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Afeni Shakur na Convenção Constitucional do Povo Revolucionário na Filadélfia, Pensilvânia, em setembro de 1970. (David Fenton / Getty Images)

Afeni Shakur confrontou o Estado e venceu

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Tradução
Gercyane Oliveira

A militante dos Panteras Negras Afeni Shakur nasceu neste dia em 1947. Grávida e enfrentando a prisão, a mãe do rapper Tupac Shakur lutou pela sua vida e de seus filhos - e triunfou num julgamento histórico contra o aparato de espionagem e repressão norte-americano.

Afeni Shakur nasceu pronta para lutar.

Ela já passou onze meses na Casa de Detenção Feminina e, embora tenha saído sob fiança, não está livre. É 8 de setembro de 1970, e ela está esperando dentro do Tribunal Criminal do Condado de Nova York, em Manhattan. Dezessete meses atrás, ela foi indiciada por acusações incluindo tentativa de assassinato, conspiração para cometer assassinato e conspiração para bombardear edifícios. Uma condenação ameaça mandá-la para trás das grades pelo resto de sua vida.

E, para acrescentar aos seus problemas, ela está grávida de seu primeiro filho – um menino.

Para o júri que decidirá seu destino, Afeni se parece com qualquer outro jovem membro do Partido Pantera Negra – uma mulher negra de tamanho médio, de pele escura, cabelo curto e vinte e três anos de idade. Um grupo sobre o qual a mídia havia passado anos conjurando histórias assustadoras nesta época.

Em breve, ela se apresentará diante de um juiz branco e enfrentará uma acusação totalmente branca, pois o governo do país em que ela vive trabalha ativamente para erradicar a organização da qual ela faz parte, como fizeram efetivamente com a maioria daqueles que consideraram uma ameaça.

No entanto, Afeni não pode se dar ao luxo de ficar esgotada pelas circunstâncias. Ela está prestes a se defender no julgamento sem a ajuda de um advogado – uma decisão amplamente vista como suicida.

A Afeni não está sozinha. Em The People of the State of New York v. Lumumba Shakur et al., há outros doze réus, todos fazem parte dos “21 Panteras”, que em 2 de abril de 1969, foram presos e indiciados sob a acusação de tentativa de assassinato, incêndio e bombardeio.

Mas provar a inocência de Afeni e ganhar sua liberdade é agora sua única responsabilidade. Se ela for considerada culpada, a pena é de 350 anos de prisão. Ela não tem experiência em tribunal, não tem qualquer formação jurídica.

“Nós não sabíamos com o que estávamos lidando”, disse Shakur, olhando para trás. “Não tínhamos nada a ver com isso”. E se ela falhar, sua vida – e a de seu filho por nascer – está efetivamente acabada.


Tanto violentamente como não violentamente, em seu tempo como Pantera e depois, como militante, Afeni Shakur procurou derrubar o sistema de opressão no qual ela havia nascido. Mas no final, ela acreditava que o Partido dos Panteras Negras, e ela mesma, falharam.

“Em vez disso, nos voltamos contra Deus, e como você vai ganhar assim? Você tem que ter um imperativo moral para vencer”, disse Afeni. “Nós não entendemos isso. Atraímos a violência para nós mesmos. Atraímos a amargura para nós mesmos”.

Mas nesta primeira luta de vida e morte, a Afeni ganhou, inquestionavelmente. Ela seria presa novamente, pagaria fiança novamente, e prosperaria como sua própria advogada de fato, desempenhando um papel fundamental na absolvição dos 21 Panteras de todas as acusações em maio de 1971. Um mês depois, ela deu à luz a seu filho.

Ela o via crescer e se tornar um homem que trouxe seus valores a uma audiência global, tornando-se um dos homens negros mais famosos e amados do mundo – apenas para vê-lo morrer baleado aos vinte e cinco anos de idade, a mesma violência que ela viu quebrar os Panteras tirando a vida de seu filho primogênito.

Afeni, que faleceu em 2016, teve uma vida cheia de problemas. Ela ficou viciada em drogas logo após ter conquistado sua liberdade, o que a fez ter um relacionamento difícil com seu filho, que se distanciou quando sua carreira musical decolou, assim como com sua filha, Sekyiwa. Ela era impulsiva e egoísta às vezes. Ela podia ser teimosa, e tinha um mau feitio.

Em nenhum momento, no entanto, ela esqueceu seu povo e sua luta. Como muitas mulheres negras nascidas no Sul nas décadas antes da derrota de Jim Crow, ela nasceu em meio a luta e a violência. O mundo, ao que parece, quis dividi-la em um milhão de pedaços.

Mas, uma e outra vez, até sua morte aos sessenta e nove anos de idade, Afeni triunfou sobre todas elas.


Afeni nasceu como Alice Faye Williams em Lumberton, Carolina do Norte, em 1947. Sua mãe, Rosa Belle, cuidava da casa enquanto seu pai, Walter Williams Jr., trabalhava como motorista de caminhão. Shakur descreveu seu pai como um “negro de rua” que espancava sua mãe com frequência.

“Aqui eu era… esta menina brilhante que queria tanto que seu pai descobrisse o seu especial e maravilhoso talento, e ele nunca o fez”, disse Afeni. “Eu precisava de um pai que estivesse lá. Eu precisava de um pai que não fosse uma ameaça para minha mãe”.

Rosa, que era de Lumberton mas havia se mudado para Norfolk por causa de sua família, conseguiu aturar o abuso doméstico de Williams durante anos. Mas, por fim, ela se desfez e chamou seu irmão para ajudá-la e suas duas filhas a se mudarem primeiro para Lumberton em 1958 e depois para o Bronx.

Em Nova York, Afeni estava livre de seu pai, mas ela ainda era assombrada pelas lembranças de seu abusador. “Durante a maior parte da minha vida, fiquei com raiva. Eu pensava que minha mãe era fraca e meu pai era um cachorro”, lembrou ela. “Essa raiva me alimentou por muitos anos”. No Bronx, ela se meteu em brigas tanto com meninos quanto com meninas na escola e em seu bairro. “Tudo ao meu redor me parecia doloroso”, disse Afeni. “Nós não tínhamos proteção. Eu nunca me senti segura.”

Apesar de sua fúria ardente, Afeni teve um bom desempenho na escola. Suas notas nos testes a levaram para a Escola de Ciências do Bronx, mas ela se interessou mais pelas ruas e se juntou ao Disciple Debs, uma gangue de mulheres no Harlem. “Tudo o que eu queria era proteção”, disse Afeni. “Isso é tudo o que toda mulher quer para se sentir segura.”

Ela finalmente encontrou essa proteção em 1968. Enquanto andava pela 125th Street naquele ano, ela notou um homem em pé numa esquina e falando na frente de uma multidão. Era o cofundador do Partido dos Panteras Negras, Bobby Seale. A multidão chamou sua atenção, mas o que a fez parar foram as palavras de Seale.

“Ele estava apenas dizendo que todos nós podíamos fazer algo sobre a polícia que estava em nossa comunidade”, disse Afeni em uma entrevista de 1972. “Eu acabei de me juntar [naquele mês de agosto] totalmente assustada que alguns jovens teriam a coragem para ir a uma assembleia estadual com armas e simplesmente ficar ali e dizer: ‘Tire as mãos da minha arma! Foi provavelmente o glamour e o romantismo que me trouxeram ao partido”.

Através dos Panteras, ela logo se encontrou e se apaixonou por Lumumba Shakur, o líder do comitê do Harlem. Com o carismático e inteligente Lumumba, Afeni aparentemente encontrou a segurança que ela procurava durante todos aqueles anos. “Quando conheci a família de Lumumba, toda minha visão dos homens e da família foi abalada”, constatou ela. “A família Shakur não era apenas forte, mas eles eram pensadores independentes.”

Era um romance de redemoinho, e os dois se casaram pouco depois, com a Afeni até mesmo se convertendo ao Islã. Ela foi designada ao orisha Oya, que é a divindade iorubá do tempo, morte e renascimento, e recebeu o nome de Afeni, que significa “querida” e “amante do povo”, em 1968.

Mas quando se trata da relação de Afeni com Lumumba, as circunstâncias eram, no mínimo, estranhas. Ele já tinha uma esposa, e o trio vivia junto por um período enquanto Lumumba saltava romanticamente de um lado para o outro entre as duas mulheres.

Enquanto isso, Afeni se jogou no trabalho com os Panteras. Foi o antídoto para a violência e as dificuldades de sua juventude e o início de um processo de cura, não só para ela, mas para toda uma geração de homens e mulheres negros que de repente, na juventude, se viram enfrentando o racismo institucional.

Ela escrevia boletim informativo, tornou-se líder de seção do comitê Harlem, e fez um extenso trabalho voluntário em lugares como o Hospital Lincoln – tudo isso enquanto ganhava dinheiro como professora. Através do partido, ela foi capaz não apenas de pegar sua raiva reprimida do início de sua vida e canalizá-la para fora em direção a seus opressores, mas também melhorar como indivíduo – uma história comum para muitos membros, que encontraram nos Panteras uma espécie de renascimento espiritual.

“Eles educaram minha mente e me deram direção”, recorda Afeni. “Com essa direção veio a esperança e eu os amei por me darem isso. Porque eu nunca tive esperança em minha vida. Nunca sonhei com um lugar melhor ou esperei um mundo melhor para minha mãe, minha irmã ou para mim.”

Mas nos Panteras, a polícia e o FBI viram algo completamente diferente: uma ameaça mortal tomando forma nas cidades dos Estados Unidos. E com a disposição de usar, se necessário, meios violentos para atingir fins revolucionários.

Entre 1967 e o início de 1969, o partido esteve envolvido em vários confrontos com a polícia, incluindo discussões, protestos, tiroteios, bombardeios e batidas que levaram a danos, ferimentos e mortes. Sua ideologia socialista e sua política de autodefesa armada era considerada uma ameaça existencial. Diz-se que o diretor do FBI J. Edgar Hoover declarou que “o Partido dos Panteras Negras, sem dúvida, representa a maior ameaça à segurança interna do país”.

Essas palavras não eram vazias. O governador da Califórnia, Ronald Reagan, assinou a Lei Mulford, revogando uma lei anterior que permitia aos cidadãos transportar armas de fogo carregadas, como medida explícita para reprimir os Panteras. Mas era apenas o começo. No final dos anos 60, os Panteras eram um alvo principal do programa COINTELPRO do FBI, projetado para infiltrar-se e desacreditar os Panteras e outros grupos radicais de esquerda. Em 4 de dezembro de 1969, o vice-presidente dos Panteras, Fred Hampton, foi assassinado pela polícia de Chicago junto com Mark Clark em uma batida policial anterior, tendo sido drogado mais cedo por um informante do FBI para garantir que ele não escapasse.

O Estado norte-americano estava agora atirando nos Panteras Negras, pronto para desencadear qualquer violência que fosse necessária para detê-los. O que havia dado esperança à Afeni e a atraído para o mundo deles logo a encheria com uma sensação de medo maior do que ela jamais havia conhecido.


Desde cedo, Afeni sabia que algo estava profundamente errado.

Era Yedwa Sudan, um colega do comitê do Harlem. Algo nele estava errado, e ela podia sentir isso. Ele era agressivo e de temperamento incerto. Ele falava avidamente e descuidadosamente sobre cometer atos de violência dirigidos à polícia de maneira mais descarada do que até mesmo os Panteras mais combativos estavam acostumados.

Afeni contou a Lumumba sobre suas suspeitas de que Yedwa não era quem ele dizia ser – talvez até mesmo um policial disfarçado.

“Cara, ele não podia ser um policial”, Lumumba disse mais tarde a um dos advogados. “Você deveria ter visto a merda que ele fez.”

Para Afeni, era outro exemplo de algo que há muito a incomodava sobre o Partido dos Panteras Negras – o machismo, tão comum nos Estados Unidos na época, que era difundido até mesmo em uma organização como a deles. Os homens do partido tendiam a recusar posições de autoridade das mulheres e a minimizar suas opiniões como algo trivial.

Mas a Afeni estava certa – “Yedwa Sudan” era realmente o oficial Ralph White da policia novaiorquina.

“Eu estava pressionando as mulheres para que tivessem mais direitos no partido”, disse Afeni. “E nós lutamos sobre [Yedwa] porque eu sabia que ele era um maldito policial desde o início e Lumumba não quis me ouvir”. E, no entanto, a própria violência de rua e a hiperagressividade que despertaram as suspeitas de Afeni só provaram, para alguns quadros dos Panteras, a sinceridade de Yedwa.

White, fazendo-se passar por Yedwa Sudan, havia sido enviado não apenas para se infiltrar nos Panteras, mas para destruí-los, levando-os por um caminho de violência, onde o braço brutal do Estado poderia mais facilmente desacreditar a organização e esmagá-la pela força – uma arena onde a polícia teria sempre a vantagem.

Se Lumumba tivesse ouvido a Afeni, talvez eles não tivessem sido pegos de surpresa às 5 da manhã do dia 2 de abril de 1969, quando o detetive Francis Dalton e outros quatro policiais de Nova York chegaram sem aviso prévio em sua casa, na 112 West 117th Street. Dalton acendeu um pedaço de pano, e os oficiais gritaram coletivamente “fogo!” para atrair Lumumba e Afeni de seu apartamento antes de prender o casal.

Junto com outros oito Panteras Negras, Afeni e Lumumba foram presos e acusados de 156 crimes decorrentes de ataques a quatro delegacias de polícia entre 1968 e 1969, e seu suposto planejamento de bombardear uma ferrovia, o Jardim Botânico de Nova Iorque, e arrastões em cinco lojas de departamento em Nova Iorque.

No total, vinte e um membros do partido, que ficaram conhecidos como os “21 Panteras”, foram nomeados na acusação. A fiança foi fixada em US$ 100.000 para os treze que foram presos e continuaram a comparecer no tribunal até hoje.

Acontece que não foram apenas os oficiais de White – Eugene Roberts e Carlos Ashwood também se infiltraram com sucesso em seu comitê, fornecendo um testemunho crucial que ajudou a assegurar as acusações.

Afeni negou veementemente as acusações. White, como Yedwa, não apenas os tinha espionado, mas os tinha conduzido a uma armadilha – uma única que o Afeni caiu.

“Eu sabia que minha agenda militante terminaria um dia aqui na sala da justiça”, disse Afeni, “mas não havia justiça na forma como estava acontecendo. Fomos espionados, infiltrados, enganados e manipulados psicologicamente. Eu vi pessoas que eu pensava conhecer mudar diante dos meus próprios olhos”.

A acusação foi liderada por Joseph A. Phillips, um hábil advogado da promotoria distrital de Manhattan. Felizmente, os Panteras conseguiram levantar dinheiro para obter uma defesa de advogados, com William Crain, Gerald Lefcourt, Carol Lefcourt, Robert Bloom, Sanford Katz, e Charles McKinney.

Lumumba escolheu a dedo Carol Lefcourt para servir como a principal defesa do Afeni. Mas Afeni imediatamente se opôs à escolha.

“Carol Lefcourt tinha uma voz pequena e estridente”, lembra Afeni. “E eu pensei: inferno, não, ela não pode me representar! Não soava assim. A juíza não poderia ouvir sua objeção, não com aquela voz. Não havia carne em sua voz, não havia ressonância, não havia garantia… Estou enfrentando os mesmos trezentos e cinquenta anos que todos os outros estão enfrentando, e não vou sair assim.”

Então, com sua vida em jogo, Afeni arriscou e tomou uma decisão que pareceu maluca para muitos – ela decidiu se auto-representar no tribunal.

Lumumba tentou persuadi-la a voltar atrás no plano, mas a Afeni se manteve firme quando a audiência pré-julgamento começou, em fevereiro de 1970. A equipe de defesa estava compreensivelmente apreensiva, mas a forma como a Afeni se comportou no tribunal chocaria a todos eles – não menos importante que a própria Afeni. “Achei que estava escrevendo meu próprio obituário.”

Mas a Afeni não estava inteiramente sozinha. Os Panteras haviam inspirado uma esquerda mais velha que, mesmo depois dos anos desastrosos de McCarthy, estava lá para dar uma mão quando necessário. Enquanto estava encarcerada na Casa de Detenção das Mulheres, Afeni desenvolveu um relacionamento com um grupo de mulheres de fora que haviam participado do movimento trabalhista nos anos 40 e 50.

Embora fossem mais velhas e muitas delas fossem brancas, eram radicais que sabiam o que significava enfrentar o Estado – especialmente como mulher.

Elas a escreviam, a visitavam e perguntavam como poderiam ajudar. Ela lhes pedia para criar um fundo de fiança para outras mulheres encarceradas que precisavam de menos de 500 dólares para sua fiança. Elas o fizeram, mas também criaram um fundo de fiança para a Afeni. E em março de 1970, após onze meses na prisão, a Afeni pagou a fiança.

Embora ela e outros acreditassem que sua vida estava essencialmente terminada neste ponto, ela estava se preparando para lutar com tudo o que ela tinha.


Durante seu tempo na prisão, Afeni e Lumumba haviam se distanciado. A acusação foi capaz de limitar com sucesso o tempo que os réus podiam passar juntos fora do tribunal. E nas poucas vezes em que puderam se encontrar, Lumumba pediu repetidamente a Afeni que fizesse sexo – mesmo com os outros réus e advogados presentes. Ela se recusou. Isto, juntamente com suas discordâncias recorrentes ao longo do julgamento, levou a uma deterioração ainda maior de seu relacionamento.

Enquanto ela estava fora sob fiança, Afeni ficou grávida do filho de outro colega dos Panteras Negras, Billy Garland. Uma vez que Lumumba descobriu, ele a deserdou como esposa – o status “aberto” de seu relacionamento aparentemente só se aplicava a ele. Com Lumumba dando as costas para ela, Afeni estava ainda mais só.

Incrivelmente, quando o julgamento começou, em setembro de 1970, isso não a dissuadiu de sua decisão de agir como sua própria advogada. Agora por conta própria, ela tomou gosto pela advocacia.

“Eu era jovem”, lembra Afeni. “Eu era arrogante e era brilhante no tribunal. Eu não teria sido capaz de ser brilhante se pensasse que ia sair da cadeia. Foi porque eu pensava que esta era a última vez que eu podia falar. A última vez antes que eles me prendessem para sempre”.

Ela não tinha medo de desafiar o juiz, de entrar em brigas com ele quando descontente e levantar objeções contra a acusação. Ela entrevistou testemunhas com tato e liderou interrogatórios cruzados como se fosse uma advogada experiente.

De fora, não havia nada que sinalizasse que a Afeni estava fora de sua zona de conforto. Cinco meses após sua gravidez, no entanto, seu bem-estar mental e físico começaria a desmoronar. Após dois réus saírem com fiança, Afeni teve sua fiança revogada em 3 de fevereiro de 1971. Pouco tempo depois, Huey P. Newton dispensou todos os réus além de Afeni e Joan Bird do Partido dos Panteras Negras. Como Afeni e Bird eram as duas únicas mulheres em julgamento e, ao contrário dos homens, não tentaram fugir sob fiança, elas foram poupadas.

Com a fiança revogada, Afeni estava mais uma vez atrás das grades na decrépita Casa de Detenção de Mulheres de Nova Iorque – ela ficou sem água quente, não comeu comida, foi submetida a revistas regulares nas cavidades corporais e recebeu apenas algumas folhas de papel higiênico por dia. Mais tarde, Afeni foi resgatada uma segunda vez pelo mesmo grupo de mulheres que investiu dinheiro na primeira vez, mas esse período de tempo nessas condições colocou não apenas sua saúde em risco, mas também a de seu filho por nascer.

“As condições não são apenas abomináveis, como eram antes; são desumanas”, disse Afeni ao Juiz John Murtagh. “As instalações não são mais ruins; são ridículas. As mulheres não devem ser colocadas lá.”

Quanto aos Panteras, Afeni estava ficando rapidamente desiludida com a organização. Não se sentiu bem que a maioria dos outros réus tivessem sido expulsos porque alguns poucos haviam conseguido pagar a fiança. Pior ainda, em 17 de abril de 1971, um homem chamado Sam Napier, o gerente de circulação do jornal Black Panther, que era um amigo próximo dela, mas inimigo do comitê Harlem, havia sido amarrado a uma cadeira e morto a tiros em um escritório dos Panteras em Corona, Queens. A violência que Afeni havia passado uma vida inteira tentando escapar estava agora assumindo o partido que ela havia visto como sua salvação. E ela foi apanhada de surpresa no meio de tudo isso.


Durante meses, Afeni não queria mais do que enfrentar o oficial Ralph White na sala do tribunal.

O primeiro dos três oficiais infiltrados a tomar posição, no entanto, foi Eugene Roberts. Ele foi considerado a principal testemunha da acusação, mas seus relatórios sobre o que ele observou dos 21 militantes dos Panteras Negras foram muito vagos para se enquadrar nas acusações. Nos interrogatórios, Roberts revelou que o grupo não tinha feito nenhum tipo de planejamento para uma suposta ação direta de bombardeio. Sua insistência de que as acusações eram verdadeiras, e que os bombardeios eram iminentes, era pouco credível.

“Eu pessoalmente acreditava que algo iria ser feito”, disse Roberts, “mas eu não sabia quando”.

O testemunho pouco inspirador de Roberts já havia infligido um duro golpe à acusação. Agora dependia de White. Para que o Estado vencesse, ele teria que fazer com que os réus, incluindo Afeni, não fossem apenas membros de um partido político radical – talvez até mesmo extremistas – mas terroristas violentos que, antes de serem presos, estavam à beira de desencadear uma onda de assassinatos e caos sobre os cidadãos de Nova York.

Isto também significava que Afeni finalmente enfrentaria o White – um contra um. Era obviamente pessoal para ela. White foi, afinal, uma das principais razões pelas quais ela foi forçada a sobreviver em condições tão terríveis em uma prisão durante meses durante sua gravidez.

Longe de perder a calma, Afeni o atraiu para uma armadilha – e foi essa armadilha que, uma vez armada, se tornou o momento crucial no julgamento.

“Por que, Yedwa, você fez isso conosco?”

Foi a primeira coisa que ela havia dito a White desde sua prisão e sua primeira pergunta a ele no tribunal. Ela estava diante dele agora na sala de audiências vestindo uma bata que abraçava com força sua barriga grávida, toda sua raiva e seu senso de traição contidos em oito palavras.

White e o Estado queriam fazer com que os Panteras encarnassem verdadeiramente a violência e a militância de sua retórica. Queriam que toda a conversa sobre “os porcos” fosse apoiada por uma sede muito real de violência nas ruas – para a qual a Afeni e os outros réus estavam ativamente se dirigindo.

Então Afeni lhe perguntou como ele caracterizaria, em suas palavras, não a retórica, mas o trabalho cotidiano que os Panteras Negras estavam fazendo – e, mais importante, como ele caracterizaria seu próprio trabalho.

White: Quanto ao seu envolvimento, eu pensava que você era mais militar do que política.

Shakur: Que envolvimento?

White: Não consigo me lembrar de tudo o que você disse ou tudo o que você fez ou mesmo de todas as suas ações; mas… Eu estava apenas baseando minha própria opinião no que eu via sobre você ou sobre qualquer outra pessoa.

Shakur: Entendo isso. Mas você disse que havia coisas que você me viu fazendo, eu só quero ouvir uma coisa.

White: Lembro-me de uma reunião no escritório dos Panteras, você entrou numa vibe sobre cercar os porcos, junto com aquela coisa militar, e muito emocionada. Lembro-me disso, mais outras coisas das quais não me lembro de jeito nenhum. Estou dizendo apenas como eu baseei minhas opiniões, no que… tinha visto e ouvido e tinha esquecido a maioria delas.

Shakur: Você já me viu trabalhando no Hospital Lincoln?

White: Sim, eu já vi.

Shakur: Você alguma vez me viu trabalhando nas escolas?

White: Sim, já vi.

Shakur: Alguma vez me viu na rua trabalhando?

White:  Sim, eu já vi.

Shakur: Estas são algumas das coisas que o levaram a pensar que eu tinha uma mente militar?

White: Não, não era.

Shakur: Você não se lembra das outras coisas?

White: Na época, eu me lembrei delas. Você me lembrou das coisas boas que estava fazendo. Se você me lembrou de algumas das coisas que disse, eu poderia responder a isso.

Shakur: Sim, eu acho que sim.

O caso do Estado repousava quase inteiramente no testemunho de agentes infiltrados – e esse testemunho se baseava quase inteiramente na retórica militante. Palavras de luta, e pouco mais.

E em um contra-interrogatório, Afeni havia dado um duro golpe.


A escrita estava na parede em 2 de abril de 1971, dois anos após os membros dos 21 membros dos Panteras terem sido presos. O oficial Carlos Ashwood, que era a última testemunha do promotor Joseph Phillips, tinha tomado posição a partir do final de março, e ele não se mostrou mais útil para a acusação do que os dois oficiais anteriores. Afeni o fez parecer uma criança.

Shakur: Você já me viu matar alguém?

Ashwood: Eu nunca a vi matar ninguém.

Shakur: Você alguma vez me viu explodir alguma coisa?

Ashwood: Eu nunca te vi explodir nada.

Ao longo das semanas seguintes, Phillips recorreu ao descontrole emocional para lutar pelo seu caso desvendado. Tudo o que restava era que o advogado de defesa, o promotor e o juiz falassem diretamente ao júri.

Afeni foi selecionado para falar em segundo lugar entre os advogados de defesa. Apesar de seus contra-interrogatórios bem sucedidos, ninguém estava certo do resultado. Ironicamente, foi somente na hora que ela sentiu que tinha uma chance de lutar que ela amoleceu. Ela não era mais a jovem descarada que decidiu que iria balançar as estruturas. A raiva que tinha estado com ela quando era menina em um lar abusivo e mais tarde, quando ela encontrou um propósito nos Panteras Negras, tinha fugido dela.

De pé diante do júri com sua bata branca, ela era algo completamente diferente pela primeira vez em sua vida: vulnerável. Sua vida – e a vida de seu filho ainda por nascer – estava pendurada no equilíbrio da decisão de uma dúzia de estranhos. Ela abandonou a retórica justa e romântica que primeiro a atraiu para os Panteras quando jovem e, em vez disso, olhou de frente para as doze pessoas do júri, falando do coração.

Eu não sei o que devo dizer. Não sei como devo justificar as acusações que o Sr. Phillips apresentou perante o tribunal contra mim. Mas sei que nenhuma dessas acusações foi provada e não estou falando de uma prova que paire uma dúvida razoável. Estou dizendo que nenhuma das acusações foi provada, ponto final. Que nada foi provado neste tribunal, que eu ou qualquer um dos réus fizemos qualquer uma destas coisas que o Sr. Phillips insiste em dizer que fizemos. Então, por que estamos aqui? Por que qualquer um de nós está aqui? Eu não sei.

Mas eu gostaria que vocês acabassem com este pesadelo, porque estou cansada disto e não posso justificar isto em minha mente. Não há nenhuma razão lógica para que tenhamos passado os últimos dois anos como nós passamos, para sermos ameaçados de prisão porque alguém em algum lugar está observando e esperando a hora certa para justificar ser um espião. Portanto, faça o que tem que ser feito. Mas por favor, não se esqueça do que vocês viram e ouviram neste tribunal… Deixe a história registrá-los como um júri que não se ajoelharia diante da absurda ação do Estado. Mostre-nos que não estávamos errados ao assumir que vocês nos julgariam de forma justa. E lembre-se que é tudo o que estamos pedindo a você.

Phillips foi o próximo. Mas onde Afeni tinha sido sincera e vulnerável, ele era arrogante, até mesmo insultuoso – tentando endurecer o coração do júri contra a mulher grávida que tinha acabado de falar com eles para salvar sua vida. Entendendo uma crescente simpatia entre o júri pela Afeni, ele a acusou de esquecer dos principais fatos do caso. Apesar de estar indo mal, o Juiz Murtagh falou como se Phillips tivesse a vantagem quando a defesa se opôs durante seu monólogo.

“Aparentemente, ele está indo muito bem para você”, disse Murtagh. “Sente-se”.

Por volta das 16h do dia 12 de maio de 1971, Murtagh foi informado de que o júri havia proferido um veredito – só tinha levado cerca de vinte minutos. Supondo que o veredito seria culpado, ele passou trinta e cinco minutos tomando medidas de segurança.

Quando os jurados chegaram às 16h35, deram seu veredicto unânime: 156 afirmações de “inocente”.

Depois que o jurado James Ingram Fox disse “inocente” pela última vez, Afeni irrompeu em lágrimas, Lumumba gritou, e cada um dos réus se reuniu para chorar, gritar, e celebrar uns com os outros. Mais de vinte e cinco meses após sua prisão, todos eles estavam livres.

Depois disso, os réus e os jurados se reuniram nos escritórios de advocacia de Crain e Lefcourt para comemorar. Uma jurada, impressionada com a forma como a Afeni havia se defendido na sala do tribunal, perguntou-lhe qual era seu segredo.

“Medo”, respondeu Afeni. ” Puro medo”.


Pouco mais de um mês depois, Afeni deu à luz em 16 de junho de 1971. Ela deu o nome de Lesane Parish Crooks a seu filho. Alguns dias depois, ela mudou o nome dele para Tupac Amaru Shakur, em homenagem ao grande líder inca. “Eu queria que ele soubesse que ele fazia parte de uma cultura mundial e não apenas de um bairro”, disse ela. “Eu queria que ele tivesse o nome de revolucionários, povos indígenas do mundo”.

Ela não voltou ao Partido dos Panteras Negras e, em vez disso, casou-se com Mutulu Shakur, que era membro do Exército de Libertação Negra (BLA), em 1975, no mesmo ano em que sua filha, Sekyiwa Shakur, nasceu.

Mas em 1981, Mutulu, cinco outros membros do BLA, e quatro ex-membros do Weather Underground roubaram um carro blindado em Nanuet, Nova York, roubando US$ 1,6 milhão e deixando um segurança morto e outro gravemente ferido. Dois policiais foram mortos em sua fuga. Mutulu fugiu então, com o casal se divorciando logo em seguida. Finalmente, após perder seu emprego em 1984, Afeni se mudou com seus dois filhos de Nova Iorque para Baltimore, Maryland, para iniciar um novo capítulo de sua vida.

Mas ao invés disso, sua vida começou a ficar fora de controle. Afeni havia usado cocaína e LSD durante os dias mais estressantes na corte e continuou a usar drogas após o julgamento. Ela ficou limpa durante os dois primeiros anos que esteve em Baltimore, mas logo recaiu. À medida que seu vício se intensificou, ela enviou seus filhos para morar com uma amiga em Marin City, Califórnia. Ela explicou:

Meu vício não era apenas com substâncias, mas também com as pessoas que eu continuava a manter em minha vida. Fiquei ali mesmo com essas pessoas. Eu nunca segui em frente. Todo o tempo esses homens estavam sendo mortos ferozmente, sendo presos, desaparecendo, e eu simplesmente fiquei. Eu acreditava em meu coração que era isso. Estas pessoas eram a minha vida. Eu não sabia que tinha escolha para sair dela… Mesmo quando estava fumando crack no meu pior momento, eu dizia: “Deus, como vou sair disto?” E ele diria: “Bem, para você não há saída. Aonde você iria?

Eu pensava que a razão pela qual eu estava ficando drogada era para acalmar a visão de todas as pessoas que morriam e toda aquela violência e trauma. Então, eu diria coisas como: “Se você ficasse no meu lugar por um segundo, seu traseiro também ficaria drogado”. E eu acreditava nisso.

Afeni não foi a única ex-pantera a lutar naqueles anos. O co-fundador Huey Newton foi assassinado em 1989 por um traficante e membro da Família Black Guerrilla, uma gangue prisional nominalmente marxista-leninista. Muitos outros haviam sido mortos ou encarcerados até então.

Afeni acabou se mudando para Marin City para se juntar a seus filhos, mas ela foi desviada novamente quando iniciou um relacionamento com um homem preso. Ela ficou grávida e, depois de inicialmente lhe ter sido negado um aborto, começou a fumar muito crack, numa tentativa de acabar com a vida do bebê. Quando ela realmente recebeu um aborto, ela já era viciada em crack.

De lá, Tupac se ramificou por conta própria enquanto Sekyiwa foi deixada para se defender sozinha. Separada de seus filhos e enfiada nas drogas, Afeni atingiu seu limite.

“Eu estava morrendo, e sabia que estava morrendo porque meu espírito não estava mais lá”, recorda Afeni. “Eu ia para a cama à noite e realmente não me importava se eu acordava ou não.”

Foi só quando ela se mudou de volta para Nova York em 1990 que a Afeni chacoalhou seu vício em drogas através das reuniões de Narcóticos Anônimos. Tupac, que estava crescendo rapidamente para se tornar uma estrela do rap, ainda estava apreensivo com a possibilidade de se reconectar com ela. Isso machucou Afeni, mas ela entendeu o problema.

“Como garota, eu só magoava”, disse Afeni. “Minha mãe era fraca e doce. Meu pai era mau e arrogante. Éramos negros e pobres em um lugar onde isso significava que você era uma merda. Então, eu entendo Tupac. Ele procurava as razões em mim, assim como eu procurava as respostas em meus pais. Quando Tupac veio até mim com um monte de perguntas, eu sabia o que estava chegando”.

Mas a influência de Afeni sobre Tupac cresceu mesmo em sua ausência. Quando adolescente, ele entrou para a Liga dos Jovens Comunistas dos EUA. Mais tarde, quando sua fama cresceu, ele usou-a para falar contra o sistema de justiça norte-americano que sua mãe havia desafiado décadas antes, mesmo quando os movimentos sociais e culturais, com o “fim de história”, havia se afastado muito de qualquer tipo de política radical.

“Há muito dinheiro aqui”, disse Tupac em uma entrevista de 1992 à MTV News. “Não há como essas pessoas possuírem aviões enquanto há pessoas que não têm casas, apartamentos, barracos, cabanas, cuecas, calças.”

Afeni foi paciente, dando a seu filho o espaço que ele precisava, pois sua música começou a tocar primeiro em milhares e depois milhões de vidas. Com o tempo, eles se aproximaram mais do que nunca. Tupac até escreveu sobre seu relacionamento renovado em sua faixa de 1995 “Querida Mamãe”.

“E mesmo como um demônio do crack, Mama, você sempre foi uma rainha negra, Mama”, dizia Tupac em seu rap. “Eu finalmente entendo. Para uma mulher, não é fácil tentar criar um homem. Você sempre esteve comprometida. Uma pobre mãe solteira na assistência social, diga-me como você o fez. Não há como eu lhe pagar de volta, mas o plano é mostrar-lhe que eu entendo – você é apreciada.”

Em 1996, menos de dois anos depois da música “Querida Mamãe”, Tupac foi baleado e morto em Las Vegas. Isso poderia ter mandado Afeni por um caminho sombrio mais uma vez. Em vez disso, ela tomou conta do patrimônio de seu filho, criando uma empresa em sua homenagem chamada Amaru Entertainment. A perda de seu filho revigorou sua determinação de continuar a trajetória em sua homenagem.

“Quando perdi meu filho, tive que lembrar que tinha uma filha e tinha netos e tenho a responsabilidade com meu filho de ficar limpa e viver de acordo com minhas obrigações”, disse Afeni. “E meus deveres não terminaram quando Tupac morreu.”

Afeni continuou seu trabalho como militante e viajou com frequência para fazer aparições e palestras para convidados. Através da partilha de suas experiências, ela encontrou a paz. Em seus últimos anos, Afeni viveu em uma casa em Stone Mountain, Geórgia, comprada para ela por seu filho antes de sua morte. Ela acreditava que era a primeira vez que alguém de sua família possuía terra desde sua bisavó Millie Ann, que a perdeu depois que ela colocou para pagar a fiança de seus filhos na cadeia.

Quando Afeni faleceu em 2 de maio de 2016, ela era mais conhecida não por sua luta no entre os 21 militantes dos Panteras Negras, não por fazer frente ao Estado norte-americano em guerra com ela e vencer, mas por ser a mãe de uma carismática superstar que morreu antes de seu tempo – o bebê que ela estava se esforçando para proteger quase meio século antes.

Mas aqueles de sua geração que haviam nascido na violência, numa luta que já tinha séculos, que lutaram para sair, que perderam e depois se viram novamente, sabiam que ela era muito mais do que isso.

Uma fúria transformou Afeni Shakur – e não destruiu ela.

Sobre os autores

cobre o time de futebol americano Las Vegas Raiders para a The Athletic.

Cierre

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Published in América do Norte, Militarismo, Música, Perfil and Política

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