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De Cartagena, Padilla seguiu com os patriotas para a Jamaica e, posteriormente, para o solo sagrado de todo revolucionário caribenho, o Haiti. Wikimedia Commons.

A fantástica e breve vida de José Prudencio Padilla

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O revolucionário caribenho Jose Prudencio Padilla nasceu neste dia em 1784. Inspirado pela Revolução Haitiana, ele ajudou Simón Bolívar a libertar a Colômbia e a Venezuela - mostrando que a luta multitudinária das classes populares pela democracia radical continua sendo a chave para superar a herança do colonialismo.

O Caribe foi o coração da modernidade. Gênese do capitalismo e da linguagem política que mudaram radialmente o mundo a partir do final do século XVIII, sobre as suas águas transitaram marinheiros, mercadores, grandes negociantes, políticos, agentes coloniais, africanos escravizados, rebeldes, produtos comerciais, como algodão, café, açúcar, anis, peixe, armamento, e, sobretudo, conspirações, sedições e ideias revolucionárias, capazes de subverter a ordem social.

Foi no Caribe que se deu a mais universal das revoluções, quando os “jacobinos negros”, no popular termo do trinidiano C.L.R. James, romperam as correntes coloniais e abriram as veredas do abolicionismo internacional. Haiti, insurgências, multidões, quilombos, guerrilhas, navios mercantes e de guerra, independências, republicanismo e mentalidade revolucionária, com o trágico e o maravilhoso, o Caribe criou o mundo tal qual o conhecemos.

Foi em uma de suas margens, na cidade de Riohacha, norte do atual território colombiano, fronteira entre mares e o deserto de La Guajira, que, no dia 19 de março 1784, nasceu Jose Prudencio Padilla, o mais importante almirante nas lutas patrióticas da América. Desde a ancestralidade, Padilla carregava os laços cosmopolitas da gente caribenha. Filho de um homem negro de São Domingos e de uma mãe indígena do bravio e resistente povo wayuu, ainda pequeno as águas azuis do Caribe lhe cantaram o doce desejo por aventura e liberdade.

Aos 14 anos, já estava alistado como taifeiro na Real Armada Espanhola, onde, rapidamente, chegaria à posição de contramestre. O navio, mais central dos artefatos modernos, encontraria em Padilla um dos seus mais brilhantes tripulantes. A bordo de embarcações, Padilla perambularia pelos mares do Caribe e do Atlântico, conhecendo pessoas, cidades, portos, línguas e ideias, ampliando o seu horizonte de mundo em uma época de rápidas e profundas transformações. Seria mais um da multidão multiétnica tragada pelo caldeirão da Era das Revoluções.

Em 1805, desaguaria no epicentro da geopolítica daqueles dias, a Batalha de Trafalgar. Aprisionado pelos britânicos, permaneceria encarcerado em Portsmouth até 1808, quando regressaria para a América do Sul, mais precisamente a cidade de Cartagena, dali em diante o seu lar definitivo entre uma andança e outra. Na cidade, viveria a experiência da Cartagena Republicana, de 1811-1815, onde se deu o primeiro grito de independência da América Latina. Ali, também, as elites criollas tiveram de dividir o poder com negros e pardos oriundos de Getsemaní, San Diego, Santa Ana e outros bairros populares, para não falar de marinheiros, trabalhadores e corsários afrocaribenhos que povoavam o cotidiano local. Para Padilla, foi sua primeira experiência de um governo levantado sob o princípio da democracia e da igualdade racial. Seria também a primeira vez que veria os limites do patriotismo criollo, quando a aristocracia de Cartagena se uniu a forças estrangeiras para reprimir os setores populares, abrindo espaço para a reconquista espanhola em 1815.

De Cartagena, Padilla seguiu com os patriotas para a Jamaica e, posteriormente, para o solo sagrado de todo revolucionário caribenho, o Haiti. No país de Petión, o guajiro conheceu uma realidade na qual os ideais de liberdade e igualdade possuíam significado concreto. Viu a república sem escravidão e discriminação racial, um verdadeiro território livre, a apoiar todos os rebeldes da região. Estimulante deve ter sido vivenciar os primeiros dias de um governo de pessoas como ele, que, imbuídas nos mais altos ideais, estavam dispostas a abolir o firmamento colonial.

Em troca da abolição nas áreas liberadas, acordo este não cumprido pelos patriotas, o Haiti forneceu o apoio necessário – dinheiro, armas, embarcações, soldados e uma máquina de imprensa – para que o exército bolivariano regressasse ao continente na sua campanha definitiva de libertação da América. Padilla voltaria junto e executaria suas grandes missões. Enquanto tropas rasgavam selvas, savanas e montanhas, Padilla assegurava importantes vitórias marítimas.

O homem mais importante da Colômbia

Depois de retomar Riohacha e Santa Marta, Cartagena ainda estava nas mãos dos espanhóis, guardada pelas suas indestrutíveis muralhas. Ignorando ordens do seu superior, o aristocrata venezuelano Mariano Montilla, no dia 24 de junho de 1821, na noite de São João, Padilla desfere um ataque surpresa sobre a cidade. Aproveitando a distração dos europeus com os festejos da data, ele rapidamente toma a baía e abre caminho para a última libertação desse estratégico porto caribenho.

Como lembra o historiador cartageneiro Alfonso Múnera, sem a tomada de Cartagena por Padilla, a independência declarada anos antes por Simón Bolívar era apenas um feito político regional e provisório. Tudo dependia da liberação dos mares colombiano e venezuelano. Pois bem, Colômbia já estava livre, faltava a Venezuela. E para lá Padilla partiu em 1824, quando comandou a ofensiva no Lago de Maracaibo, selando a independência da região.

Era o auge da sua trajetória. Senador, Benemérito da Pátria e Comandante da Armada de Cartagena, seria chamado por Bolívar de homem mais importante da Colômbia. A nova República, inaugurada formalmente três anos antes com a Constituição de Cúcuta, tinha em Padilla a máxima expressão dos princípios revolucionários. Ele também representava até onde as fronteiras de classe e raça poderiam ser desgastadas e transformadas naqueles tempos vertiginosos. Este começo promissor logo seria atravessado por uma tempestade que há muito se anunciava, prenunciando o início do fim. Necessários para o fortalecimento das tropas patriotas, negros e mulatos, como Padilla, tinham ido longe demais aos olhos da aristocracia criolla.

O medo da “pardocracia”

Foi Mariano Montilla, o antigo chefe de Padilla, que começou. Cartas descompromissadas a Bolívar e Santander escorriam o veneno do mau conselheiro. Em seus pedidos financeiros e reportes sobre a situação do Caribe, Montilla ia deixando, palavra a palavra, carta a carta, como quem não quer nada, suas impressões sobre a vida de Padilla em Cartagena. Para ele, o almirante seria pessoa de pouca confiança, metido com o contrabando, não afeito a hierarquias. Vivia com o “populacho” e gente de “má procedência”, não compatível com o cargo que ocupava. Dava bailes e tertúlias sem convidar sequer uma mulher branca, apenas comparecendo “parditas” e “mulaticas”, nas palavras pejorativas de Montilla.

Com os anos, entre uma pausa e outra, recuos e avanços, o tom acusatório do venezuelano ia subindo, chegando ao ponto de acusar Padilla de ser o responsável por uma grande conspiração de rebelião negra na cidade, pronto a levantar negros e pardos de Getsemaní numa chacina contra a população branca. Tudo não passava de mentiras insufladas por Montilla, pois, na verdade, o almirante somente desejava viver de acordo com a igualdade republicana criada e defendida nas armas por ele e muitos outros da sua cor. No entanto, tais palavras encontravam em Bolívar um ouvinte atento, pois há anos o Libertador cultivava crescente medo de um governo afro, ou o que ele constantemente chamava de “pardocracia”. Se o Haiti propiciou o início da luta patriota, ele dava agora o limite do seu término.

A mais convulsiva das horas fez tudo precipitar, transbordando o copo há muito enchido pelas cartas de Montilla e pelos medos de Bolívar. Numa sucessão veloz de fatos, quando a Gran Colombia é fraturada ao meio entre bolivarianos e santanderistas, Padilla é acusado de conspiração por ter assumido o governo de Cartagena na vacância de Montilla, isca montada pelo próprio venezuelano. Sem apoio dos principais dirigentes da República, o almirante é preso e levado a Bogotá. Depois de seis meses encarcerado na cidade andina, na noite de 25 de setembro, quando santanderistas tentam assassinar Bolívar, os sediciosos invadem a cela, matam o guarda, dão sua espada a Padilla e fogem com ele.

Sem ter qualquer tipo de relação com a conspiração e ainda confiando no Libertador, Padilla regressa voluntariamente à prisão. Não era o bastante. Diferentemente de todos os conspiradores, o guajiro é o único sentenciado à morte. No dia 02 de outubro, na Plaza de la República, é fuzilado diversas vezes, pois seu corpo resistia a tombar. Depois de morto, é içado na forca, em um ritual de exposição funerária que expressava os lugares da cidadania no país recém-fundado. Ritual também que fechava as aspirações democráticas daqueles milhares de negros e pardos que, assim como Padilla, forjaram a independência latino-americana.

Dizem os transeuntes e a crônica da época que assim que Padilla foi levado ao patíbulo, com suas insígnias e farda do exército patriota, iniciou-se uma das maiores tempestades já vistas na história de Bogotá. Do céu negro, despejavam enormes bolas de granizo, que contrastavam com o sangue que começava a sair do seu cadáver. Antes de sucumbir, ele teria gritado: viva a República! Viva a liberdade!

Marcando os estertores do período revolucionário e o início da nação, essa cerimônia ainda seria repetida infinitas vezes nos anos, décadas e séculos seguintes, em um país no qual anônimos e mais anônimos perderam suas vidas nas guerras partidárias, no conflito armado e nas chacinas promovidas pelo próprio Estado. Mas a fantástica e breve história de Padilla é muito mais do que apenas reveladora do assassínio na lógica latino-americana.

O seu legado está em iluminar a participação multitudinária das classes populares, boa parte delas formadas por negros e pardos, nas lutas de libertação do continente, na criação das condições de possibilidade de soberania americana. Está em projetar um horizonte de democracia radical e igualitarismo republicano capazes de transpor o mundo herdado do colonialismo. Utopias caribenhas a inspirar o presente. Pois como lembraria Juan Zapata Olivella, outro cartageneiro, muitos anos depois, em seu livro Piar, Petión, Padilla: três mulatos de la revolución, tudo começa e termina nas maravilhosas aspirações trazidas por ventos do Caribe. 


A história de José Prudencio Padilla é alvo de diversos e instigantes trabalhos historiográficos, como os de Marixa Lasso (Mitos de Armonía Racial), Aline Helg (Libertad e Igualdad en el Caribe Colombiano) e o mais recente livro de Alfonso Múnera (La Independencia de Colombia).

Sobre os autores

é editor da Jacobin Brasil e Doutor em Direito pela Universidade de Brasília. Professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

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Published in América Central, América do Sul, História, Perfil and Política

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