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Um soldado do Exército dos EUA monta guarda ao lado de um poço de petróleo em chamas nos campos petrolíferos de Rumayla, no Iraque, em 27 de março de 2003. (Mario Tama / Getty Images)

A guerra que nunca aconteceu

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Tradução
Cauê Seignemartin Ameni

Ontem marcou o 19º aniversário da invasão do Iraque pelos Estados Unidos e Inglaterra. Foi uma guerra catastrófica, ilegal e assassina baseada num informação falsa – e Joe Biden foi um de seus apoiadores mais importantes.

Na campanha de 2020, Joe Biden mal foi questionado sobre seu apoio à Guerra do Iraque, fato que ele tentou esconder. De acordo com Biden (que repetidamente elogiou sua experiência em política externa no período que antecedeu a eleição presidencial), ele se opôs à guerra desde o início – o “momento exato” em que as primeiras bombas caíram em Bagdá.

Não só Biden deu um voto crítico para autorizar o uso da força militar; ele também desempenhou um papel crucial na criação do caso que levou a guerra acontecer em primeiro lugar. Como presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado, Biden construiu o apoio para uma resolução bipartidária que, em última análise, deu ao governo de George W. Bush ampla discrição para defender os Estados Unidos de qualquer ameaça percebida do Iraque. Nos anos seguintes, Biden argumentou que ele só votou pela “Autorização para Uso da Força Militar” contra o Iraque de 2002 para aumentar o poder de barganha dos Estados Unidos nas Nações Unidas – como se estivesse apontando uma arma para o chefe da comunidade internacional (o que Biden chamou de “diplomacia dura”) representasse outra coisa que não um apelo à guerra.

Longe do guerreiro relutante que ele se auto retratou, Biden – ao rejeitar resoluções alternativas que exigiriam que os Estados Unidos predicassem a ação militar na autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas e menosprezassem os democratas mais progressistas que recusavam a perspectiva de guerra como puristas – em última análise, criou as próprias condições em que a oposição à guerra se tornou insustentável.

Até mesmo uma série de audiências de alto nível que Biden realizou em 2002 – ostensivamente uma tentativa imparcial de informar o público dos EUA sobre os riscos de uma invasão – foi um ardil: ele recrutou uma série de agentes pró-guerra para repetir a propaganda do governo Bush sobre as míticas armas iraquianas de destruição em massa (WMDs) e os supostos laços com a Al-Qaeda, sem nenhuma voz cética entre eles. De acordo com o inspetor-chefe de armas da ONU na época, Scott Ritter, as audiências foram uma “farsa” projetada para dar cobertura à “conclusão pré-ordenada” de Biden de que Saddam Hussein ou suas armas tinham que ser destruídos – apesar do fato de que o agente da CIA George Tenet havia dito pessoalmente a Biden que não havia evidências de que essas armas de destruição em massa existissem.

Na verdade, Biden havia convocado a guerra contra o Iraque por anos. Em 1998, ele alertou que o país representava uma grave ameaça aos interesses dos EUA. De acordo com Biden, era impossível para os inspetores garantir que Hussein não desenvolveria armas de destruição em massa no futuro (se ele já não as tivesse), e “a única maneira de se livrar dele” era colocar as botas no chão – mais cedo ou mais tarde.

Mas a lógica que Biden elaborou com tanta diligência durante anos – que o Iraque representava uma ameaça existencial para os Estados Unidos – nunca se concretizou. Uma busca desesperada por armas de destruição em massa após a invasão não encontrou nada. Dentro de um ano, a maioria dos americanos percebeu que a invasão havia sido um erro. E até o final de 2014, políticos e a comunidade de inteligência admitiram que não apenas o Iraque não tinha tais armas – biológicas, químicas ou nucleares – mas os informes da inteligência pré-guerra era profundamente defasados.

E, no entanto, nem mesmo durante o acalorado debate final das primárias em 2020, Bernie Sanders (que votou contra a invasão em 2002 como representante de Vermont) defendeu – que ele havia mencionado na campanha mais de uma vez – que Biden não estava apto para servir como presidente por causa do que foi, na opinião de Sanders, “o pior erro de política externa da história moderna dos Estados Unidos”.

Elizabeth Warren, outra candidata que chamou a Guerra do Iraque de erro, também falhou em desafiar a defesa histórica de Biden da invasão – desde negar que ele acreditava que Hussein possuía armas de destruição em massa até lamentar que o único erro que ele cometeu foi confiar no governo Bush. Quando perguntado se Biden era o culpado, Warren – uma acadêmica jurídica que começou sua carreira política assumindo causos para blindar as pessoas das falências corporativas em 2005 – se opôs.

A crítica mais árdua contra o papel de Biden na Guerra do Iraque foi feita em março de 2020 por um veterano da força aérea que acusou Biden de ter o sangue de outros militares em suas mãos. Mas, apesar de suas propostas, de que ele se arrependeu de seu apoio à guerra – que se tornou cada vez mais impopular nos escalões superiores do Partido Democrata nos anos seguintes –, Biden nunca aprendeu com seu erro.

Onze anos após a intervenção na guerra civil da Líbia e vinte mil mortes, fica claro que a campanha de sete meses de bombardeios dos Estados Unidos não apenas sofreu com um planejamento ruim, com nenhuma estratégia de saída e inteligência falha – as mesmas falhas que Biden atribuiu à Guerra do Iraque –, mas também não tinha nada a ver com a proteção de civis. Apesar da declaração inicial de Barack Obama de que a mudança de regime estava fora de questão, Biden viria a elogiar a OTAN por remover o ditador líbio Muammar Kadafi. A revelação de Biden, anos depois, de que ele se opôs à intervenção desde o início mostra novamente como ele continua a negar a responsabilidade pelas repetidas desventuras dos Estados Unidos no Oriente Médio – tudo sob sua vigilância.

“O pecado original do século XXI”

O fato de que a Guerra do Iraque – um dos atos de agressão mais hediondos dos tempos modernos – não foi apenas um desastre completo, mas um crime que é raramente reconhecido na política norte-americana. Desde o infame discurso de George Bush em maio de 2003 – no qual ele declarou o fim das grandes operações de combate a bordo do USS Abraham Lincoln um mês após a invasão – centenas de milhares de homens, mulheres e crianças iraquianos foram mortos, milhões foram mutilados ou feridos, e muitos mais foram deslocados.

Em poucos anos, estudos concluíram que mais de um milhão de iraquianos haviam perdido a vida e, desde o décimo quinto aniversário do que o estudioso Tallha Abdulrazaq chama de “o pecado original do século XXI”, estima-se que foram amontoados mais de de 2,4 milhões cadáveres de pessoas no berço da civilização. Além de levar à morte e destruição generalizadas, desestabilizar a região e dar origem ao Estado Islâmico (ISIS), a guerra também teve efeitos mais distantes (embora previsíveis) de longo prazo, como a crise global de refugiados e o surgimento de governos de extrema direita em ambos os lados do Atlântico.

Os eleitores americanos costumavam não dar muita atenção para a Guerra do Iraque. Mas, em 2008, Barack Obama alavancou o descontentamento generalizado sobre a guerra para garantir a indicação democrata, cortejando tanto os progressistas quanto os jovens. Na verdade, acredita-se que Hillary Clinton perdeu para o senador de Illinois não apenas porque ela votou pela guerra – e foi fundamental para reunir democratas ambivalentes à causa – mas porque Obama havia criticado a invasão desde o início.

Nos últimos anos, amplos setores do público americano se convenceram de que a guerra era um desastre. O índice de aprovação de Bush caiu para um mínimo histórico de 25%, baseado em grande parte na crença generalizada de que a invasão era uma bagunça. Em 2016, mesmo republicanos como Donald Trump, que concorreram com uma plataforma niilista que apavorava as famílias por causa dos supostos terroristas e dizia que iria “trazer a tortura de volta”, atacariam a falta de previsão de Clinton e a esquerda.

O desprezo óbvio de Obama pela guerra de seu antecessor, baseado em uma política aleatória e incoerente no Iraque, logo foi ofuscado pelo que só pode ser descrito como sua negligência. Sob sua liderança, as forças dos EUA se retiraram em 2011, apenas para retornar alguns anos depois com um mandato aparentemente interminável para combater o ISIS – uma criação da própria invasão que o presidente não apenas subestimou, mas posteriormente foi encorajado a gastar bilhões de dólares a mais do que Bush jamais gastou no processo.

Apesar de criticar a Guerra do Iraque – chamando-a de “grande erro” – Trump também viria a autorizar novos aumentos de tropas e bombardeios. Em julho de 2017, Trump se juntou ao primeiro-ministro iraquiano Haider al-Abadi ao declarar Mossul livre do controle do ISIS depois que as forças iraquianas e americanas destruíram completamente a cidade em algumas das ações mais horríveis desde a invasão – com base em grande parte no fato de que Trump havia removido as restrições às operações militares dos EUA destinadas a reduzir as baixas civis. Somente nos primeiros meses de seu primeiro e último mandato Trump decidiu reduzir os níveis de tropas no Iraque – uma ninharia.

Quando o povo iraquiano fez suas primeiras incursões na democracia após décadas, a guerra já havia desaparecido da imaginação americana. Após a expulsão do ISIS do Iraque em dezembro de 2017, manifestações massivas abalaram o país repetidas vezes, com pessoas comuns saindo às ruas para protestar contra o alto desemprego, a corrupção generalizada do governo e a falta de serviços básicos como água e eletricidade. Em 2019, os iraquianos até incendiaram o consulado iraniano na cidade sagrada de Najaf e forçaram o primeiro-ministro a renunciar – uma reposta poderosa contra um governo impopular que matou centenas de manifestantes.

Mas as convulsões no Iraque mal foram relatadas nos Estados Unidos. A cobertura da mídia sobre a guerra caiu vertiginosamente durante anos; mesmo quando aparece no noticiário, não há nenhum destaque. O assassinato orquestrado pelo governo Trump do general iraniano Qassem Soleimani em janeiro de 2020 foi censurado pelos democratas que condenaram seu fracasso em obter autorização do Congresso para o que foi chamado de ato de guerra. Mas o fato de o ataque ter ocorrido no aeroporto de Bagdá ou de as autoridades iraquianas não terem sido consultadas com antecedência não foi questionado.

“Nenhum funcionário foi responsabilizado pela decisão de invadir o Iraque.”

Durante o governo Trump, a guerra no Afeganistão – o conflito armado mais longo da história dos EUA, também nascido de 11 de setembro – conquistou a imaginação americana. Sejam tentativas de frustrar a investigação do Tribunal Penal Internacional sobre as atrocidades dos EUA, o primeiro uso em combate da “mãe de todas as bombas” contra o ISIS, ou a retirada equivocada de Biden do país em agosto passado, o povo do Afeganistão continua sofrendo com o Talibã, com uma crise humanitária massiva e uma pilhagem contínua de seus recursos pelos Estados Unidos.

A Guerra do Iraque voltou às manchetes quando, em uma resposta desesperada à sua derrota eleitoral, Trump declarou que todas as tropas do país estariam em casa em janeiro de 2021. Mas apesar da decisão tardia de Biden de levar o conflito de quase vinte anos a um fim ignóbil (encontrou uma combinação de falsa indignação, nostalgia sentimental e preocupação legítima), não está claro se seu anúncio em dezembro passado de que os Estados Unidos concluíram a missão de combate no Iraque pela enésima vez representou algo a mais do que uma promessa retórica.

“O crime internacional supremo”

Há uma razão pela qual os americanos se acostumaram com a violência constante em um país que seu governo vem bombardeando há dezenas de anos: ainda não houve um pingo de responsabilidade. No final de 2004, o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, declarou que a Guerra do Iraque foi uma violação total da Carta da ONU, que proíbe o uso da força exceto em legítima defesa. Além disso, todos foram avisados de que invadir o Iraque não apenas seria ilegal sob a lei internacional, mas também seria um ato criminoso.

Antes de mudar de ideia, o procurador-geral do Reino Unido, Peter Goldsmith, avisou Tony Blair na véspera da invasão que o primeiro-ministro seria suscetível a processo pelo “crime de agressão” – ou o que os Aliados chamavam de “crimes contra a paz” — um crime estabelecido após a Segunda Guerra Mundial precisamente para impor responsabilidade criminal individual aos líderes do Eixo pelo pecado de terem ido à guerra. Segundo o tribunal de Nuremberg, o crime de agressão “é o crime internacional supremo, diferindo apenas de outros crimes de guerra por conter em si o mal acumulado do todo”.

Os apelos subsequentes em todo o mundo para levar os perpetradores da guerra à justiça falharam. Em junho de 2008, 35 pedidos de impeachment contra Bush foram apresentados na Câmara pelos deputados Dennis Kucinich e Robert Wexler, 15 dos quais relacionados apenas com a Guerra do Iraque. Nenhum chegou a ser votado. Obama, que fez uma campanha de prestação de contas e transparência, revelou mais tarde que estava relutante em ordenar uma investigação sobre a Guerra do Iraque e muito menos interessado em responsabilizar os responsáveis. Em termos concisos e perversos, o presidente disse aos americanos que “precisamos olhar para frente”, apesar de sua admissão de que “torturamos algumas pessoas”.

Do outro lado do globo, o general iraquiano Abdul-Wahid Shannan Al-Rabat abriu um processo contra Blair, Goldsmith e o ex-secretário de Relações Exteriores Jack Straw em 2016 também pelo crime de agressão, com base nos resultados de uma investigação de um ano sobre o papel do Reino Unido na Guerra do Iraque. O Supremo Tribunal posteriormente rejeitou o caso.

Para membros mais velhos do Partido Democrata, os crimes da era Bush foram em grande parte inconsequentes. Apesar dos repetidos pedidos de impeachment entre os principais democratas da época, a líder da Câmara, Nancy Pelosi, deixou claro que estava “fora da mesa”, mesmo depois que o partido ganhou o controle do Congresso em 2006. Anos depois, ela revelou que sabia que Bush estava mentindo o tempo todo, e que a Guerra do Iraque era uma farsa – mas que, na opinião dela, não era uma ofensa passível de impeachment. Obama repetiu isso em seu último livro de memórias, no qual elogia seu antecessor e castiga os americanos que condenaram Bush como criminoso de guerra.

Os republicanos também defenderam vigorosamente o legado de Bush. Em novembro de 2020, em um raro ato de desafio, vários membros proeminentes do partido condenaram os planos de Trump de reduzir o número de tropas no Afeganistão e no Iraque. O próprio Trump concedeu clemência a soldados e mercenários contratados dos EUA por alguns dos crimes mais hediondos cometidos em solo iraquiano, incluindo o infame massacre de 17 iraquianos em 2007 por mercenários da Blackwater. E entre seu próprio partido, Bush continua tão popular como sempre. Em 2018, seu índice de aprovação entre os republicanos não caiu abaixo de 75% nos últimos dez anos.

O fato de nenhum funcionário ter sido responsabilizado pela decisão de invadir o Iraque é o mais emblemático da “guerra ao terror”. Seja em Abu Ghraib, onde teve tortura, rendição extraordinária, vigilância secreta e ataques de drones ou Guantánamo, os Estados Unidos negaram consistentemente a responsabilidade pelos crimes do governo Bush. Responsáveis diretos como o ex-secretário de Estado Colin Powell e o secretário de Defesa Donald Rumsfeld também escaparam completamente da justiça. Até os aliados dos EUA assumiram mais responsabilidade por seus respectivos papéis. Nos últimos anos, o Canadá indenizou ex-detentos de Guantánamo, a Itália condenou agentes da CIA por tortura à revelia e a Austrália concluiu uma investigação sobre crimes de guerra cometidos por forças especiais no Afeganistão.

Em contraste a isso, os Estados Unidos investigaram apenas até que ponto a Guerra do Iraque representou um enorme fracasso de inteligência, precisamente para evitar implicar a liderança política envolvida. O relatório Chilcot, divulgado em 2016, não apenas expôs a lógica confusa e infundada da guerra, mas colocou a culpa diretamente no governo Blair. E desde que assumiu o cargo, Biden – assim como seu antecessor – perseguiu denunciantes como Julian Assange pela audácia de expor, entre outras coisas, forças dos EUA assassinando civis iraquianos como se fosse um hobby esportivo.

As guerras eternas

Dezenove anos depois, é como se a Guerra do Iraque nunca tivesse acontecido. Após a retirada dos EUA do acordo nuclear com o Irã em 2018, o governo Trump fez tudo menos uma declaração de guerra para provocar o Irã – incluindo guerra econômica prolongada, estacionar porta-aviões em águas iranianas e matar o “segundo homem mais poderoso” do país”. Uma semana antes de Biden assumir o cargo, o então secretário de Estado Mike Pompeo chegou a anunciar que os laços iranianos com a Al-Qaeda haviam sido descobertos – a mesma mentira usada para justificar a Guerra do Iraque duas décadas antes. Mais tarde, Biden retirou as sanções antes das negociações diplomáticas, apenas para frustrá-las completamente com ataques às forças iranianas – em um país com o qual não estamos em guerra (Síria), de um país em que não temos o direito de estar (Iraque). Nos últimos dias, o governo Biden chegou ao ponto de chamar as acusações do presidente Vladimir Putin, de que a Ucrânia está abrigando armas biológicas, um pretexto para a invasão da Rússia, tudo de “desinformação” – sem uma pitada de ironia.

Sejam guerras por procuração com países vizinhos ou guerra de drones em andamento na região, os EUA continuam a travar uma guerra eterna contra um inimigo incipiente – com o Iraque como base de operações. Também não há indicação de que Biden pretenda entregar qualquer justiça ao povo iraquiano. Toda atenção está voltando em saber se a decisão do Congresso de finalmente rescindir a Autorização para Uso da Força Militar de 2002 acabará com a carnificina de uma vez por todas – ou apenas será atualizada para mais uma fase do intervencionismo dos EUA.

Sobre os autores

é um advogado.

Cierre

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Published in América do Norte, Análise, Guerra e imperialismo, Militarismo and Oriente Médio

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