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Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. (Foto: Pedro Biava)

O que aprendi com os sem-teto?

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Em seu novo livro, Guilherme Boulos, líder do MTST e candidato a deputado pelo PSOL, conta as lições que tirou da primeira ocupação que viveu aos 20 anos quando era estudante de filosofia - e como aprendeu a transformar indignação e revolta em resistência solidária e lutas emancipatórias com o povo.

Trecho retirado do livro Sem medo do futuro, de Guilherme Boulos (Contracorrente, 2022).


Mal amanhecia numa terça-feira de setembro de 2003, e a tropa de choque já estava a postos. Sem saber disso, os moradores da ocupação em Osasco preparavam-se normalmente para mais um dia. O café saiu cedo na cozinha coletiva – comandada com pulso firme por Dona Nita –, e muitos saíram para trabalhar, uns apertando-se num ônibus cheio, outros com suas carroças em busca de reciclagem. A investida policial, no entanto, não tardou: pouco depois das seis da manhã, eles se posicionaram em frente ao terreno. Ali viviam mais de trezentas pessoas. A área, ocupada cerca de um ano antes, tinha esqueletos de prédios abandonados e pertencia a Sergio Naya, especulador famoso por ter sido responsável pela queda de um prédio feito à base de areia no Rio de Janeiro. O terreno e os prédios, então ocupados, seguem ainda hoje, dezenove anos depois, abandonados, para quem quiser ver, à beira do Rodoanel de São Paulo.

Na ocasião, fomos tentar um diálogo com os policiais para entender o que estava acontecendo. O major responsável pela operação disse secamente que era um despejo. “Mas não fomos notificados, major!” “Não importa. Vocês têm dez minutos”. E assim foi. Em dez minutos, a tropa avançou pelo terreno e começou a arrombar a porta dos barracos. Pedi um tempo ao major para fazer uma reunião com os moradores e explicar o que estava acontecendo. Ele deu o tempo. Mas, quando mal tínhamos feito uma roda e começado a falar, jogaram uma bomba de gás lacrimogêneo em cima das pessoas. Idosos, grávidas, crianças de colo… todos correram tentando se proteger. Era apenas o começo de um dia de terror.

Os policiais foram entrando pelos barracos, enquanto ajudantes de uma empresa contratada retiravam os móveis e pertences dos moradores e empilhava tudo na rua central da ocupação. Foi nesse momento que aconteceu uma das cenas mais revoltantes que já presenciei. Uma senhora, indignada com a situação após ter sua porta estourada e seu fogão carregado, começou a gritar com os policiais. Cerca de cinco ou seis deles se juntaram, então, em torno dela. Havia chovido durante a noite e o chão de terra batida era só lama. A um sinal, enquanto um dos homens lhe deu uma gravata, outros a seguraram e a atiraram ao chão, em meio ao barro. Já sobre a lama, ainda foi agredida. Seu filho, que tinha no máximo treze anos à época, veio chorando desesperado defender a mãe. Foi imobilizado, algemado e posto na viatura. 

No fim da manhã, com os barracos esvaziados e derrubados, começou a identificação dos pertences. Quem reconhecia os seus podia mandar para a casa de algum parente ou então para um galpão da prefeitura. Os pertences não reconhecidos foram queimados ali mesmo, diante de todos. Mas o dano daquele dia era maior que o material e deixou sequelas para muita gente.

Esse despejo me marcou não apenas por ter sido o mais violento dentre tantos que vi em duas décadas no Movimento do Trabalhadores Sem Teto (MTST), mas também porque eu morava naquela ocupação, o primeiro acampamento em que fui viver, aos vinte anos, quando decidi me dedicar à luta dos sem-teto por moradia e dignidade. Naquele período, estudava filosofia na Universidade de São Paulo (USP) e dividia o tempo entre os estudos e a atuação no movimento. Pouco depois, ainda no último ano da faculdade, comecei a dar aula de filosofia na Escola Estadual Maria Auxiliadora, em Embu das Artes. Vendo em retrospectiva, por mais que valorize muito meu aprendizado na faculdade e no ofício de professor, aprendi muito mais com a vida na ocupação. Eu saía das aulas de filosofia, no período noturno, e voltava para a ocupação, onde tinha então aula nas rodas de conversas, animadas pelos contadores de causos, em volta da fogueira. As histórias de vida do povo mais sofrido deste país são ensinamentos em carne viva sobre estratégias de sobrevivência, valores comunitários e muita, muita coragem.

Professor militante

A propósito, bem antes disso, o que me fez decidir ser professor foi também uma experiência com o povo numa comunidade. Aos dezesseis anos de idade, participei de um projeto de alfabetização de jovens e adultos pelo método Paulo Freire, na favela do Flamengo, extremo norte de São Paulo. Ajudar pessoas a não somente ler palavras, mas a ler o mundo, e ver o saber que cada um traz consigo ganhar forma na escrita e na leitura são experiências únicas. Lembro-me dos olhos brilhando e das lições que recebi. Muitas vezes, o que move nossas escolhas são vivências e sentimentos – de revolta, solidariedade, esperança – mais do que planos racionais que fazemos.

A escolha pela militância é um ato de amor e indignação. Amor àqueles com quem convivemos, mas também a quem sequer conhecemos, através da identificação com seu sofrimento. A capacidade de sentir a dor do outro como se fosse nossa, de quebrar as barreiras da indiferença é o ponto de partida da escolha militante. E ela vem cheia de indignação contra quem faz sofrer e, sobretudo, contra o sistema que institucionaliza o sofrimento e a humilhação. Essas duas capacidades, a de sentir a dor do outro e a de se indignar, são as grandes fortalezas emocionais do militante socialista. Pois quantas vezes não pensamos em desistir? Quantas vezes nos sentimos num trabalho de Sísifo, enxugando gelo? Em cada um desses momentos, o que me fez seguir em frente foram memórias como as do despejo de Osasco e tantas outras que pude vivenciar; foi a esperança vinda dos exemplos das pessoas mais simples, que fizeram da solidariedade uma estratégia de resistência. Foi isso que me manteve de pé e a muitos dos meus companheiros nos momentos mais duros.

“A solidariedade entre os pobres é um fenômeno autêntico. Envolve uma identificação de classe. Resgata o enraizamento das relações comunitárias que foram destruídas pela vida urbana frenética nas metrópoles do capital.”

Os sem-teto são tratados como “subcidadãos”, ou seja, como alguém considerado, na verdade, “um ninguém”, ou pior, um estorvo que pode ser removido violentamente de onde vive, agredido e massacrado, sem que isso gere nenhuma compaixão. Os sem-teto valem menos do que um cão, ou um pet, como disse uma secretária de Desenvolvimento Social de Porto Alegre, ao comentar sobre uma praça da cidade onde se concentravam pessoas em situação de rua: “nós não vamos admitir uma praça que esteja cheia de morador de rua. É um lugar público, e as pessoas não podem levar seus filhos, seus pets. Não tem condições de se caminhar nem em uma calçada, porque uma pessoa se acha no direito de morar na rua”. Apesar de bizarra, a declaração é reveladora de um pensamento comum na sociedade. Afinal, quantas pessoas não se amontoam com seus papelões e cobertores em calçadas, debaixo de marquises, diante da indiferença geral do público?

Indignação contra a naturalização da desigualdade

Ao longo da vida e, sobretudo, durante as campanhas eleitorais à Presidência da República e à Prefeitura de São Paulo, ouvi a pergunta: “por que você, que não é sem-teto, foi atuar no movimento sem-teto?” Alguns chegavam a insinuar que minha opção seria uma hipocrisia, uma utilização política da dor das pessoas. Sempre achei que a pergunta deveria ser: por que temos tanta dificuldade de nos mobilizarmos diante de um sofrimento tão grande e bem debaixo do nosso nariz? A questão, portanto, não deveria ser por que eu e outros militantes, muitos anônimos, decidimos dedicar a vida a essa luta, mas por que tanta gente naturaliza uma sociedade tão desigual. Isso não significa transformar essa opção de vida numa escolha moral superior, tampouco colocá-la, de forma arrogante, como o caminho que todos deveriam seguir. Existem muitas maneiras de expressar nossa sensibilidade pelo sofrimento dos demais e atuar pela transformação da sociedade. Todas elas são válidas.

Reaprender a sentir a dor do outro e a se indignar com ela. É isto que a vida numa ocupação nos ensina: a reeducar nossos sentidos contra a corrente dos tempos atuais. A maior lição que aprendi com os sem-teto é que não existe saída sem solidariedade. Um aprendizado humano, vivo, de como a dureza do cotidiano em condições de vida miseráveis pode coexistir com as manifestações solidárias mais autênticas. Talvez porque seja ali, no fundo do abismo social, que as pessoas percebam melhor o quanto precisam umas das outras. Gente machucada pela vida, desconfiada de tudo depois de tantos tombos, gente que chegou ao limite de não poder contar com mais ninguém. Mas que, justamente por isso, precisava desesperadamente da presença, do acolhimento e do apoio de quem estava ao lado. Assim são fundadas as comunidades. Em suma, a solidariedade verdadeira não nasce dos grandes salões de eventos filantrópicos, nasce da cooperação entre seres humanos nas condições mais difíceis.

Quando comecei minha militância no MTST, era um jovem estudante universitário. Mesmo tendo sido criado por pais incrivelmente generosos, não deixava de levar comigo aquela arrogância de quem acha que está destinado a ensinar, não a aprender. Trata-se de um vício comum daqueles que, como eu, vieram da classe média e acabam carregando-o para a relação com gente do povo, na crença de serem donos de uma verdade que precisaria ser transmitida aos que ainda não a descobriram. Geralmente não é por má intenção, embora seja uma péssima prática. Enfim, todos pensam a partir de onde pisam, e comigo não era diferente. Nem imaginava que teria, nas ocupações, lições diárias vindas de quem mal sabia ler e escrever. Não me refiro a lições teóricas, e a maior parte delas sequer foi verbal: vieram, antes, da convivência e do exemplo. Lições sobre a importância da cultura popular e o papel da fé na vida das pessoas; sobre coerência com os próprios valores; e, acima de tudo, sobre solidariedade.

Lembro-me da primeira delas. Num domingo de março de 2003, o padre da região se dispôs a fazer um culto ecumênico, com outros religiosos. Caberia à coordenação do acampamento organizar a atividade e chamar os moradores. Na reunião da coordenação, fiz uma dura oposição ao culto. Tendo lido alguns livros marxistas, acreditava simplesmente que a religião era o ópio do povo, que o Movimento deveria enfrentar as pregações, em vez de abrir espaço para elas. Fui voto vencido, mas perturbei a turma e criei constrangimento com o próprio padre – padre Leo Dolan, um homem valoroso e comprometido com a luta popular. O culto ocorreu, estava lotado e reforçou o ânimo das pessoas e o senso de coletividade. Ali comecei a perceber que estava errado, mas a lição maior veio algumas semanas depois.

O movimento fez uma manifestação Câmara Municipal da cidade para pedir a destinação do terreno ocupado à moradia. Ao fim, ocorreu um conflito com a polícia e acabei sendo detido. Passei a noite na delegacia de Osasco, numa pequena cela, em meio a ameaças e agressões dos policiais. Lá pelas tantas da madrugada, recebi uma visita, que trouxe água, um sanduíche e apoio moral: era o padre Leo. 

Não sei por onde ele anda, mas tive a oportunidade de conhecer, nessas quase duas décadas de atuação no movimento, muitos religiosos exemplares. Vi, por exemplo, a saudosa Irmã Alberta Girardi mais de uma vez na linha de frente para resistir a despejos. Conheci também o pastor Hélio Rios, depois expulso da Igreja Metodista, participando de assembleias em ocupações na região do ABC, emocionando e estimulando as pessoas com cantos e trechos bíblicos. Certa vez, numa ocupação em São Bernardo, ele cravou: “Jesus foi o primeiro socialista”, e explicou à assembleia lotada sua afirmação, remetendo-se a histórias do Novo Testamento. Ouvi isso muitas vezes depois, expresso de maneira brilhante pelo pastor Henrique Vieira. Em outra ocasião marcante, o grande padre Paulo Bezerra levou moradores da ocupação local à missa de domingo para que eles contassem suas histórias. Lembro-me ainda da atitude do padre Jaime Crowe, do Jardim Ângela, que, em uma noite fria de 2008, foi a um acampamento em praça pública, onde estávamos com mais de duzentas pessoas despejadas de uma ocupação, e animou o povo com suas palavras e renovou a esperança na luta. Pediu várias vezes aos presentes para repetirem em voz alta uma passagem do Antigo Testamento, então contextualizada para os imóveis abandonados e ocupados pelo Movimento: “Tomem posse da terra e habitem nela, pois Deus lhes deu essa terra para que vocês a possuam”. Hoje, muitas das famílias ali presentes estão em suas casas conquistadas pelo MTST. 

Com o povo das ocupações e essas figuras religiosas, aprendi, portanto, o quanto a fé é importante para quem não tem mais nada. É um esteio que faz com que as pessoas não desabem sob o peso da dura realidade. É evidente que ela pode ser instrumentalizada por “vendilhões do templo” para objetivos pouco louváveis, para semear intolerância e preconceitos e para promover o enriquecimento pessoal. Mas não é por meio da negação da religiosidade popular, ou pior, nos portando como “Cavaleiros do Iluminismo”, que vamos conseguir enfrentar o fundamentalismo. Muito pelo contrário, ao se fazer isso, ranços são alimentados e se cria uma barreira quase intransponível para o diálogo. É preciso, antes de tudo, respeitar e aprender com a fé das pessoas.

Pedagogia paulofreiriana

Aprendi também com o povo sem-teto a perceber a tolice presunçosa do academicismo. É natural que alguém que adquiriu conhecimento teórico sobre um tema – ainda mais quando se trata da desigualdade social e da exploração das pessoas – tenha uma angústia de passar isso adiante, de transformar o conceito em ação. É um gesto de partilha, é verdade, mas inócuo se feito com a lógica da simples transmissão, da educação “bancária” – diria Paulo Freire. Nosso acesso às teorias se dá sempre a partir da nossa história, relacionando os novos conhecimentos com aqueles que adquirimos na caminhada. Isso vale ainda mais para quem não teve a oportunidade de estudo e leitura. Os conceitos são palavras vazias se não vêm associados com experiências de vida.

Lembro-me de um curso de formação política – sobre a exploração dos trabalhadores – que organizamos na mesma ocupação de Osasco. Ali estavam as pessoas mais afetadas pela superexploração: serventes de pedreiro, operadores de telemarketing, faxineiros, ajudantes – as ocupações reúnem todos os tons da precarização do trabalho. Contudo, as pessoas simplesmente não se reconheceram em nossas explicações sobre a mais-valia. Talvez porque a metodologia não fosse a melhor, mas creio essa falta de identificação tenha sido sobretudo porque o caminho da validação é o inverso: é a partir da sua história que as pessoas se reconhecem no conceito. Participou desse curso um jovem chamado Fabio, que, em suas aulas no supletivo, estava lendo Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto. Vi o livro com ele e pedi que lesse alguns versos para a turma. No começo, não despertou muito interesse nos presentes, até chegar numa passagem que fez Dona Ana se lembrar de sua história de retirante. Então, as pessoas, que estavam caladas e de algum modo constrangidas por não estarem entendendo o poema, tomaram a frente e começaram a falar de suas histórias. Em menos de uma hora já estávamos falando sobre exploração do trabalho, e cada um tinha uma história para contar. Para se entender o conceito de mais-valia, foi um passo. Essa noite rendeu e terminou com uma roda de contação de causos em torno da fogueira da ocupação. Estimulamos Fabio a organizar uma apresentação teatral de Morte e vida severina, que foi uma verdadeira catarse coletiva, numa audiência cheia de Severinos retirantes.

“Impressiona a quantidade de pessoas que viram seus sintomas de depressão e ansiedade desaparecerem a partir da convivência coletiva e atividades de cooperação.”

Certa vez, o saudoso Plínio de Arruda Sampaio participou de um curso que organizamos com moradores da ocupação Chico Mendes, em 2005, a partir de uma cartilha sua sobre “poder popular”. Estávamos fazendo a leitura coletiva da cartilha, quando apareceu a palavra “postergar”. Seu Gil, coordenador de um dos grupos da ocupação, perguntou ao Plínio: “o que é postergar?” Plínio deu a resposta: “é adiar, companheiro”. Ao que Seu Gil retrucou: “então por que o senhor não escreveu ‘adiar’?” Plínio pensou e deu a resposta certeira: “é porque a gente, às vezes, quanto mais estuda, mais burro fica”. Todos riram. Mas por trás da brincadeira – que não deve ser confundida com qualquer apologia ao anti-intelectualismo dos tempos atuais – havia um profundo respeito à sabedoria popular. De que serve nosso conhecimento transformador se não somos capazes de construí-lo e partilhá-lo com as pessoas? 

Nessa mesma ocupação, conheci Dona Railda, uma senhora já com seus setenta anos. Carinhosamente apelidada de Vó Railda, ela tinha trabalhado a vida toda como empregada doméstica. Ainda assim, sua renda não dava para comer, pagar as contas e o aluguel, por isso foi para a ocupação. Mulher carismática e guerreira, logo tornou-se um símbolo. Estava na linha de frente de todas as manifestações, debaixo de chuva e sol, ignorando todos os conselhos e pedidos que fazíamos para se preservar. 

Um dia, com ordem de despejo e sem qualquer solução à vista, o povo da ocupação decidiu acampar em frente ao palácio do governo. Um grupo de oito militantes acorrentou-se nas grades do palácio, com a promessa de só sair de lá quando houvesse solução. Imaginem qual foi a comoção quando Vó Railda arrumou, sabe-se lá onde, um pedaço de arame e se acorrentou junto aos demais militantes. Todos, ainda que tocados com o gesto, pediram para que ela não ficasse. A tática do acorrentamento é difícil: as pessoas não saem dali até ter resultado, o que significa dormir em condições precárias, higienizar-se com lenços umedecidos por dias e fazer suas necessidades em penicos improvisados. Era duro demais para alguém com setenta anos de idade. Fui falar com ela, mas em vão. Nada dissuadia Dona Railda, que ficou os onze dias que o acorrentamento durou. Na verdade, era a mais animada, mesmo quando o cansaço começou a bater no grupo. Baiana, doméstica, analfabeta, ela deu a maior lição de radicalidade que tive na vida. Ser radical é ir até o fim naquilo que acreditamos, muitas vezes com sacrifícios. O que Dona Railda nos ensinou a todos com aquele gesto é que a solidariedade exige compromisso. Até onde estamos dispostos a assumir riscos? No fim do dia, tudo é uma questão de saber se estamos dispostos a pagar o preço de nossas escolhas. 

Nesse caso, precisamos falar de Silvério de Jesus. Silvério era mais um homem simples e anônimo das periferias de São Paulo. Poderia ser João ou José. Nordestino pacato, funileiro de carros, desde bem cedo entendeu a importância de lutar pela comunidade. Entrou para a associação de moradores e ia sempre à câmara municipal buscar melhorias para o bairro. As portas, porém, não se abriam. Percebeu, aliás, que elas não se abririam pela própria inércia do poder público. Procurou outras pessoas de comunidades vizinhas para reivindicarem juntos aquilo que era direito deles, saneamento básico, creche, saúde pública, moradia. Foi aí que conheceu o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Juntou sua persistência e vontade de ajudar com a capacidade de mobilização do movimento social. Ninguém segurava mais o Silvério. 

Convivi alguns anos com ele, mas só o conheci de verdade num dia em que fomos distribuir alimentos nas comunidades para pessoas desempregadas. Havíamos recebido uma doação e a levamos pessoalmente na casa daqueles que conhecíamos a necessidade. Era junho de 2005. Terminamos o dia cansados e fomos até a casa de Silvério.  Lá percebi que a mesa e a dispensa estavam vazias. Havia um pacote de arroz e outro de feijão a fazer, nada mais. Ele havia passado o dia levando comida a quem precisava e não guardou uma única cesta básica para si. Briguei com ele: “por que você não falou?” “Tinha gente precisando mais”, foi sua resposta. No dia seguinte, mandamos uma compra para ele, que, relutantemente, aceitou. O homem era orgulhoso, além de tudo. Silvério era o tipo de gente que comprova que as maiores lições de solidariedade vêm do povo. Que Bill Gates destine alguns bilhões de sua fortuna para projetos sociais na África é bom e até louvável, considerando o padrão ético dos donos do planeta. Agora, Silvério distribuir comida sabendo que faltará na sua mesa é um gesto de grandeza infinitamente maior.

O poder da solidariedade

A solidariedade entre os pobres é um fenômeno autêntico. Envolve uma identificação de classe. Resgata o enraizamento das relações comunitárias que foram destruídas pela vida urbana frenética nas metrópoles do capital. Nas ocupações dos sem-teto, isso fica muito evidente nas cozinhas coletivas. São espaços onde se alimentam centenas de pessoas diariamente, tudo movido pelo trabalho voluntário e por doações. O princípio básico é que comida não se nega, independentemente de a pessoa ter podido doar ou não alimentos para a cozinha. O clima é de ajuda mútua e de proteção aos mais vulneráveis: as crianças se alimentam primeiro, pessoas com dificuldade de locomoção recebem o prato no seu barraco e todos cooperam ao seu modo. De cada um, segundo suas capacidades; a cada um, segundo suas necessidades.

Descobri também nas ocupações que a solidariedade é um vínculo de mão dupla, uma verdadeira relação de ganha-ganha. O ato de ajudar alguém que precisa faz com que as pessoas se sintam valorizadas e úteis. Ao contrário, a “voz interior” que lembra aos humilhados a toda hora sua condição de subcidadão – alguém invisível e irrelevante – provoca destruição subjetiva. Deprime, diminui, “te faz sentir um ninguém”, nas palavras de uma sem-teto. Assim, quando alguém encontra pessoas com sofrimento e necessidade ainda maiores do que os seus, nasce a empatia. Ao ajudá-las, vem um sentimento de reconhecimento. Na pesquisa que realizei em ocupações de São Paulo com pessoas que relatavam sintomas depressivos, o resultado trazido por atos de solidariedade era surpreendente.

Impressiona a quantidade de pessoas que viram seus sintomas de depressão e ansiedade desaparecerem a partir da convivência coletiva e atividades de cooperação. Gente que estava sozinha, humilhada, abatida e que foi à ocupação em busca de teto, não remédio, ao chegar lá e se envolver nas cozinhas coletivas, nos mutirões, nas assembleias, simplesmente virou a chave. Muitos reaprenderam a se valorizar, encontraram reconhecimento nos outros e recuperaram seu brilho próprio.

Nunca vou esquecer o que uma mulher sofrida – havia passado por episódios duros de depressão – me disse certa vez numa ocupação da zona leste de São Paulo: “eu comecei a ver que não sou só eu que tenho problemas, as outras pessoas também têm, tem pessoas que têm problemas piores do que o meu, então eu comecei a me superar. Aí eu descobri que eu posso ser útil em muitas coisas, e é que nem eu falei para as meninas, eu posso ser a presidente do Brasil, posso ser o que eu quiser hoje”. Esse depoimento é a demonstração de quantos potenciais a desigualdade e a falta de oportunidade matam. Se pessoas que sempre encontraram portas fechadas tiverem um estímulo, um espaço social em que sejam valorizadas e possam construir relações humanas de alteridade, elas se libertam. A solidariedade também “cura”. E empodera. 

O caso de Dona Lucia mostra isso. Era uma senhora calada que, quando chegou à ocupação, parecia carregar nas costas todas as dores e humilhações de uma vida dura. Tinha receio até de pedir uma informação, se desculpava por tudo e sofria daquele sentimento de inferioridade que nossa sociedade impõe aos oprimidos. Foi se abrindo com o tempo, fez amizades, ajudou na cozinha coletiva. Aos poucos, até sua postura, antes curvada e com os olhos voltados para o chão, se modificou. Certo dia, eu estava na prefeitura de Taboão da Serra para uma reunião sobre as soluções para aquela ocupação, e era possível ouvir o que se passava na sala ao lado, onde ficava o guichê de atendimento. Qual não foi a minha satisfação de ouvir Dona Lucia, após respostas evasivas e grosseiras sobre o seu cadastro habitacional, bater no balcão e gritar: “se vocês não me atenderem direito, eu vou chamar todo o pessoal do Movimento para vir aqui fazer uma passeata!” Ela não estava mais sozinha e tinha aprendido a brigar por seus direitos.

O aprendizado que a luta traz vale para toda a vida. Lembro-me de quando o MTST teve uma de suas primeiras conquistas de moradia, o condomínio João Cândido, onde mora a Vó Railda, aliás. Foi uma conquista e tanto: apartamentos com três dormitórios, varanda e o primeiro empreendimento popular do programa Minha Casa Minha Vida a ter elevador. Logo na primeira semana após a mudança, o elevador de um dos prédios quebrou. Apesar de estar na garantia, a empresa fornecedora ignorou todos os pedidos dos moradores para que se fizesse o conserto. Eram oito andares, e havia muitos idosos vivendo ali. A turma chamou então uma assembleia do condomínio e pediu para que eu participasse. Começou uma discussão do que fariam, um sugeriu um abaixo-assinado, outra uma denúncia no Procon. Até que um senhor lá no fundo levantou a mão e disse: “nós chegamos até aqui com luta, não foi? Então, vamos juntar todo mundo e fazer uma manifestação na empresa do elevador!” A proposta foi aclamada pela assembleia e, na manhã seguinte, a empresa recebeu a visita dos moradores. De tarde, o elevador já estava consertado. 

Ouvi de muita gente, quando falava do Movimento, que as pessoas, depois que ganhassem sua casa, deixariam toda aquela luta para trás e se comportariam simplesmente como proprietários. É verdade que alguns fazem isso, mas nem de longe a maioria. Quantos não foram os casos de gente que, após conquistar sua moradia, seguiu no Movimento para ajudar quem ainda não tinha conseguido. Quantas não foram as pessoas que seguiram e seguem, religiosamente, todas as manifestações dos movimentos sociais na Avenida Paulista. Passou-se um ano, e seguiram. Passaram-se cinco anos, e seguiram. Passaram-se dez anos, e muitos seguiram. A luta e o trabalho coletivo reeducam as pessoas. Esse aprendizado o tempo não apaga.

Por trás das paredes frágeis de um barraco, existem histórias de vida extraordinárias. Histórias de sofrimento e superação. E acima de tudo, histórias de solidariedade. Ao superarmos o preconceito e nos dispormos a aprender com elas, tornamo-nos mais humanos. 

Sobre os autores

é professor, membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e foi candidato à presidência nas eleições de 2018 pelo PSOL.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Cidades, Educação and Livros

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