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Foto de Jay Westcott / Agência O Globo

Como vencer um debate sem precisar ter razão

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Olavo de Carvalho não era apenas o guru da extrema direita, ele também era uma fraude intelectual. Em 2003, ele copiou ipsis litteris a tradução espanhola que Dionisio Garzón fez de um dos livros mais famosos do filósofo alemão Arthur Schopenhauer – e a gente pegou o velho sofista no pulo.

Em meados de 2016, enquanto preparava uma citação da Dialética erística de Schopenhauer para um livro, comparei três traduções: uma para o inglês, de Thomas Bailey Saunders (The art of controversy, Penn State Electronic Classics Series, 2005), uma espanhola, de Dionisio Garzón (El arte de tener razón, EDAF, 1996), e uma edição publicada no Brasil, comandada por Olavo de Carvalho. Considerando, obviamente, as distâncias entre as línguas, a tradução de Bailey Saunders se revelou bem diferente das outras duas, que, para meu estranhamento, pareciam quase idênticas entre si.

A Dialética erística é uma obra na qual Schopenhauer apresenta 38 estratagemas – subterfúgios, artimanhas, ardis – usados inescrupulosamente para vencer um debate. Segundo Dionisio Garzón, a obra só saiu à luz quatro anos após a morte do filósofo alemão. Embora “dialética” seja um termo destacadamente polissêmico, associado à erística – lembrando de Éris, a deusa grega da discórdia – trata-se de uma arte do combate verbal ou uma técnica de conseguir fazer com que um determinado público nos dê razão em uma discussão, ainda que não a tenhamos de fato. Além de descrever tais estratagemas, Schopenhauer também apresenta “meios de se defender contra eles, como uma arte de parar golpes nessa esgrima”. Embora o título original seja Dialética erística – em alemão, Eristische Dialektik –, a obra recebeu diversos títulos, mais ou menos apelativos, como uma edição francesa L’art d’avoir toujours raison (A arte de ter sempre razão).

Anos depois, surpreso com o destaque que Olavo ganhou no cenário nacional, decidi revisitar seu trabalho e avaliar o trabalho do “guru do bolsonarismo”. Publicado pela editora Topbooks em 2003, o livro Como vencer um debate sem precisar ter razão é composto de uma tradução da Dialética erística – assinada por Olavo de Carvalho e Daniela Caldas – e leva uma introdução e comentários do Olavo. As páginas escritas por ele, repletas de referências a obras insignificantes como O imbecil coletivo, deixam a desejar em diversos quesitos: Olavo e o redator, por exemplo, não sabem escrever palavras em grego, mas acharam bonito tentar. Mais espantosa, ainda, é a versão brasileira do texto de Schopenhauer: uma adaptação ipsis litteris de quase toda a tradução espanhola de Dionisio Garzón. Em casos especiais, vale ressaltar, Olavo faz pequenas alterações e, por vezes, introduz erros inéditos.

Dois exemplos:

No estratagema 30, onde Garzón traduz: 

“De hecho, no existe ninguna opinión, por absurda que sea, que los hombres no se lancen a hacerla propia apenas se ha llegado a convencerles que tal opinión es universalmente aceptada” (p. 40),

Olavo verte:

“De fato, não existe nenhuma opinião, por absurda que seja, que os homens não se lancem a torná-la sua, tão logo se tenha chegado a convencê-los de que é universalmente aceita” (p. 167).

Para efeito de comparação, Milton Camargo Mota (Editora Vozes, 2017, edição digital) traduz a mesma passagem assim:

“Não há uma só opinião, por absurda que seja, que as pessoas não tornem sua com facilidade, tão logo tenham sido convencidas de que ela é geralmente aceita”. 

Já Alexandre Pires Vieira (da editora Montecristo, 2018, edição digital) a verteu assim:

“Não há opinião, por mais absurda que seja, que os homens não aceitarão prontamente assim que puderem ser levados à convicção de que ela é geralmente adotada”.

No estratagema 9, a tradução de Dionisio Garzón coloca:

“Hacer las preguntas, en un orden distinto del que exige la conclusión que de ellas se pretende, con cambios de todo género” (p. 40).

Na de Olavo:

“Fazer as perguntas numa ordem distinta da exigida pela conclusão que dela pretendemos, com mudanças de todo gênero” (p. 141).

Mota:

“Não fazer as perguntas na ordem exigida pela conclusão a ser extraída delas, mas com todos os tipos de deslocamentos”.

E Vieira:

“As perguntas não são feitas na ordem que a inferência a extrair delas requer, mas em todos os tipos de transposições”.

Repare que Schopenhauer fala de uma conclusão extraída de perguntas, no plural. Por isso, o correto seria “delas” – como fazem Garzón, Mota e Vieira. Jactando-se fazer um “esforço de compreensão propriamente filosófica”, “graças a Deus, porque não sou filólogo” (p. 24), Olavo claudica aqui até na concordância.

Em relação à edição espanhola – publicada antes, vale destacar –, o restante da tradução de Olavo parece seguir os mesmos procedimentos: muda-se aqui e ali uma ordem de predicados, troca-se “razão” por “fundamento”, esquece-se de um destaque em itálico, mas o texto nunca se descola substancialmente da versão de Garzón. Da comparação dos dois textos – e de sua discrepância com outras traduções – a autenticidade do trabalho do inverossímil “guru” é no mínimo eclipsada.

É certo que existem casos célebres de traduções indiretas. Nos anos 1940, assumidamente, Rachel de Queiroz traduziu duas obras de Dostoiévski a partir de edições francesas. Na coleção Os Pensadores, o volume de Aristóteles que contém a Ética a Nicômaco estampa nitidamente em seu frontispício: “Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Ross”. É o que se deve fazer quando se produz uma tradução indireta – além de, é claro, pedir a autorização para os detentores dos direitos da obra.

Pois os incisos i e xi do artigo 7º da Lei de Direitos Autorais (LDA) estabelecem que são obras intelectuais protegidas pela lei: “i – os textos de obras literárias, artísticas ou científicas”; e “xi – as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova”. Como Schopenhauer morreu em 1860, há mais de 70 anos, suas obras são de domínio público (LDA, art. 41). Mas, suas traduções mais recentes, não. O artigo 29 da mesma LDA determina que “depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades”, tal como “iv – a tradução para qualquer idioma”. A citação de algumas passagens – como fiz acima – não constitui uma ofensa à LDA, já que são apenas recortes e “o nome do autor e a origem da obra” são indicados (art. 46). Porém, quando se trata da reprodução integral de uma obra, a lei é categórica:

Art. 33. Ninguém pode reproduzir obra que não pertença ao domínio público, a pretexto de anotá-la, comentá-la ou melhorá-la, sem permissão do autor.

Parágrafo único. Os comentários ou anotações poderão ser publicados separadamente.

É curioso que – en passant – Olavo assume que “Introdução e Comentários nasceram de simples notas de leitura à margem da tradução espanhola de Dionísio Garzón; depois os conferi com o original, com a ajuda de minha querida amiga Daniela Spínola P. Caldas, professora de língua alemã” (p. 26). Fica claro, então, que a inspiração de Olavo foi o trabalho de Garzón. Mas por que ele pediria ajuda para revisar sua introdução e comentários (“os conferi com o original”), escritos em português, a alguém que conhece o idioma alemão? Por que, em nenhum momento, a fonte da tradução é indicada de maneira explícita? Garzón, de sua parte, deixa claro (p. 13) que se baseou na edição de Hübscher. Olavo nem mesmo menciona a obra original na ficha catalográfica.

Conjecturas à parte, ocorreu-me a possibilidade de que, para fazer sua tradução extremamente similar à de Garzón, Olavo tenha pedido autorização à editora madrilenha EDAF. Liguei para lá, então, e, depois de conversar com algumas pessoas, recebi a seguinte mensagem:

“lhe confirmo que nossa edição de El arte de tener razón foi traduzida diretamente do alemão por Dionisio Garzón, em virtude de um contrato que data de 6 de fevereiro de 1996. Em dito contrato, o Sr. Garzón se encarregava também da realização de um prólogo e um estudo da obra. Tanto a cessão da tradução, quanto do prólogo e do estudo são de caráter exclusivo. Revisando nossos arquivos, não nos consta de nossa parte que se tenha cedido nenhum dos três a alguma pessoa ou entidade no Brasil.”

Posteriormente galhardeado com a Ordem de Rio Branco, Olavo – ironicamente, creio eu – fala algo sobre “patifaria intelectual” (p. 23). Para que o leitor tire suas próprias conclusões, apresento a seguir mais uma passagem comentada de ambas as traduções, seguida das duas implacáveis comparações.

Outras três observações: 1) Olavo defenestrou o “espinosismo” da lista de Schopenhauer; 2) a tradução de Olavo ignora a ocorrência de “entgegenstehende” (sigo a edição disponível aqui), traduzida para o espanhol como “contraria a nosotros”; “que nos seja contrária”, por Mota; e “confrontado com”, por Vieira; 3) em português, “arianismo” – a doutrina de Ário, o padre alexandrino dos séculos iii e iv – se escreve com um único “r”, curiosamente, o mesmo ocorre em alemão: “Arianismus”, ao passo que, em espanhol, o próprio nome é diferente: “Arrio” (e, consequentemente, “arrianismo”).


Esse artigo também foi publicado no site da Carta Capital

Sobre os autores

é professor da UENP, graduado em filosofia pela PUC-SP e doutor em filosofia pela USP.

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