povo aqui está sendo brutalizado. Inferno, não! Gostaria de dizer àqueles que pensam que eu perdi alguma coisa que eu ganhei tudo. Eu tenho paz de coração; tenho uma consciência limpa e livre. E eu estou orgulhoso disso. Acordo feliz, vou para a cama feliz e se for para a cadeia, irei feliz.”

O retorno de Ali

Ali, que apelou de sua sentença, foi auxiliado pela maré contra a guerra. Uma Suprema Corte dividida anulou sua sentença em 1970, pois os juízes disseram que “daria alívio aos negros”, e Ali foi vitorioso. Ele voltou ao ringue em 1971, um lutador mais lento, mas tão inteligente quanto qualquer lutador que já tinha pendurado as suas luvas.

Ali perdeu para Joe Frazier em 1971, numa tentativa de recuperar seu título. A luta dos 15 rounds foi tão brutal que enviou os dois lutadores para o hospital. Então, em 1973, Ali perdeu e depois derrotou Ken Norton. Depois veio o “Rumble in the Jungle”, no Zaire, contra George Foreman. Em muitos aspectos revelou os limites e ambiguidade do Black Power – e o declínio tanto da militância de Ali quanto do movimento que inspirou e foi inspirado por ele.

O ditador Mobutu Sese Seko – um querido dos Estados Unidos que matou o velho amigo de Ali, Patrice Lumumba, para tomar o poder e depois saquear um quarto da riqueza do país – garantiu a luta com um parasita social chamado Don King.

Juntos, eles vestiram a luta com as cores do nacionalismo negro. As favelas ao longo da estrada que levava do aeroporto foram maquiadas por enormes outdoors que diziam: “Zaire: onde o Black Power é uma realidade”. Antes da luta, Mobutu reuniu dezenas de supostos criminosos e mandou executar uma centena deles para garantir a “segurança” da imprensa estrangeira.

Mas se tudo ao redor da luta foi horrível, a luta em si foi incrível. A multidão africana – que gosta dos negros nos Estados Unidos via Ali como seu herói – e catava sem parar “Ali, Bomaye!” (Ali, mate-o!). Mas esperava-se que Foreman, forte e em seu auge, acabasse com Ali.

Em vez disso, Ali venceu Foreman em uma das maiores dificuldades da história. Ele passou os primeiros rounds permitindo que Foreman se esgotasse tentando agredi-lo. Nas semanas que precederam a luta, ele havia praticado esta estratégia de “corda-a-dope”, defendendo sua cabeça e seu corpo enquanto mantinha suas costas contra as cordas.

Depois que Foreman cansou, Ali de repente saiu das cordas, despachando Foreman no oitavo round. Foi uma das partidas de boxe estrategicamente mais brilhantes já vista.

A carreira de Ali continuou enquanto o movimento do Black Power e a luta pela liberdade declinavam. A classe dominante norte-americana esmagou uma parte do movimento, e acomodou a outra parte. Em alguns aspectos, Ali representou os dois lados disso. Ele foi esmagado e acomodado. Ali voltou ao ringue como um lutador muito mais lento, mas ele descobriu que podia levar um soco. E ele os levou até ser fisicamente destruído.

Embora devagar, Ali era muito amado. Louisville deu o nome dele a uma rua. Os presidentes o convidaram para a Casa Branca e, como mencionado, ele hoje aparece para acender a tocha olímpica e o brado para a guerra. Jim Brown, um atleta que nunca parou de se organizar, disse: “Ali que a América acabou amando não era o Ali que eu mais amava. O guerreiro que eu amava tinha ido embora.”

Mas se o atual Ali foi absorvido pelo mainstream, seu passado está escrito e ele nos pertence. Quando os militantes de hoje se esforçam para conectar a guerra em casa com a guerra no exterior, temos o Ali dos anos 60 como parte de nossa tradição. Como Tommie Smith disse recentemente, “não é algo que eu possa deitar na minha prateleira e esquecer. Meu coração e minha alma ainda estão nessa época, e ainda acredito que tudo pelo que estávamos tentando lutar em 1968 não foi resolvido e fará parte do nosso futuro”.

Smith está certo: a resistência de Ali ao racismo e à guerra não pertence apenas aos anos 60, é parte do futuro comum da humanidade.

Sobre os autores

Dave Zirin é o autor de vários livros. O mais recente deles é "Brasil’s Dance with the Devil: The World Cup, The Olympics, and the Fight for Democracy".

Cierre

Arquivado como

Published in América do Norte, Esportes, Livros, Militarismo and Perfil

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