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Não podemos mais renunciar a disputa do futuro

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Conversamos com a atriz Maria Marighella sobre a sua trajetória, o filme que retrata o legado revolucionário de seu avô e por que ela decidiu se tornar vereadora pelo PT no meio da pandemia e da ascensão do neofascismo.

UMA ENTREVISTA DE

Sofia Schurig

Maria Marighella nasceu em um ambiente de luta. Em meio a ditadura militar, a neta de Carlos Marighella cresceu e se tornou atriz, se formando em Artes Cênicas na Universidade Federal da Bahia, na cidade de Salvador.

Hoje, ela atua na cidade soteropolitana como vereadora pelo Partido dos Trabalhadores (PT), assumindo seu primeiro mandato em 2021, em meio a pandemia e o governo da extrema direita. 

A arte que transcende de Maria Marighella faz com que ela não seja somente uma parlamentar, tampouco somente a neta de uma das figuras históricas mais radicais do país, mas uma artista que utiliza da arte e seus ensinamentos para transformar o ambiente da política em algo menos hostil para todos nós.


SS

Como foi seu processo de formação política e artística? 

MM

Nasci em 1976, em plena ditadura militar. Meu pai havia sido preso na Operação Radar, comandada pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, no ano anterior, meu avô havia sido assassinato anos antes, e minha mãe estava grávida. Logo, nasci naquele centro nervoso do que são as violações de direitos, do que é a violência de Estado, do que marcava aquele ciclo político. Meus primeiros anos são totalmente atravessados por essa experiência política, então morei na casa de minha avó materna com minha mãe após a prisão do meu pai, nasci ali. 

Tive que agenciar essa vida, entre a suposta naturalidade e normalidade de uma família, contra a violência profunda que atravessava aqueles anos. Então, com muito pouco tempo eu já ouvia aquelas palavras, Anistia, Diretas Já… Por isso não houve um único momento. A minha experiência política se dá pela soma de diversos momentos nesses 45 anos de vida. São mais processos do que momentos. Eu me sinto em formação política há 45 anos. 

Obviamente, nesses anos há marcos, momentos, idas e vindas, não só de mergulho na vida política, mas de renúncias. A minha infância foi estar na política e viver na política. Foi extremamente violento, não foi uma coisa tranquila. 

Meu pai foi deputado em 1982 aqui na Bahia, o ano da minha alfabetização, e aquilo de “perder meus pais” no ano da minha alfabetização foi um momento de atravessamento. Escuto meu filho muitas vezes chorando e falando “eu não estou aprendendo nada”. Então são ciclos. Sinto a política não como um evento, mas como uma ancestralidade, algo transcendente. 

SS

Houve alguma história específica da sua família que te marcou, e agora você leva para sua vida parlamentar? 

MM

Olha, não tem só um dia que eu não pense na minha família. As pessoas me perguntam muito como é ser neta de Marighella e eu digo ser uma sorte. Me perguntam também se é um peso e não é. Marighella não é um peso, Marighella é um chão, algo que sustenta. 

Quando digo isso não é uma mera retórica ou imagem, é porque não tem um dia quando não estou no parlamento em que aquelas palavras — não as que aprendi, mas as que convivi — não estejam perto de mim, me acompanhando. Seus poemas, suas palavras. No 4 de novembro, data de seu assassinato, um grupo me convidou para fazer uma leitura de seus poemas e eu gravei um vídeo dois dias antes, no dia de finados. Eu tinha que fazer muitas coisas durante a campanha e nem conseguia pensar, então pensei:  Ah! Vou abrir algo e ler”. Quando eu abri, era 2 de novembro de 1976. 

O tempo inteiro são muitos atravessamentos, sejam em poemas, falas, escritos. Mas entre tantas coisas, há algo que posso dividir aqui. 

No ano de 2013, em plena Jornadas de Junho, fui para Brasília receber o mandato cassado do meu avô, em um evento simbólico da Câmara para entregar o mandato cassado de comunistas em 1948. Liguei para a minha avó e perguntei o que ela gostaria que eu falasse, e ela disse: “Fale que esses homens amaram o Brasil.” Fui a primeira a falar e enquanto eu atravessava o parlamento, fui observando as caras infames, as caras da exploração do povo brasileiro, do poder, dos usurpadores da democracia. Então fui tomada por uma emoção profunda, e gritei: “Esses deputados, cassados em 1948, amaram o Brasil!”.

Nem era o mesmo parlamento que deu o golpe na Dilma em 2016, mas de algum modo sinto ser uma antevisão das forças antidemocráticas que avançam sobre o parlamento. Essa mesma fala foi a minha participação no filme de Wagner Moura. 

O que quero dizer com isso é que nesses episódios, para nossa família, a política é o que se faz em uma oferenda, um gesto de amor ao próximo. Há quem faça política com essa responsabilidade do amor ao próximo, o amor à sua comunidade. E há quem use o bem comum como privado, como seu. Acredito que o ensinamento é este. Esse amor se renova em mim muitas vezes. 

SS

A participação de sua avó na fundação do PT foi a razão para você ter escolhido esse partido para se candidatar? Ou houve algum outro motivo? 

MM

Esse é um super incentivo. É óbvio que há uma influência dela e de outras grandes personalidades, nasci naqueles anos e fui atravessada pela fundação do partido. Minha avó chegou do exílio e o que ela encontrou como espaço de acolhimento foi o PT, que ela ajuda a fundar, mas é abraçada por aquela experiência e isso está em mim de alguma maneira. 

Existe essa parte da história. Tem uma parte fundamental que é: o PT é uma experiência da redemocratização do Brasil que fala sobre todos nós. Então, o partido — estando nós, dentro dele ou fora dele — integra um legado do processo de redemocratização que sou parte.

Mas havia três desafios. Primeiro, acreditava que me filiando, eu estaria disputando com o antipetismo — entendendo que o antipetismo é uma construção, não uma crítica ao partido, mas uma cultura que abrange todo o campo progressista. Então, acreditava precisar falar sobre ele de dentro, falando para o próprio partido de dentro. 

A segunda é que queria discutir sobre pragmatismo no partido, como muitas vezes o partido tomou posições pragmáticas, conciliatórias, em momentos de graves crises, e dizer: “É momento de um levante, de insurgência. Reconhecendo o legado, mas sobretudo reivindicando uma agenda futura”. Terceiro, falar sobre o pós governismo. É preciso disputar governos e eu quero isto, mas precisamos ter um projeto além dele. 

SS

Como artista, você consegue conciliar a arte e a cultura com a agenda parlamentar? 

MM

Eu sou praticamente vereadora 24 horas. Mergulhei nisso pela urgência de um tempo. Talvez se esse tempo não fosse tão urgente, eu nem me colocaria em um cargo eletivo. Eu me coloquei por este tempo, entendendo uma crise que se manifestou de formas muito amplas em todos os locais. E toda emergência precisa de energia, então praticamente vivo como vereadora. 

Por outro lado, a única coisa que sou de fato, é atriz — sou somente duas coisas, mãe e atriz. Mas estou vivendo como vereadora. O teatro me dá o tempo inteiro esses recursos: a linguagem, o convívio em coletivo, entendendo a política como um local de criação. 

SS

Você foi eleita durante o primeiro ano da pandemia e assumiu o mandato no segundo. Como foi estrear como vereadora nesse momento? Isso impactou os projetos políticos que você tinha em mente? 

MM

Imagine, nós formamos uma equipe de gabinete que por muito tempo não se conhecia pessoalmente — alguns da equipe só vieram se conhecer presencialmente bem recentemente. É algo muito estranho de se imaginar. 

No primeiro mês que começamos a trabalhar, ninguém se encontrava. Assim quando começamos a nos encontrar, começou a onda de março e abril, um período muito violento. Perdemos dois vereadores na Câmara, então voltamos atrás. Tínhamos um pouco de encontro, mas suspendemos a atividade presencial no gabinete. 

Não é simples estrear em um mandato e nem mesmo encontrar a sociedade. Para mim isso foi extremamente violento como processo de estreia, sobretudo porque, entre nossas agendas de luta, há uma agenda de contato, e de repente não tínhamos os instrumentos convencionais. O que você imagina que fará, em um momento muda completamente. 

Tivemos que defender o não retorno às aulas, e é uma bandeira regressiva em comparação ao que defendo. Imaginei que poderia defender a educação integral, e de repente tive que conversar com o campo liberal que defendia a volta às aulas presenciais naquele contexto, contra a volta às aulas. Debater e analisar os dados, e compreender como país não tínhamos como oferecer aquilo foi muito duro. É algo que sofreremos os efeitos como país por muito tempo. 

Por outro lado, aquilo que poderia parecer uma interdição eventual foi fundamental para que nós entendêssemos que aquele mandato, em um momento emergencial, era muito importante. Então, prefiro ficar com a fala, porque é esta que me toca, da importância de mandatos como o nosso, comprometidos com a vida. 

Ter experiências políticas com pautas inegociáveis me deu muita responsabilidade pública. Mesmo com derrotas muito duras que ainda serão sentidas na cidade de Salvador, a possibilidade de não ceder em determinadas agendas me deu uma força muito grande. 

SS

O sucesso do filme de Marighella, mesmo com suas dificuldades para estrear, mostra, principalmente entre os mais jovens, essa renovação política que o Brasil,e a América Latina vive agora? 

MM

Acredito que o sucesso do filme Marighella se dá em primeiro lugar pelo efeito filme. Acredito que o filme conseguiu dialogar. Wagner Moura como diretor queria falar para o povo brasileiro, como artista e ele conseguiu — não ele sozinho, mas como timoneiro dessa ação cultural. Ele tinha esse desejo e ele é um artista que se comunica muito bem, com uma trajetória de saber se comunicar com o seu público. 

O filme tem esse valor da cultura brasileira e ele se encontrou com seu público. O filme possui vários êxitos, acredito também que um deles foi o ato de enegrecer Marighella. Isso foi fundamental. Foi um diretor que dialogou com seu tempo, tomou decisões com o seu tempo. 

Tem o próprio efeito Marighella. Um personagem como ele é sucesso. Quando o Brasil entende que houve homens e mulheres, lutadores, como Marighella, é um reconhecimento com a sua memória. O filme também dá alcance e consegue ampliar essa voz. 

É a história de uma vida singular, absolutamente radical, de um homem que conseguiu feitos ao longo de 40 anos de sua vida política. Jovem, poeta, estudante, insurgente, deputado, cassado, clandestino, torturado — e ele ainda escrevia poemas e fazia manifestos. A capacidade de Marighella de ler o Brasil é o que faz ele se conectar tanto com o público. 

E por fim, há o modo como um povo dignifica sua própria história. Acredito que estamos fazendo isso agora, nos encontrando com esse filme, para gritar e dignificar esse tema. Essa peça nos dignifica diante um ato tão indigno da violência, tortura, da força armada do Estado, do autoritarismo. Esse conjunto de coisas torna o filme não só um sucesso, mas dá um sentido, sobre produzir diálogos. 

SS

Que cena do filme mais te marcou?

MM

Há uma cena do filme em que faço a cena com Carlinhos, o garoto. Em uma retrospectiva, eu estou com o menino quando ele vê a imagem de seu pai morto se formando na sua frente. E aquela cena existiu realmente. Meu pai foi levado a uma redação de jornal, e naqueles anos eles tinham aquelas máquinas onde você enviava uma foto e ela saia pela outra máquina, como um fax. Ele viu seu pai, reconheceu seu pai morto. 

Com isso, ele tomou a decisão com o tio de ir a São Paulo, enterrar seu pai. Isso está na capa da revista Manchete, daquele ano. E diziam para ele não ir, porque poderia ser perigoso, ser preso, ter reação dos militares, mas ele tomou a decisão de ir. 

Naquele gesto, quando tomamos a decisão de enterrar seu morto para dignificar a indignidade da violência. Diante a violência mais brutal, havia uma dignidade humana, que era enterrar e enfrentar com bravura. Digo isso porque a memória, produzir memórias de figuras políticas públicas é dar dignidade a uma nação ante os processos mais indignos de violações de direitos. Essa cena me marca muito. 

SS

Você acredita que a arte poderá nos auxiliar no ano de 2022, de uma forma emocional? 

MM

Quando falei que a minha vida sempre esteve ligada a política e que tudo aquilo quando eu era criança parecia muito violento, foi o momento em que comecei a fazer teatro. Eu dizia fazer teatro para ter os meus próprios problemas e ter uma vida normal, porque na minha casa, os únicos problemas que cabiam eram os problemas coletivos, sociais. Ali não havia espaço para as minhas angústias. 

O Brasil tem uma experiência cultural muito rica, foi através da cultura que povos vilipendiados conseguiram se afirmar. Foi através da cultura que sujeitos escravizados conseguiram se afirmar como povo no processo de colonização, e, após isso, conseguindo a emancipação. Não consigo observar o mundo sem cultura, observar a política sem cultura, observar a sociedade sem cultura. É aquilo comum a todas as pessoas. É uma mágica em um país tão dividido. 

Ao mesmo tempo, nós não temos um conjunto de políticas públicas que possam dar conta do tamanho do patrimônio cultural no Brasil. Como parlamentar, vejo que as políticas públicas de cultura estão intimamente ligadas a processos de emancipação política. O próprio Ministério da Cultura, na Constituição de 1988, é um símbolo do processo de redemocratização do Brasil — uma espécie de marco do que a cultura representou para a emancipação do país. A própria Fundação Palmares é de 1988, dialogando muito com o processo constitucional no país. A cultura vai dar essa vitória para nós novamente, ao lado do povo, da justiça. 

SS

Há algum comentário de inspiração que você gostaria de dar aos jovens para levarem a 2022? 

MM

Só ocupa quem deseja. Nós precisamos ocupar a política e lutar pela democracia. Enquanto não estamos ali, deixamos justamente para aqueles que querem tomar a democracia para si. Para mim, é muito tático que o Brasil tenha formado gerações que enxerguem a política como um lugar hostil — para mim a Câmara é um lugar hostil, quando vou para lá, muitas vezes parece que preciso disputar espaço com outros. 

Mas quando ocupamos, prometemos tornar aquele lugar hostil em um ambiente melhor para outras pessoas, outros indivíduos que querem um lugar acolhedor na política. A juventude brasileira não pode mais renunciar a disputa do amanhã. Nós estamos disputando o hoje, e o amanhã não está dado. Disputar esse amanhã é disputar a política. Isso se faz não só no parlamento, mas nos movimentos estudantis, na universidade, na praça pública. Precisamos tirar a política dos espaços institucionais, tudo pode ter um componente de transformação. 

Esse novo tempo precisa da juventude. Precisamos ocupar, sob pena de não participarmos desse Brasil de amanhã.

Sobre os autores

é atriz e vereadora pelo PT em Salvador.

Sofia Schurig

cobre tecnologia, redes sociais e extremismo online. É graduanda em Comunicação Social na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisa semiótica e humanidades digitais. Trabalha na Sabiá e no Núcleo Jornalismo, onde é repórter. Na Jacobin, cuida das seções de Tecnologia e Ciências.

Cierre

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Published in América do Sul, Arte, Cultura, Entrevista, FORMATO and Política

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