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(Wikimedia Commons)

Duas vezes Hayek

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O economista e filósofo austríaco liberal conservador Friedrich Hayek faleceu neste dia em 1992. Ele se tornou um dos pensadores mais influentes da direita e ajudou a esculpir os ideais do neoliberalismo através do livro O caminho da servidão, um panfleto repleto de imprecisões históricas que saiu pela culatra.

Neste mês se completam 30 anos da morte de Friedrich Hayek. Por motivos diversos, Hayek foi o pensador mais influente das direitas no século XX. Não digo o mais instigante, mas aquele com maior impacto: afinal foi ele o pilar central de um projeto de longo prazo de renovação do liberalismo, projeto iniciado na década de 1930 e ainda em curso, e usualmente chamado de neoliberalismo.

Aproveito a efeméride para compartilhar duas histórias curiosas de seu livro mais lido e conhecido, O caminho da servidão, de 1944. O livro é muitas vezes considerado um panfleto, e de fato o é, pois Hayek o concebeu como um instrumento de luta política para evitar uma vitória do partido trabalhista nas eleições britânicas de 1945.

A primeira história trata do papel do livro de Hayek na campanha conservadora (uma espécie de tiro pela culatra). Já a segunda traça uma citação curiosa do livro que indica um modo bem inusual e nada acadêmico ou honesto no tratamento com as fontes (um telefone sem fio insano).

Entendendo tudo errado

Se Hayek foi bem-sucedido em seu projeto de vida – a renovação de certo liberalismo – na colaboração com o partido conservador nas eleições de 1945 ele se deu bem mal. O argumento central do panfleto é que o socialismo, que Hayek identifica com o planejamento da economia, e não com a propriedade coletiva dos meios de produção, é o caminho para a servidão.

De acordo com ele, foi isto o que ocorreu na Alemanha. Ela teria começado a adotar o socialismo com Bismarck, e, em uma espécie de ladeira escorregadia, isto a conduziu até Hitler. Hayek entendia tanto o nazismo quanto o II Reich como uma forma de socialismo de direita (algo que só se tornou um oxímoro muito tempo depois).

Pois bem, o recado era claro: se os trabalhistas vencessem no Reino Unido, em pouco tempo os britânicos estariam vendo descalabros semelhantes aos dos germânicos. O Partido Conservador apreciou o livro e empenhou-se em popularizá-lo: promoveu uma edição condensada e cedeu parte de sua cota de papel (um produto escasso por conta da II Guerra) para permitir maiores tiragens. Em agradecimento, Hayek alterou a epígrafe, tirando uma frase de Hume e colocando uma do então candidato Winston Churchill.

Até aí, nada demais. A eleição ainda estava aberta, com um fraco favoritismo de Clement Atlee. Mas só então entra a contribuição de Hayek: a inspiração para um discurso radiofônico que ficou conhecido como o Crazy Broadcast de Churchill. Em rádio nacional, na noite de 4 de junho de 1945 (um mês antes da votação), o candidato conservador afirmou:

“Nenhum governo socialista conduzindo a vida inteira e a indústria do país poderia se dar ao luxo de permitir expressões de descontentamento público livres, fortes e com palavras violentas. Eles teriam que recorrer a algo como uma Gestapo, sem dúvida dirigida humanamente num primeiro momento.”

A frase soou muito mal aos ouvidos indecisos (bem conscientes da militância e da participação do Partido Trabalhista na luta contra os nazis). No dia seguinte, Clement Attlee rebate:

“não vou perder tempo com tal teoria, que me parece ser uma versão de segunda mão das visões acadêmicas de um professor austríaco – F. A. Hayek – que é agora muito popular no Partido Conservador.”

Trinta e cinco anos depois Hayek ainda se lamentava pelo ocorrido: “receio que quase não há dúvidas de que a infortunada frase da Gestapo de Winston Churchill tenha sido escrita sob a influência de O caminho da servidão.”

No final das contas, e malgré lui-même, a contribuição de Hayek para a campanha conservadora sequer foi nula: ela foi negativa. Hayek ajudou para a vitória trabalhista. Clement Atlee recebeu 47,7% dos votos, contra 36,2% de Churchill. Os trabalhistas conquistaram 393 de 613 cadeiras no parlamento e puderam governar com maioria.

Adulterando a história

No dia 24 de fevereiro de 1941 Hitler discursou em Munique por ocasião do 21º aniversário do Partido Nacional-Socialista. O líder nazista começa louvando o partido por defender a unidade e totalidade do povo alemão, e não apenas o interesse dos proletários ou dos rentistas, dos protestantes ou dos católicos. A partir disto, ele recorda que a Alemanha estava cindida em dois mundos: de um lado os nacionalistas burgueses, de outro os socialistas proletários, mas ambos os movimentos, àquela altura, já haviam se tornado estéreis. E a demonstração de sua esterilidade é que cada campo já estava cindido e fragmentado em inúmeros partidos e interesses. Ademais, ambos os partidos clamavam por solidariedade internacional pedindo um alívio dos custos de Versalhes (em vez de, como propunha Hitler, se rebelar contra os países que exigiam tais pagamentos).

Isto serve de mote para apresentar o partido nazista como contraponto aos partidos socialistas e burgueses, socialistas e burgueses defendem interesses parciais, nazistas a totalidade do povo; socialistas e burgueses querem uma Alemanha de joelhos, nazistas uma Alemanha altiva. E o restante do discurso repete os lugares-comuns da ideologia nazista: a solidariedade com o fascismo italiano, a crítica ao capitalismo entendido apenas como sistema financeiro rapinador dominado por judeus, a exaltação da bravura do povo germânico e etc..

Pois bem, acontece que alguém reconstruiu, traduziu e publicou em um periódico, o Bulletin of International News, o discurso de Hitler, mas de forma bastante infiel, inclusive usando aspas em passagens nada semelhantes àquelas que constam no texto original do discurso. Assim, em determinado momento, o autor anônimo afirma: “Em conclusão, ele [Hitler] disse que o país precisou romper com os velhos partidos burgueses; ‘basicamente Nacional Socialismo e Marxismo são o mesmo’. O Partido Nazista não veio para defender interesses de classe, mas para trazer unidade ao povo alemão.”

Ora, no discurso original não é nacional socialismo e marxismo que são o mesmo, e sim o partido proletário e o partido burguês, os dois adversários do nazismo, que são basicamente o mesmo, pois são estéreis e fragmentados. Mas o que já ia muito mal torna-se ainda pior nas mãos de Hayek. Em O caminho da servidão, logo em seu segundo capítulo, ao comentar sobre o ódio de Hitler aos liberais, Hayek comenta que o liberalismo já se encontrava morto na Alemanha na época da ascensão de Hitler, e que haviam sido os socialistas que o tinham matado. Aí acrescenta, em nota:

“A esse respeito convém lembrar que, fossem quais fossem as suas razões, Hitler julgou oportuno declarar em um de seus discursos, já em fevereiro de 1941, que ‘basicamente o nacional-socialismo e o marxismo são a mesma coisa’.”

Em resumo, Hayek ainda consegue tirar o contexto da frase inventada, usando-a num sentido que mesmo na reconstrução bizarra da Bulletin não permite. Num telefone sem fio insano Hitler disse que os partidos burgueses e os proletários são semelhantes (pois são fragmentados e estéreis); o autor da Bulletin disse que Hitler disse que os nazistas e os socialistas são semelhantes, pois adversários dos velhos partidos burgueses, e Hayek simplificou e essencializou tudo dizendo que Hitler teria dito que nacional-socialismo e marxismo são o mesmo.

Sobre os autores

é professor do Departamento de Filosofia da UFMG.

Cierre

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Published in Análise, Economia, Europa, Livros and Sociologia

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