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Uma reunião de trabalhadores em Petrogrado, julho de 1920. Wikimedia Commons.

O Estado e a Revolução de Vladmir Lenin

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Tradução
Alejandro Garcia

O sociólogo marxista britânico Ralph Miliband nasceu neste dia em 1924. Para celebrar, publicamos seu ensaio sobre o clássico panfleto do maior revolucionário bolchevique que toca no calcanhar de Aquiles do marxismo: o exercício do poder socialista.

Karl Marx ficou famoso por proclamar a necessidade de “esmagar” o Estado burguês. Mas o que significa isso na prática? Se o nosso objetivo é um socialismo democrático e não burocrático, então, que tipo de Estado nos devemos lutar?

A procura por esta resposta nos leva frequentemente ao livro O Estado e a Revolução, de Vladmir Lênin, onde o famoso revolucionário fala convictamente em transformar o “Estado de burocratas” em um “Estado de trabalhadores armados”.

Nest ensaio, Ralph Miliband, o lendário marxista britânico, oferece uma avaliação crítica do pequeno livro de Lênin e explica o porquê “de o exercício do poder socialista continuar a ser o calcanhar de Aquiles do marxismo”. Publicado pela primeira vez em 1970, este ensaio continua sendo a leitura mais incisiva disponível sobre O Estado e a Revolução.


O Estado e a Revolução é justificadamente considerado como uma das obras mais importantes de Lênin. Aborda questões cruciais para a teoria e prática socialista e nenhuma destas perdeu sua relevância — pelo contrário. E como um mapa da teoria marxista de Estado, tanto antes e particularmente após a conquista do poder, tem, por ter sido escrito por Lênin, gozado de um estatuto excepcionalmente confiável por sucessivas gerações socialistas. Muito utilizado nos últimos anos, uma vez que o seu espírito e substância pode ser invocado imediatamente contra as experiências hiper-burocráticas de regimes de estilo russo como contra os partidos comunistas atuais. De forma breve, por razões intrínsecas e circunstanciais é, de fato, um dos “textos sagrados” do pensamento marxista.

Entretanto, “textos sagrados” não fazem parte do espírito marxista ou pelo menos não deveriam fazer; e isto por si só é razão suficiente para submeter O Estado e a Revolução a uma análise crítica. Mas há ainda uma outra e mais específica razão para levar a cabo esta análise, uma vez que esta obra é normalmente vista, dentro da tradição marxista, como capaz de prover soluções teóricas e, certamente, práticas para todas as questões importantes no exercício do poder socialista.

A minha própria leitura sugere, se é que é importante, uma conclusão bastante diferente: ou seja, que O Estado e a Revolução, além de estar longe de resolver os problemas com os quais diz tratar, apenas serve para sublinhar a sua complexidade e enfatizar algo cuja experiência de mais de um século e meio tem, em todos os casos, fortemente — e tragicamente — servido para confirmar que o exercício do poder socialista continua a ser o calcanhar de Aquiles do marxismo. Em um ano que irá testemunhar a legítima celebração do génio e proezas de Lênin, não pode faltar uma apreciação crítica de O Estado e a Revolução. Porque é apenas sondando as falhas no argumento que ele apresenta que a discussão das questões que são fundamentais ao projecto socialista pode avançar.

O ponto principal sobre o qual todo o argumento de Lênin assenta, e ao qual ele volta uma e outra vez, deriva de Marx e Engels. Uma vez que todas as revoluções anteriores haviam “aperfeiçoado” a máquina do Estado, “a classe trabalhadora simplesmente não se pode agarrar à maquinaria estatal e usá-la para os seus propósitos”; mas sim, em vez disso, deve esmagar, partir, destruir essa maquinaria.

A principal importância que Lênin coloca nesta ideia tem sido geralmente associada a ideia de que O Estado e a Revolução é uma proposta para contrapor uma revolução violenta a uma “transição pacífica”. Não é isso. A contraposição é certamente importante e Lênin acreditou (por acaso muito mais categoricamente que Marx) que a revolução proletária não se poderia lograr salvo por meios violentos. Mas como Lucio Collettti recentemente observou,

A polémica de Lênin não está dirigida contra aqueles que não desejam a tomada do poder. O objeto do seu ataque não é o reformismo. Pelo contrário, está dirigido contra aqueles que desejam a tomada do poder mas não pensam, também, na destruição do velho Estado.

“Pelo contrário” na citação acima é demasiado forte: Lênin está também argumentando contra o reformismo. Mas é totalmente verdade que a sua principal preocupação no O Estado e a Revolução é atacar e rejeitar qualquer conceito de revolução que não tome literalmente as ideias de Marx de que o Estado burguês deve ser esmagado.

A questão óbvia e crucial que isso levanta é que tipo de Estado pós-revolucionário sucederá ao Estado burguês esmagado. Pois é claro que um dos princípios básicos do marxismo, e uma de suas diferenças básicas com o anarquismo, é que, embora a revolução proletária deva destruir o antigo Estado, ela não abole o próprio Estado: um Estado permanece existindo e até pode perdura por muito tempo, mesmo que comece imediatamente a “debilitar-se”. O que é mais notável sobre a resposta que Lênin dá à questão da natureza do Estado pós-revolucionário é o quão longe ele leva o conceito de “definhamento” do Estado em O Estado e a Revolução: até agora, de fato, que o Estado, no dia seguinte à revolução, não apenas começou a definhar, mas já está em um estágio avançado de decomposição.

Isto, deve ser assinalado imediatamente, não significa que o poder revolucionário deva ser fraco. Pelo contrário, Lênin nunca se esquece de insistir que este deve ser de fato bastante forte e que deve permanecer forte por um longo período de tempo. O que significa, na verdade, é que este poder não é exercido pelo Estado no sentido comum da palavra, separado e distinto órgão de poder, mas “democrático”; porém o “Estado” passou de um “Estado de burocratas” a um “Estado de trabalhadores armados”. Isto, “apesar de tudo ser uma máquina de Estado”, mas “na forma de trabalhadores armados que avançam no sentido de criar uma milícia envolvendo toda a população”. Novamente, “todos os cidadãos são transformados em empregados contratados pelo Estado, que consiste em trabalhadores armados”; e novamente, “o Estado, que é o proletariado armado e organizado como classe governante”. Idênticas ou similares formulações ocorrem no ambiente de trabalho.

Vladimir Lenin, março de 1919. Wikimedia Commons

Em A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, escrita após a tomada do poder Bolchevique, Lênin rejeita ferozmente a visão de Kautsky de que a classe “pode apenas dominar mas não governar”. “Está igualmente tudo errado,” escreveu Lênin, “dizer que uma classe não pode governar. Tal absurdo pode apenas ser pronunciado por um parlamentar cretino que não vê nada além de parlamentos burgueses, que não percebeu nada para além dos ‘partidos governantes’”.

O Estado e a Revolução se baseia precisamente na noção de que o proletariado pode “governar”, e não apenas “dominar”, e que deve fazê-lo se a ditadura do proletariado é mais do que um slogan. “A revolução,” escreve Lênin, “consiste não em uma nova classe comandando e governando com a ajuda da velha máquina do Estado, mas uma classe que o fará esmagando essa máquina e comandando e governando com a ajuda de uma nova máquina. Kautsky confunde essa ideia básica do marxismo, ou ele não a entende de jeito nenhum”. Essa nova “máquina”, como aparece em O Estado e a Revolução, é o Estado dos trabalhadores armados. O que ele está descrevendo aqui, ao que parece, é um governo de classe não mediado, uma noção muito mais associada ao anarquismo do que ao marxismo.

Isso precisa ser analisado. Mas o que é mais impressionante ainda em O Estado e a Revolução é o quão pouco precisa ser analisado, para entender o que estou proponho mostrar.

Lênin ataca duramente os anarquistas e insiste na necessidade de manter o Estado no período da ditadura do proletariado. “Não somos utópicos,” escreve, “não ‘sonhamos’ em dispensar imediatamente toda a administração e subordinação”. E depois continua:

A subordinação, porém, deve ser à vanguarda armada de todos os explorados e trabalhadores, ou seja, ao proletariado. Um começo pode e deve ser feito de uma só vez, da noite para o dia, para substituir a “chefia” específica de funcionários do Estado pelas funções simples de “capatazes e contadores”, funções que já estão totalmente dentro da capacidade do habitante médio da cidade e pode muito bem ser executado por salários de operários. Nós, os trabalhadores, devemos organizar a produção em grande escala com base no que o capitalismo já criou, contando com nossa própria experiência como trabalhadores, estabelecendo uma disciplina rígida e férrea respaldada pelo Estado dos trabalhadores armados. Reduziremos o papel dos funcionários do Estado para simplesmente cumprir nossas instruções como “capatazes e contadores” responsáveis, revogáveis e moderadamente pagos (claro, com a ajuda de técnicos de todos os tipos e graus).

Está claro que algum tipo de oficialismo continua a existir, mas está igualmente claro que funciona sob a mais rigorosa e contínua supervisão e controlo dos trabalhadores armados; e os oficiais do Estado, tal como Lenin assinala repetidamente, são revogáveis em qualquer momento. Os burocratas, neste ponto de vista, não são abolidos totalmente; mas são reduzidos ao papel de subordinados na sua totalidade à execução da vontade popular, tal como esta é expressada pelos trabalhadores armados.

Quanto à segunda principal instituição do velho Estado, o Exército, é substituída, nas palavras citadas anteriormente, por trabalhadores armados que avançam no sentido de formar uma milícia que envolve toda a população.

Consequentemente, as duas instituições que Lenin via como “as mais características” da máquina de Estado burguesa acabavam de ser radicalmente reformuladas: uma delas, a burocracia, é drasticamente reduzida em tamanho e o que resta dela é totalmente subjugada pela supervisão directa popular, apoiada pelo poder da revogação imediata; enquanto a outra, o Exército, é de fato abolido.

Mesmo assim, sublinha Lenin, o Estado centralizado não é abolido. Mas toma a forma de “centralismo voluntário, do amalgama voluntária das comunas na nação, da fusão voluntária das comunas proletárias com o propósito de destruir o governo burguês e a máquina do Estado burguês”.

Também aqui, as questões óbvias dizem respeito às instituições através das quais a ditadura do proletariado pode ser expressada. Lenin fala em O Estado e Revolução “de uma ‘substituição gigantesca’ de certas instituições por outras instituições de um tipo radicalmente diferente”. Mas, O Estado e a Revolução tem, na verdade, pouca coisa a dizer sobre as instituições, salvo algumas breves referências aos Sovietes de Deputados de Trabalhadores e Soldados.

Lenin reserva alguns dos seus especiais epítetos para uma forma de instituição representativa, nomeadamente “o podre e venal parlamentarismo da sociedade burguesa”. No entanto, “a saída do parlamentarismo não é, claro está, a abolição das instituições representativas nem do princípio da eleição, mas sim a conversão das instituições representativas em menos falatório e mais “grupos de trabalho”. As instituições que incorporam este princípio são, tal como já foi referido, os Sovietes de Deputados de Trabalhadores e Soldados.

Em uma ocasião, Lenin afirma que “a simples organização de pessoas armadas (tais como os Sovietes de Deputados de Trabalhadores e Soldados…); e em outra, a conversão de todos cidadãos em trabalhadores e outros empregados a um ‘sindicato’ gigantesco — todo o Estado — e a total subordinação de todo o trabalho deste sindicato a um Estado genuinamente democrático, o Estado dos Sovietes de Deputados dos Trabalhadores e Soldados”; E a terceira referência é na forma de pergunta: “Kautsky revela uma ‘reverência supersticiosa’ aos ‘ministros’; mas por que eles não podem ser substituídos, por exemplo, por comités de especialistas trabalhando sob a soberania de onipotentes Sovietes de Deputados dos Trabalhadores e Soldados?”

Deve ser assinalado, no entanto, que os Sovietes são “soberanos e onipotentes” em relação ao “comité” que Lenin refere. No que diz respeito aos seus constituintes, os deputados são sujeitos a revogação a qualquer momento: a “representação” deve estar aqui concebida como operando dentro dos estreitos limites determinados pelo governo popular.

O “Estado” que Lenin fala em O Estado e a Revolução é portanto um Estado em que o Exército deixa de existir. Onde o que resta do oficialismo passa a estar totalmente subordinada aos trabalhadores armados; e onde todos os representantes desses trabalhadores armados estão similarmente subordinados. É este “modelo” que parecia justificar a discordância que o “Estado”, que expressa a ditadura do proletariado, esteja no dia seguinte a revolução em um Estado avançado de decomposição.

Os problemas que isto levanta são enormes e o fato de que estejam todos ignorados, em O Estado e a Revolução, não podem ficar fora de consideração em uma análise realista do assunto.

O primeiro destes problemas é o da mediação política do poder revolucionário. Com isto quero dizer que a ditadura do proletariado é obviamente inconcebível sem algum grau de articulação política e liderança e isto implica uma organização política. Mas o fato extraordinário, dada a estrutura de pensamento de Lenin, é que o elemento político que ocupa um lugar tão crucial no seu pensamento, ou seja, o partido, receba tão escassa atenção em O Estado e a Revolução.

Há três referências ao partido na obra, duas das quais sem relação direta sobre a questão da ditadura do proletariado. Uma delas é uma observação casual relativa à necessidade do partido se envolver na luta “contra a religião que estupidifica as pessoas”; a segunda, igualmente casual, assinala que “ao revisar o programa do nosso partido, devemos por todos os meios ter em consideração os conselhos de Engels e Marx de maneira que chegue mais perto da verdade, para restaurar o marxismo, livrando-o das suas distorções e para guiar a luta da classe trabalhadora à sua emancipação de uma forma mais correta”. A terceira e mais relevante referência é como se segue: “Ao educar os trabalhadores do partido, o marxismo educa a vanguarda do proletariado, capaz de assumir o poder e liderar todo o povo em direção ao socialismo, de dirigir e organizar o novo sistema, de ser o professor, o guia e o líder de todos os trabalhadores e explorados e de organizar a sua vida social sem a burguesia e contra a burguesia.”

Não fica inteiramente clara com esta passagem se é o proletariado que é capaz de assumir o poder, liderar, dirigir, organizar etc.; ou se é a vanguarda do proletariado, como por exemplo o partido dos trabalhadores, que é aqui designado. Ambas interpretações são possíveis.

Por um lado, a questão da liderança política é deixada totalmente em suspenso. Deve ser recordado que também foi deixada por Marx nas suas considerações sobre a Comuna de Paris e a ditadura do proletariado. Mas não é algo que pode, para mim, ser deixado em suspenso na discussão do governo revolucionário — salvo em termos de uma teoria que constitui apenas uma evasão do problema em vez da sua resolução.

Por outro lado, a segunda interpretação, que encaixa melhor com tudo o que sabemos da análise de Lenin da importância do partido, serve apenas para levantar a questão sem lidar com ela. Essa questão é obviamente primordial para que se entenda totalmente o sentido do conceito de “ditadura do proletariado”: qual é a relação entre o proletariado, cuja ditadura a revolução está sentenciada a estabelecer, e o partido que educa, lidera, dirige, organiza etc.?

É apenas na base de uma relação simbiótica e orgânica entre os dois que a questão desaparece completamente; mas apesar desta relação ter existido entre o Partido Bolchevique e o proletariado russo nos meses que precedem à Revolução de Outubro, exatamente quando Lenin escreveu O Estado e a Revolução, a assimilação de que este tipo de relacionamento possa ser tomada como um fato automático e permanente pertence apenas à retórica de poder e não à sua realidade.

Se é o partido ou o proletariado que é, na passagem acima citada, designado para liderar toda a população em direcção ao socialismo, o fato é que Lenine afirmou, claramente, o papel central do primeiro assim que os Bolcheviques tomaram o poder. Na verdade, em 1919 estava impondo a sua orientação política de forma exclusiva. “Sim, a ditadura de um partido!” disse ele certa altura: “Estamos baseados [no partido] e não nos podemos afastar desta base, uma vez que este partido ao longo de décadas ganhou para si mesmo a posição de vanguarda de todo o proletariado fabril e industrial.” De fato, “a ditadura da classe trabalhadora é levada a cabo pelo Partido Bolcheviques que, desde 1905 ou ainda antes, vem se unindo a todo proletariado revolucionário.”

Mais tarde, tal como E. H. Carr igualmente assinala, ele descreve uma tentativa de distinção entre a ditadura de classe e a ditadura do partido como prova de uma “inacreditável confusão de pensamento”; e em 1921, declarava-se abertamente contra os criticismos da Oposição Operária afirmando que “… a ditadura do proletariado é impossível exceto através do Partido Comunista.”

Lenin e outro partido celebram o segundo aniversário da Revolução de Outubro em Moscou. Wikimedia Commons

Este pode bem ter sido o caso, mas é óbvio que é um “modelo” totalmente diferente no exercício de poder revolucionário daquele apresentado em O Estado e a Revolução e que transforma radicalmente o significado associado à “ditadura do proletariado”. No mínimo levanta da forma mais acentuada possível a questão da relação entre o partido governante e o proletariado. Tampouco é o partido que está aqui em questão, mas sim a liderança do partido, de acordo com aquela grande dinâmica que Trotsky tinha profeticamente sublinhado após a cisão do Partido Operário Social Democrata Russo entre os Bolcheviques e Mencheviques, alertando que “a organização do partido [no caucus] inicialmente substitui o partido como um todo; depois o Comitê Central substitui a organização; e finalmente um único ‘ditador’ substitui o Comitê Central…”

Durante um tempo após a revolução, Lenin conseguiu crer e declarar que não havia conflito entre a ditadura do proletariado e a ditadura do partido; e Stalin viria a fazer dessa declaração a base e legitimação da sua própria governança absoluta. No caso de Lenin, muito poucas coisas são uma medida tão significativa de sua grandeza como a que teve, enquanto estava no poder, para questionar essa identificação e estar obcecado pela ideia de que esta não pode ser assumida como garantida. Ele podia muito bem, como os seus sucessores o fizeram, tentar esconder de si mesmo a dimensão da disparidade entre a afirmação e a realidade: que ele não o fez e que morreu bastante perturbado não é a parte menos importante do seu legado, no entanto não é a parte do seu legado que é mais provável de ser evocado e muito menos celebrada no país da Revolução Bolchevique.

Claro que é muito tentador atribuir a transformação da ditadura do proletariado, tal como apresentada em O Estado e a Revolução em uma ditadura do partido, ou melhor dos seus líderes, às circunstancias particulares da Rússia após 1917 — ao atraso, guerra civil, intervenções estrangeiras, devastação, privações massivas, insatisfação popular e o malogro de outros países em frear a revolução.

A meu ver, tem que se resistir a essa tentação. Claro que as circunstancias adversas com que os Bolcheviques tiveram que lidar foram reais e bastante opressivas. Mas iria argumentar que estas circunstancias apenas agravaram, ainda que certamente a um grau extremo, um problema que em qualquer caso é inerente ao conceito de ditadura do proletariado.

O problema é levantado porque essa ditadura, mesmo nas circunstancias mais favoráveis, não é realizável sem mediação política; e porque a necessária a introdução da noção de mediação política no “modelo” afeta consideravelmente este último, para dizer o mínimo. Este é particularmente o caso se a mediação política é concebida em termos de uma governança de um único partido. Para tal governança, mesmo que o “centralismo democrático” seja muito mais flexível do que alguma vez o tenha sido na prática, torna muito mais difícil, e pode excluir, a institucionalização do que pode ser chamado, de forma inexata, de “pluralismo socialista”.

Isso é excepcionalmente difícil de conseguir e pode até ser impossível na maioria das situações revolucionárias. Mas é bom reconhecer que, a menos que a provisão adequada seja feita para os canais alternativos de expressão e articulação política, que o conceito de governo de partido único exclui por definição qualquer conversa sobre democracia socialista.

O governo de partido único postula uma vontade proletária revolucionária e indivisa, da qual é a expressão natural. Mas este não é um postulado razoável sobre o qual apoiar a “ditadura do proletariado”: em nenhuma sociedade, por mais constituída que seja, existe uma vontade popular única e indivisa. É precisamente por isso que surge o problema da mediação política. O problema não precisa ser considerado insuperável. Mas a sua resolução exige, para começar, que pelo menos seja reconhecido.

A questão do partido, porém, traz de volta à questão do Estado. Quando Lenin disse, no caso da Rússia, que a ditadura do proletariado era impossível exceto através do Partido Comunista, o que ele também deu a entender foi que o partido deve infundir sua vontade e assegurar seu domínio sobre as instituições que tinham, no O Estado e Revolução, designada como representante dos trabalhadores armados.

Em 1921, ele observou que “como o partido do governo, não podíamos deixar de fundir as ‘autoridades’ soviéticas com as ‘autoridades’ do partido – conosco elas estão fundidas e o serão”; e em um de seus últimos artigos no Pravda, escrito no início de 1923, ele também sugeriu que “a união flexível da União Soviética com elementos partidários”, que havia sido uma “fonte de enorme força” na política externa “estará no seu lugar se for aplicado a todo o nosso aparelho de Estado”.

Mas isso significa que, se o partido deve ser forte, o mesmo deve ser feito com o Estado que é seu órgão de governo. E, de fato, já em março de 1918, Lenin estava dizendo que “por enquanto, defendemos incondicionalmente o Estado”; e à pergunta que ele mesmo colocou: “Quando o Estado começará a definhar?” ele deu a resposta: “Teremos tempo para realizar mais de dois congressos antes de podermos responder isso, veja como nosso Estado está morrendo. Até então, é muito cedo. Proclamar com antecedência a extinção do Estado será uma violação da perspectiva histórica.”

Em certo sentido, isso é perfeitamente consistente com O Estado e a Revolução no sentido de que Lenin sempre imaginou que existisse um grande poder após a revolução ter sido alcançada. Mas é inconsistente no sentido de que ele também, em O Estado e a Revolução, previu que esse poder fosse exercido, não pelo Estado como comumente entendido, mas por um “Estado de trabalhadores armados”. Certo é que o Estado de que falava depois da revolução não era o Estado de que falava quando escreveu O Estado e a Revolução.

Também aqui acredito que simplesmente atribuir a incoerência às condições russas particulares que enfrentaram os bolcheviques é insuficiente. Pois me parece que o tipo de governo popular quase não mediado que Lenin descreve na obra pertence à quaisquer que sejam as circunstâncias em que a revolução ocorra, a um futuro bastante distante, no qual, como o próprio Lenin disse, “a necessidade da violência contra as pessoas em geral, da subordinação de um homem a outro e de um segmento da população a outro, desaparecerá por completo, pois as pessoas se acostumarão a observar as condições elementares da vida social sem violência e sem subordinação”. Até então, um Estado perdura, mas não é provável que seja o tipo de Estado de que fala Lenin em O Estado e a Revolução: é um Estado sobre o qual não é necessário usar aspas.

No trato de Lenin sobre esse assunto, pelo menos em O Estado e a Revolução, dois “modelos” de Estado são contrapostos da forma mais nítida possível: ou existe o “velho Estado”, com seu aparelho repressivo militar-burocrático, ou seja, o Estado burguês; ou existe o tipo “transitório” de Estado da ditadura do proletariado que, como argumentei, quase não é um Estado. Mas se, como creio, este último tipo de “Estado” representa, no dia após uma revolução e por muito tempo depois, um atalho que a vida real não permite, as formulações de Lenin servem mais para evitar do que para ir ao encontro fundamental desta questão, que está no centro do projeto socialista, ou seja, o tipo de Estado, sem aspas, que é congruente com o exercício do poder socialista.

A esse respeito, é preciso dizer que o legado de Marx e Engels é um pouco mais incerto do que o de Lênin. Ambos, sem dúvida, conceberam como uma das principais tarefas, na verdade a principal tarefa da revolução proletária, “esmagar” o velho Estado; e também é perfeitamente verdade que Marx disse sobre a Comuna de Paris que era “a forma política finalmente descoberta sob a qual trabalhar a emancipação econômica do trabalho”. Mas não é irrelevante notar que, dez anos após a comuna, Marx também escreveu que “muito além do fato de que esta foi apenas a ascensão de uma cidade em condições excepcionais, a maioria da Comuna não era de forma alguma socialista, nem poderia ser”.

É claro que Marx nunca descreveu a comuna como a ditadura do proletariado. Apenas Engels o fez, no prefácio de 1891 à Guerra Civil na França:

Ultimamente, o filisteu social-democrata mais uma vez se encheu de terror salutar com as palavras “Ditadura do Proletariado”. Muito bem, senhores, querem saber como é esta ditadura? Veja a Comuna de Paris. Essa foi a Ditadura do Proletariado.

Mas no mesmo ano, em 1891, Engels também disse, em sua Crítica do esboço do programa de Erfurt do Partido Social-Democrata Alemão, que “se uma coisa é certa é que nosso partido e a classe trabalhadora só podem chegar ao poder na forma da república democrática. Esta é mesmo a forma específica da ditadura do proletariado, como já mostrou a Grande Revolução Francesa…”

Comentando sobre isso, Lenin afirma que “Engels repetiu aqui de uma forma particularmente notável a ideia fundamental que permeia todas as obras de Marx, a saber, que a república democrática é a abordagem mais próxima da ditadura do proletariado”. Mas a “abordagem mais próxima” não é “a forma específica”; e pode-se duvidar que a noção de república democrática com a abordagem mais próxima da ditadura do proletariado é uma ideia fundamental que permeia todas as obras de Marx. Além disso, no prefácio de A Guerra Civil na França, Engels disse do Estado que

na melhor das hipóteses, é um mal herdado pelo proletariado após sua luta vitoriosa pela supremacia de classe, cujos piores lados o proletariado vitorioso terá que cortar o mais rápido possível, assim como na Comuna, até que uma geração se crie em um ambiente social novo e livre para ser capaz de descartar toda as tralhas do Estado.

É com base nessas passagens que o líder menchevique Julius Martov, seguindo Kautsky, escreveu após a Revolução Bolchevique que, ao falar da ditadura do proletariado, Engels não está empregando o termo “para indicar uma forma de governo, mas para designar a estrutura social do poder do Estado”.

Isso me parece uma leitura equivocada de Engels e também de Marx. Pois os dois homens certamente pensavam que a ditadura do proletariado significava não apenas “a estrutura social do poder do Estado”, mas enfaticamente também em “uma forma de governo”; e Lenin está muito mais próximo deles quando fala em O Estado e a Revolução de “uma substituição gigantesca de certas instituições por um tipo fundamentalmente diferente”.

A questão, entretanto, é que, mesmo levando em conta o que Marx e Engels têm a dizer sobre a comuna, eles deixaram essas instituições de um tipo fundamentalmente diferente para serem elaboradas pelas gerações posteriores; e assim, não obstante O Estado e a Revolução, Lenin o fez.

Isso, no entanto, não diminui a importância do trabalho. Apesar de todas as questões que deixa por resolver, carrega uma mensagem cuja a importância da passagem do tempo apenas serviu para demonstrar que o projeto socialista é um projeto antiburocrático, e que em seu cerne está na visão de uma sociedade em que

pela primeira vez na história da sociedade civilizada, a massa da população se levantará para ter um papel independente, não apenas nas votações e eleições, mas também na administração cotidiana do Estado. Sob o socialismo, todos governarão por sua vez e logo se acostumarão a ver mais ninguém governando.

Essa também foi a visão de Marx; e um dos méritos históricos de O Estado e a Revolução é tê-lo trazido de volta à posição de destaque que merece na agenda socialista. Seu segundo mérito histórico é ter insistido que não se deve permitir que isso permaneça uma esperança longínqua e tremeluzente que poderia ser seguramente desconsiderada no presente; mas que sua atualização deve ser considerada como uma parte imediata da teoria e prática revolucionárias.

Argumentei aqui que Lenin superestimou em O Estado e a Revolução até que ponto o Estado poderia “definhar” em qualquer situação pós-revolucionária concebível. Mas pode muito bem ser que assa desintegração foi superestimada no pensamento socialista sobre a condição necessária para a transcendência da “praticidade” cinzenta e burocrática que tão profundamente infectou a experiência socialista do último meio século.

Sobre os autores

foi um proeminente sociólogo marxista e autor de vários livros sobre socialismo e política, incluindo Parliamentary Socialism e The State in Capitalist Society.

Cierre

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Published in Análise, Europa, Livros and Política

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