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Um membro das forças armadas ucranianas está em meio a destroços causados ​​por um foguete russo que foi derrubado por defesas aéreas ucranianas em 14 de março de 2022 em Kiev, Ucrânia. (Chris McGrath/Getty Images)

A cobertura da guerra na Ucrânia revela a decadência do jornalismo brasileiro

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A OTAN é em grande parte responsável pela degradação das relações entre Rússia e Ucrânia, Putin não tem nada de soviético e a extrema direita neonazista ucraniana cresceu com apoio do ocidente - mas a mídia brasileira falhou miseravelmente em noticiar de forma séria o conflito. A Jacobin Brasil conversou com o historiador Rodrigo Ianhez, que foi cortado num debate da Globonews enquanto tentava explicar a situação.

UMA ENTREVISTA DE

Victor Marques

Essa semana irá marcar 2 meses de guerra na Ucrânia. Ao contrário de todas as previsões propagadas pelos analistas na mídia, que num primeiro momento descartaram a hipótese de invasão, as consequências são devastadoras, com imigracão em massa, inflação e instabilidade global.

A seriedade jornalística também tem sido vítima da guerra. Na batalha de narrativas, a mídia ocidental apresenta Putin como um restaurador do “império soviético”, um maligno agente da KGB com obsessões expansionistas irracionais. Some de vista todo o papel dos Estados Unidos em desestabilizar a região, escalar o conflito e até fomentar grupos neonazistas. Putin não é de esquerda, pelo contrário, seus discursos que antecederam a invasão têm um forte conteúdo anti-comunista, mas o governo russo não é o único vilão dessa história: a OTAN vem descumprindo todos os acordos firmados desde a desintegração da União Soviética, e sua inexorável marcha para o leste está na raiz do atual conflito.

Quem explica todas essas questões é o historiador Rodrigo Ianhez, que foi para a Rússia em 2011 se especializar na história da União Soviética e acabou ficando por lá, numa conversa com Victor Marques, da equipe editorial da Jacobin Brasil.


VM 

Você ganhou certa notoriedade no Brasil depois de uma participação em um programa do Globonews, que ficou marcada pela agressiva e histriônica resposta de Jorge Pontual. Você poderia se apresentar um pouco para nossa audiência. Quem é Rodrigo Ianhez? Como foi acabar morando na Rússia? E de que posição política você fala?

RI 

Sou historiador e me formei na Universidade Estatal de Moscou, considerada a principal universidade da Rússia, com especialidade em história da União Soviética. Inicialmente, as décadas de 20 e 30 foram as que mais trabalhei, mas já tratei de temas de todo o período soviético. Cheguei na Rússia em 2011. Ainda no Brasil, havia começado o curso de história na USP, mas não concluí. Decidi então, em 2011, ir para a Rússia pelo seguinte motivo: estudando a história da Rússia e da União Soviética no geral, uma das coisas que eu sentia mais falta, principalmente na produção brasileira, era um acesso amplo às fontes primárias. 

No Brasil acabamos ficando muito limitados nesse sentido. E não são muitos os pesquisadores, mesmo aqueles pesquisadores que tratam da Rússia, que têm uma familiaridade grande com o idioma russo, que é um idioma muito difícil. Tive, portanto, durante a formação, e depois de me formar em Moscou, a oportunidade de mexer com arquivos do período soviético, trabalhei em diversos arquivos. No final das contas, apesar de depois eu não ter seguido a carreira acadêmica propriamente na universidade, tive essas oportunidades que foram importantes para a minha formação. 

Nos últimos anos acabei voltando a lidar mais com temas da União Soviética, da Rússia, participando de entrevistas, de podcasts, e agora com essa situação da guerra entre Ucrânia e Rússia tem havido muita demanda pela minha participação. Eu que já tinha saído desse caminho, fui puxado novamente para as discussões acadêmicas e agora até para o noticiário. Inclusive, de uma maneira que eu não estava desejando, fui colocado no olho do furacão das polêmicas envolvendo a Rússia.

O interesse que tenho pela Rússia e pela União Soviética é muito antigo, vem desde a minha adolescência, quando já me identificava com as ideias marxistas. Estudo a concepção marxista e materialista da história desde que eu comecei a me interessar por isso, lá atrás, aos 14 ou 13 anos. Minha porta de entrada para o tema da Rússia foi justamente um livro de um socialista, o jornalista norte-americano John Reed, que descreveu a Revolução Russa em seu Dez Dias que Abalaram o Mundo, um documento importantíssimo sobre o tema. Reed é um dos poucos norte-americanos enterrados nas muralhas do Kremlin, no panteão, na necrópole dos heróis soviéticos. A porta de entrada mesmo para o meu interesse sobre Rússia foi esse livro, e a partir daí eu comecei a estudar. 

Tive interesses variados dentro das diferentes linhas do marxismo. No início, cheguei a me aproximar de ideias trotskistas, logo depois já estava no exato oposto, com os marxista-leninistas. Hoje me identifico mais com a linha de autogestão Iugoslava, um movimento com ideias pouco estudadas no Brasil, mas que também têm o seu lugar na história. Tenho feito todo um trabalho de aprofundamento dessas ideias, principalmente de um intelectual e dirigente político chamado Edvard Kardelj, o grande ideólogo, mais do que o próprio Tito, por trás do sistema de autogestão. 

VM 

Havia mencionado sua participação na GloboNews e a reação do Jorge Pontual. De fato, a maneira como a narrativa é escandalizada, destemperada, como Pontual respondeu à sua análise chamou atenção – e indignou muita gente. Mas também foi muito sintomático da cobertura abertamente pró-OTAN que a maioria da mídia corporativa tem feito do conflito. Onde você acha que estão os principais pontos cegos, as deficiências estruturais da cobertura da grande mídia no Brasil sobre a Rússia, sobre as raízes dessa guerra, e, de maneira geral, sobre toda a situação nessa região da antiga União Soviética?

RI 

Desde que retornei ao Brasil, tem me assustado o nível do debate, extremamente primário, mesmo nos grandes canais, uma coberta que não esconde uma torcida escancarada, e que nada tem a ver com os interesses brasileiros na questão. É algo muito importado, não vou dizer nem do ocidente, mas importado dos Estados Unidos mesmo. Já havia uma dificuldade anterior da imprensa ocidental, em geral, e da brasileira em particular, de trabalhar os temas relacionados à Rússia. Vivendo na Rússia, lia grandes veículos ocidentais fazendo análise geopolítica, e não reconhecia ali, no que estava sendo descrito, o país em que morava. Por exemplo, a queda do governo Putin é anunciada rotineiramente. Vez por outra se encontra a afirmação de que Putin estaria em seus “momentos finais”, mas nada disso se concretiza. Quem mora na Rússia, quem vê o que está acontecendo lá, percebe que há um forte elemento de wishful thinking, mais desejo do que análise séria, com os analistas ocidentais misturando o que gostariam que acontecesse com a descrição dos fatos. O resultado é um produto muito descolado da realidade material das coisas. 

“A quantidade de bases que os norte-americanos têm na Europa na prática dá a eles um nível de controle sobre as questões militares no continente que nenhum outro país tem.”

No Brasil, o problema é ainda maior. Temos poucos correspondentes, já tivemos mais antes, mas hoje são raros. Só que a Rússia hoje em dia é um tema incontornável da política internacional. Seria fundamental que a mídia brasileira dispusesse de profissionais dedicados a lidar com esse país, e não ficasse tão depende aqueles correspondentes que, sentados lá em seus castelos de Manhattan, comentam de todos os temas: de sociologia e antropologia, até de ciências bélicas e da estratégia militar, de Mianmar e do Butão, passando pela África subsaariana e a América Latina. A qualidade das análises desses profissionais que comentam sobre absolutamente tudo é, para dizer o mínimo, duvidosa. Isso reflete um certo sucateamento da profissão de jornalista. 

Um outro fenômeno que ocorre paralelamente, mas também está ligado a isso, é que se acaba suprindo algumas funções do correspondente internacional utilizando-se de especialistas. Eu, por exemplo, que sou historiador, e poderia falar com muita qualidade da história da União Soviética, sou constantemente requisitado para falar, por exemplo, da posição da imprensa russa sobre a questão, para simplesmente descrever o que está sendo dito na imprensa local. Esse é o trabalho básico do correspondente: ver o que a imprensa local está falando. Mas como não se têm mais correspondentes fora do eixo Nova Iorque-Londres-Paris, pessoas que se dedicam a informar sobre um país específico e que, portanto, devem ter um conhecimento profundo desse país, acaba-se utilizando especialistas para suprir esse vácuo. É o resultado de um sucateamento e é bem evidente que os especialistas, eles próprios sofrendo com a dilapidação da academia brasileira, não vão recusar o espaço. Mas é o reflexo de uma decadência no exercício da profissão de jornalista.

VM 

Mas você observa também na cobertura da nossa mídia um claro alinhamento com as posições e opiniões do chamado “ocidente”, muitas vezes usado como um eufemismo para se referir simplesmente à área de influência política dos Estados Unidos. A Rússia é acusada diretamente como a agressora e a única causa do conflito, mas o papel da OTAN na escalada das tensões fica invisibilizado. O que você teria a nos falar sobre o papel da OTAN? Em que medida é possível dizer que a OTAN jogou gasolina nessa fogueira?

RI 

É, sem dúvida, um papel central. Na verdade, no longo prazo é o grande motivo do conflito que observamos hoje. É claro que houve motivos mais imediatos, conjunturais. Agora, quando se olha para o quadro todo, a OTAN tem uma parte significativa da responsabilidade pela degradação das relações entre a Rússia e a Ucrânia, que desembocou nessa guerra. 

Podemos voltar até a própria criação da OTAN. A OTAN foi criada no pós-Guerra, no início da Guerra Fria, e algo que poucos sabem é que por um momento a União Soviética solicitou a entrada. A União Soviética queria entrar no bloco porque a ideia da União Soviética, apoiada até por alguns países da Europa Ocidental, era criar um bloco de defesa comum da Europa. Mas o que ocorreu foi justamente o oposto: os Estados Unidos acabaram impondo um bloco, uma aliança militar que, na prática, foi o organismo responsável por permitir que os Estados Unidos prolongasse a ocupação militar do continente, realizada na esteira da libertação da Europa Ocidental por forças anglo-americanas nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial. A criação da OTAN permitiu que essa ocupação se estendesse, e, na prática, temos até hoje um continente sob ocupação, não protestada, dos Estados Unidos. A quantidade de bases que os norte-americanos têm na Europa na prática dá a eles um nível de controle sobre as questões militares no continente que nenhum outro país tem. 

“A criminalização total do comunismo, como aconteceu na própria Ucrânia, vai acontecendo lado a lado com a reabilitação do nazifascismo.”

Em resposta, a União Soviética posteriormente criou seu bloco militar, a sua aliança militar, com o Pacto de Varsóvia. Se formos agora mais para o final do período soviético, sabemos hoje que os líderes da OTAN fizeram uma promessa à União Soviética, durante as negociações para a reunificação da Alemanha, de que a OTAN não se expandiria para o leste. Isso tem sido colocado em suspeita recentemente por parte da minha ocidental, mas há documentos, alguns deles tendo vindo à luz recentemente, como saiu há poucas semanas na revista alemão Der Spiegel. Veicularam uma notícia sobre o fato de terem encontrado documentos oficiais, transcrição de encontros, que confirmam que essas promessas dos líderes ocidentais foram mesmo feitas. 

Pois bem, o não cumprimento dessa promessa é uma queixa que a Rússia coloca na mesa já há um bom tempo. Putin mencionou em seu discurso de Munique, de 2007, um discurso de fato seminal para entender a política externa russa hoje, o descumprimento dessa promessa feita a Gorbachev, demandando o fim da contínua expansão da OTAN para o leste. Os representantes dos Estados Unidos fizeram essa promessa lá atrás. Ela não foi formalizada em um tratado escrito, mas nas relações internacionais se reconhece a figura jurídica do acordo oral, o assim chamado acordo de cavalheiros.

Então, efetivamente, não se trata de nenhum absurdo a Rússia exigir o cumprimento dessa promessa. Já os Estados Unidos, e, consequentemente, a própria OTAN, afirmavam que essa promessa simplesmente não havia sido feita. E, no entanto, como acabei de mencionar, a Der Spiegel revelou a descoberta desses documentos em arquivos britânicos, que provam que não somente os americanos fizeram essa promessa, mas também os alemães ocidentais, franceses e britânicos, em discussões, em negociações feitas num formato que era chamado de Quatro Mais Dois (que se refere à União Soviética, França, Reino Unido e Estados Unidos mais as duas Alemanhas, representantes da Alemanha Ocidental e da Alemanha Oriental). 

Na ocasião, em presença de ministros das Relações Exteriores, essa promessa teria sido reafirmada mais de uma vez, de modo que fica claro que se trata de uma demanda justa. E teria sido informado, inclusive, ao governo da Polônia e também ao governo da Hungria, estamos falando aqui do começo da década de 90, que seria impossível acrescentá-los à aliança militar ocidental, apesar deles já terem realizarem pedidos nesse sentido, porque essas promessas tinham sido feitas à União Soviética e foram colocadas como condição para a reunificação das Alemanhas. 

Portanto, toda a expansão que ocorre a partir de 1999 e que vai incluir não somente países do bloco socialista, mas, inclusive, ex-repúblicas soviéticas, além de uma violação direta dessa promessa feita, são evidentemente uma ameaça, e, na visão dos russos, uma ameaça existencial, uma ameaça de segurança nacional e um fator geopolítico inegável para que os russos reajam da maneira como vêm reagindo desde de que a Ucrânia fez essa guinada pró Ocidental em 2014, após os protestos da Euromaidan.

VM 

Era exatamente sobre isso que gostaria de perguntar agora. O chamado “Euromaidan”, a onda de protestos que levou à queda do governo do presidente Yanukovych, tido como pró-Rússia, em um controverso processo de impeachment liderado pela direita, é outro episódio que está na raiz dos desdobramentos atuais. Qual é a sua análise desse evento histórico e como ele contribui para que se chegasse agora a esse ponto?

RI

A Ucrânia, não muito diferente de várias ex-repúblicas soviéticas, é um país dominado por uma classe oligárquica bastante parasitária, bastante apartada dos interesses nacionais e dos interesses do povo. Evidentemente, isso iria gerar descontentamento. Isso é óbvio, até pela dinâmica da luta de classes que se acumularia um descontentamento em relação a essa casta oligárquica que domina diretamente tanto a economia, como a política do país. Essas contradições levaram, em 2014, aos protestos. O motivo, o estopim, foi o fato de que, após assinar um acordo de aproximação gradual com a União Europeia, pressionado pelo governo russo que entende a Ucrânia como parte de sua esfera de influência, o governo ucraniano volta atrás e se retira desse acordo, o que foi entendido então por parte da população como resultado uma ingerência russa nos negócios do Estado ucraniano. 

É disparada a partir daí uma onda de manifestações que acabou por derrubar o presidente Yanukovich, identificado como próximo da Rússia, mas que, no fundamental, não se diferenciava significativamente de outros oligarcas que haviam ocupado o poder na Ucrânia antes. A queda do governo de Yanukovich abre espaço para a instalação de um governo nacionalista ucraniano, do presidente Poroshenko, mas que também, na prática, pela sua composição, tampouco se diferencia muito de outros governos oligárquicos. Na verdade, a ruptura em relação à Rússia acabou se tornando interessante em alguns aspectos para os oligarcas ucranianos, e a Ucrânia seguia com um governo dominado por oligarcas mesmo após a Euromaidan. 

Isso em um país em que boa parte dos oligarcas têm interesses econômicos na área do gás. Chama atenção, a princípio, essa concentração em torno do gás, uma vez que a própria Ucrânia produz pouco gás. O setor de gás da economia ucraniana está, curiosamente, baseado em simplesmente atravessar o gás da Rússia para a Europa, em uma infraestrutura de gasodutos, aliás, que ainda é soviética: o que se utiliza até hoje na Ucrânia para fazer o transporte do gás para Europa é a infraestrutura soviética que ligava a União Soviética à Alemanha Oriental. Ou seja: o abastecimento energético Europeu ainda depende da infraestrutura construída pela União Soviética. 

Portanto, os oligarcas ucranianos cumprem simplesmente esse papel de atravessadores do gás. De modo que, com a inflexão na relação entre a Rússia e o novo governo nacionalista, a política ucraniana vai mudar em alguns aspectos, mas a estrutura de poder fundamentalmente não muda. Mesmo Zelensky, o atual presidente, que se candidatou com uma plataforma de negação da política, responde a esses mesmos interesses, é uma continuação da política oligárquica tradicional na Ucrânia. Seria possível até traçar paralelos com a trajetória do Bolsonaro, no sentido de ser um outsider, uma espécie de bufão, uma figura quase cômica, que se elege numa onda de deslegitimação do sistema político, com a diferença que Zelensky, ao contrário de Bolsonaro, era de fato uma figura de fora da política, um ator, um comediante. Mas sabemos que, apesar de toda essa retórica anti-sistêmica, há um oligarca por trás do Zelensky: Igor Kolomoisky. Seria uma ilusão achar que mudanças profundas foram operadas no país. 

A estrutura de poder na Ucrânia é essa, de uma classe parasitária. O que diferencia os oligarcas ucranianos, e o mesmo pode ser dito dos russos, na verdade, em relação às burguesias nacionais ordinárias dos outros países é que o processo da década de 90, por meio da doutrina neoliberal de “terapia de choque”, de privatização e desmonte do Estado soviético, foi extremamente agressivo. Ali o que se criou foi um laboratório de neoliberalismo como poucos na história, e o resultado social concreto da terapia de choque foi um processo de concentração de riqueza de maneira abrupta e muito violenta.

Nesse sentido, a transição para o capitalismo na Ucrânia e na Rússia foram semelhantes, com a pilhagem brutal das empresas públicas, um colapso da economia e das condições de vida dos trabalhadores e um aumento vertiginoso da desigualdade, que produziu esses oligarcas obscenamente ricos paralelamente à ruína da estrutura produtiva e de uma mar de pobreza. Na década de 90, as coisas eram ainda piores: um punhado de oligarcas controlava diretamente porções enormes do que havia sido o antigo Estado soviético. Esses oligarcas extraíram o máximo de riqueza e deixaram a estrutura produtiva em frangalhos.

A Ucrânia é um dos poucos países da região que até hoje ainda não alcançou os níveis sociais e econômicos que se havia experimentado na União Soviética. Já antes da guerra, o PIB per capita ainda era menor do que no momento de pico na década de 80, antes do choque neoliberal da transição capitalista. De fato, muitas das antigas repúblicas soviéticas, incluindo aí a própria Rússia, só vão alcançar os níveis, tanto sociais quanto econômicos, que desfrutavam ainda no período da União Soviética, há cerca de cinco anos atrás. Foram necessários algo como 25 anos para que se recuperassem do baque econômico, e da subsequente catástrofe social, que representou a desconstrução do Estado soviético. A Ucrânia, como entrou em uma profunda crise já em 2014, não acompanhou essa tendência, e mesmo na Rússia hoje, em alguns índices sócio-econômicos, o nível caiu novamente e já está abaixo do que era no auge do período soviético.

VM 

Algo que se escuta muito falar, e está presente no próprio discurso do Putin, assim como na narrativa oficial que a imprensa russa apresenta, é que a Ucrânia estaria servindo como uma espécie de berço da ação da extrema direita, com presença institucional de grupos neonazistas. O Putin tem falado de “desnazificação” como um dos principais objetivos estratégicos da “operação militar”.

Quando se fala disso, em geral se menciona agrupamentos armados como o Batalhão Azov (oficialmente parte da guarda nacional), organizações como o Pravyy Sektor e partidos como o Svoboda, e fenômenos como o bandeirismo e a reabilitação de colaboracionistas como Stepan Bandera. Como você analisa a atuação da extrema direita na Ucrânia, sobretudo a partir do Euromaidan?

RI 

A justificativa da “desnazificação” para invadir o país é apenas isso: uma justificativa. A Rússia tem seus próprios problemas com grupos, e até mercenários, neonazistas. Mas, o fato dos ucranianos estarem sofrendo enormemente no atual conflito não significa que não haja nazistas no país. É evidente que a utilização destes termos por Putin tem mais a ver com a narrativa de guerra, de encontrar justificativas retóricas para a operação militar. Putin não teve pudores em apoiar uma extrema direita europeia, por exemplo. É importante ressaltar que a Rússia tem uma relação muito pragmática com movimentos políticos no exterior, passa longe de ser uma relação ideológica, não é um apoio automático às posições de extrema direita ou às de esquerda. 

A Rússia tem relações tanto com movimentos de esquerda, e até de esquerda radical, quanto com movimentos de direita e de extrema direita, a depender do contexto. Podem apoiar tanto o Syriza na Grécia, por exemplo, e os governos da Venezuela e de Cuba na América Latina, como também manter boas relações com o partido de extrema direita Alternativa para Alemanha (AfD), ou com o Front National, da Marine Le Pen, na França. Até mesmo a atuação da imprensa russa no exterior, dos veículos de imprensa da Rússia, se molda de acordo com a expectativa do público local. A imprensa escrita russa em português e em espanhol, na América Latina, tem claramente uma tendência mais à esquerda, de denúncia do imperialismo norte-americano, enquanto na Polônia, nas repúblicas bálticas, esses mesmos veículos, às vezes com o mesmo nome, têm uma linha editorial notoriamente conservadora, mais próxima da narrativa das “guerras culturais” da direita, atacando as “pautas identitárias” como a causa da decadência moral do ocidente, utilizando o vocabulário dos “valores familiares”, “tradição”, “civilização cristã” e etc.. Duas visões completamente opostas divulgadas no mesmo veículo, só que em países e línguas diferentes. De modo que o problema da Rússia não é com a extrema direita, já que adotam uma política totalmente pragmática, que não faz distinção no espectro político. 

Isso não quer dizer que não haja um problema real de presença de grupos neonazistas na Ucrânia. Se por um lado a Rússia faz um uso político desse tema, é inegável que há mesmo agremiações de extrema direta atuando na Ucrânia, muitas vezes com beneplácito oficial. Às vezes se qualifica o governo ucraniano como governo nazista ou o próprio país de nazista. Não é o caso. A Ucrânia é um país de mais de 40 milhões de habitantes, e a extrema direita fascista é minoritária, embora influente. Há grupos neonazistas, inclusive, que foram absorvidos em estruturas do Estado, e, portanto, o governo ucraniano tolera, fomenta em alguma medida, esses grupos. Nominalmente, o Batalhão Azov é o mais célebre, porque foi integrado formalmente à Guarda Nacional do país, sob o estatuto de “regimento de propósito especial”, depois dos protestos do Euromaidan de 2014, mas há vários outros. E não há dúvida quanto a sua natureza: são uma organizações que utiliza, ostensivamente a simbologia nazista, vocaliza um discurso neonazista e são, portanto, evidentemente grupos neonazistas. 

Já o Pravyi Sektor (Setor Direito), por exemplo, que é o braço político da extrema direita ucraniana e acabou se afastando do governo. Participou da primeira composição do governo após o Euromaidan, mas acabou saindo. Isso significa que eles não têm força? Não, têm uma força considerável, inclusive sobre o governo. Às vezes se escuta: “como é possível que o Zelensky seja chamado de nazista se ele é judeu?” E, de fato, não é correto dizer que o Zelensky seja um neonazista, ele não é, mas chama atenção que, mesmo sendo judeu, não tenha se constrangido em premiar um notório neonazista (Dmytro Kotsyubaylo) envolvido diretamente no massacre da Casa dos Sindicatos em Odessa. 

Então, por um lado, é verdade que o partido Svoboda, a coalizão de grupos da extrema direita, recebeu só 2% dos votos na última eleição. Não dá para dizer que eles comandam o Estado. Mas se o neonazismo é tão pouco representativo na sociedade ucraniana, como explicar que milícias ligadas a esses grupos foram incorporadas nas Forças Armadas? Como explicar a presença deles em cargos estatais, sua forte presença na política, seus líderes recebendo condecorações oficiais? O governo tolera, sim, grupos neonazistas. É possível ao mesmo tempo condenar a invasão russa, sem ignorar, no entanto, as relações escandalosas entre as autoridades ucranianas e grupos abertamente fascistas, que agora estão tomando posse de armamento pesado vindo do Ocidente.

O mais grave, na minha opinião, é que, na Ucrânia, e isso ainda antes mesmo do Euromaidan, desde o governo Yushchenko (2005-2010), há um processo histórico apoiado pelas autoridades no qual figuras ligadas ao colaboracionismo com os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, algumas das quais de fato comprovadamente criminosos de guerra envolvidos em massacre de judeus, da população romena e de poloneses, estão sendo reabilitadas, tendo seus nomes colocados em ruas, em estádios de futebol. A mais famosa dessas figuras é, evidentemente, o Stepan Bandera. Em seu aniversário, primeiro de janeiro, muitas pessoas saem às ruas com seu retrato em passeatas. Foram levantadas na Ucrânia estátuas do Bandera, que foi um líder colaboracionista, chegou a viver na Alemanha por um período, e organizou o movimento em apoio aos invasores hitleristas a partir de 1941, quando a União Soviética era atacada pela Alemanha nazista. Organizou até mesmo legiões da SS compostas por ucranianos. E mesmo depois de ser descartado e preso pelos nazistas, assim que os alemães perdem a iniciativa estratégica, em 1944, ele concorda em ser solto para seguir colaborando com Hitler no combate ao Exército Vermelho.

“Mas talvez o tiro tenha saído pela culatra em alguns aspectos, e uma das consequências da guerra seja, na verdade, o fortalecimento da OTAN. A Finlândia e a Suécia agora demonstram interesse em entrar na aliança militar também, totalmente no sentido contrário dos interesses russos.”

Então temos esses vários elementos que não podem ser ignorados. Às vezes é dito na imprensa que isso não existe, que é apenas propaganda de guerra russa, mas é evidente que existe sim, e apesar desses grupos neonazistas serem um fenômeno minoritário, são uma minoria muito barulhenta e influente. A impressão que tenho é que o governo ucraniano pretendia se utilizar dessas figuras, mobilizar a militância organizada neonazista para seus próprios fins, mantendo-os sob controle, mas permitindo seu crescimento, como parte de um movimento nacionalista ucraniano. É óbvio que essa é uma aposta complicada, perigosíssima. Na história encontramos inúmeros exemplos dessa natureza: uma burguesia liberal acha que conseguiria utilizar como massa de manobra um movimento fascista, o insufla, mas acaba sendo engolida por ele. 

Na minha avaliação, o que tem ocorrido na Ucrânia é que o governo acha que pode se utilizar desses elementos, principalmente no âmbito das Forças Armadas e policiais, e o Ocidente simplesmente ignora. Não é um caso isolado. Dentro da própria União Europeia, dentro da OTAN, temos ainda o exemplo dos países bálticos, principalmente na Letônia, na qual em paradas militares, do dia da independência, por exemplo, desfilam os veteranos com uniformes da SS, utilizando os velhos uniformes da Legião Letã, que era um braço da Alemanha nazista na Letônia durante a II Guerra Mundial. 

Então há uma tolerância, sem dúvidas, por parte do Ocidente, a essa reabilitação de figuras e forças associadas ao fascismo e até ao nazismo na Europa oriental. E essas figuras desfilam ali, em plena União Européia, nos feriados nacionais, ao lado de soldados americanos, inclusive, e não há nenhum constrangimento em relação a isso. Na verdade, pouco se comenta. A criminalização total do comunismo, como aconteceu na própria Ucrânia, vai acontecendo lado a lado com a reabilitação do nazifascismo.

VM 

Também essa mesma mídia ocidental frequentemente coloca a figura de Putin como um herdeiro da União Soviética. Efetivamente, Putin uma vez disse que a dissolução da União Soviética havia sido “a maior tragédia geopolítica do século XX”. De fato, muitos na esquerda latino-americana costumam associar a Putin uma postura anti-imperialista, e até expressar certa admiração por sua liderança. No entanto, chama a atenção que o discurso que Putin fez poucos dias antes da invasão da Ucrânia é um discurso raivosamente anticomunista, antisoviético, e basicamente acusa os bolcheviques de traição à Rússia. 

Chega a afirmar que a Ucrânia deveria ser chamada de “República de Lenin”, porque teria sido uma criação do líder da Revolução Russa. É, sem dúvidas, um tipo de discurso que os velhos bolcheviques denunciariam como uma expressão de “chauvinismo grão-russo”. Como você situa ideologicamente a figura do Putin? Está mais próximo do legado soviético, como afirma a mídia liberal, e parte da esquerda parece concordar, ou, ao contrário, estaria mais próximo de um anticomunismo, de um nacionalismo conservador anti-bolchevique? 

RI 

Algumas declarações de Putin são colocadas muito fora de contexto. Essa que você mencionou é uma delas. Ele de fato disse que o fim da União Soviética foi a maior tragédia geopolítica do século XX. Agora, ele fala isso em um sentido específico, que vai ficar muito claro nos últimos discursos dele, nos quais ele explicita sua visão da história. O que ele quer dizer é que o fim da União Soviética acabou permitindo a criação de uma série de Estados nos moldes criados por Lênin, que foram, nas palavras de Putin, um assalto a populações e territórios historicamente russos. Em um dos discursos até parafraseia o escritor Alexander Soljenítsin, uma figura conhecida por seu anticomunismo raivoso, extremamente antisoviético. A ideia é que a Ucrânia seria um território historicamente russo, e que suas atuais fronteiras são inteiramente artificiais. A culpa do surgimento da Ucrânia como um Estado, que sequer deveria existir, é atribuída aos bolcheviques, e em especial ao próprio Lenin. 

Outra citação do Putin muito veiculada, mas sempre pela metade, é de quando ele disse que “quem não sente falta da União Soviética não tem coração”. Mas esquecem de completar o resto da fala do Putin: “quem sente falta, quem quer voltar à União Soviética, não tem cérebro”. Não há muito espaço para interpretação É um disparate tentar identificar o Putin como um herdeiro do legado soviético. É ele mesmo quem recusa claramente esse legado. Essas declarações – e o próprio presidente dos Estados Unidos disse esses dias que Putin estaria tentando recriar uma União Soviética – não nos ajudam em absoluto a compreender o que está se passando hoje. Da parte da Rússia de Putin não há absolutamente nenhum desejo de retomar nada que se assemelhe à União Soviética. Pelo contrário, se formos nos ater às declarações do próprio Putin, sua ideia é de “corrigir” os erros cometidos, as “traições” cometidas contra a nação russa, no período soviético pelos bolcheviques. 

Para mencionar algumas das colocações durante esses discursos de fevereiro, Putin descreve o leninismo como uma ideologia odiosa que assaltou a nação russa que, com o objetivo de manter o poder a qualquer custo, aceitou indiscriminadamente as demandas das nacionalidades, qualquer demanda que as minorias nacionais fizessem.  Os bolcheviques também teriam sido culpados de impor “condições humilhantes” ao “povo russo”, ao conceder automaticamente a autonomia a todo e qualquer movimento nacional surgido no antigo Império Russo. Ora, o Império Russo czarista era conhecido, não por acaso, como “a prisão dos povos”. 

Na Rússia hoje, a figura do Lênin é muito pouco lembrada. Apesar dos monumentos do Lênin ainda serem numerosos, a figura dele é muito pouco recordada, principalmente se a gente comparar à figura do Stálin. Stálin é muito mais celebrado na Rússia do que Lênin. Isso porque na visão de mundo putinista, o Lênin foi um russofóbico que teria sido, por seu internacionalismo, o grande responsável pela decadência da “nação russa”, o que, na verdade, Lênin identificava – e creio que com muita razão – como o “chauvinismo grão-russo”. Lênin teria desmontado isso, o que, na visão dos nacionalistas russos e do próprio Putin, teria sido extremamente danoso ao “povo russo”.

Há inclusive uma visão, não sem razão de ser, de que a União Soviética, ao contrário de ter sido um império, era mais uma espécie de “império ao contrário”. As relações econômicas do centro, de Moscou, com as demais repúblicas, bem ao contrário de um sistema imperial colonialista padrão, no qual o centro suga os recursos da periferia, eram peculiares. Ocorria justamente o contrário. Foram feitos imensos investimento em repúblicas consideradas atrasadas, como as repúblicas do Cáucaso ou da Ásia Central e, na visão dos nacionalistas russos, em detrimento da própria Rússia, onde muitas vezes, durante o período soviético, o padrão de vida estava abaixo de outras repúblicas soviéticas, como, por exemplo, a Geórgia, a Armênia e, principalmente, as repúblicas bálticas. 

Putin já utilizou, mais uma vez, a categoria “totalitarismo” para qualificar o período soviético, que, na minha avaliação, é uma categoria bastante problemática, anacrônica, contaminada por uma ideologia da Guerra Fria. Tudo isso dá uma ideia de como é equivocado tentar estabelecer essa ligação entre Putin e a União Soviética. Na sua prática e discurso, o que salta aos olhos é o quão anti-comunista Putin de fato é.

VM 

Quais você diria que são os objetivos do Estado russo, e de Putin em particular, com a invasão da Ucrânia? Essa operação foi planejada sob considerável sigilo, seus objetivos não foram claramente publicizados. Quais seriam os objetivos políticos-estratégicos da operação? É uma tentativa de mudança de regime? O que quer a Rússia de Putin, e em que medida está efetivamente alcançando os objetivos nessas semanas de conflito abertamente militar?

RI 

Um dos grandes problemas dessa operação, talvez sua mais grave deficiência, é justamente a falta de objetivos claros. Quando Putin fez o anúncio público da operação, não foi muito claro nas suas intenções e nem mesmo no que consistiria. Deu a entender, em seu discurso, que estaria restrita ao Donbass, mas, poucas horas depois, minutos depois, na verdade, já se viu que não era exatamente assim. Não se tratava apenas de uma atuação defensiva, para proteger as “repúblicas populares” recém reconhecidas. De imediato, a capital, Kiev, foi bombardeada. 

A falta de um objetivo claro está já gerando na Rússia uma certa reticência na maneira como muitos russos estão enxergando essa guerra. Algo que parecia, nos momentos iniciais, um conflito rápido e cirúrgico, foi se revelando outra coisa. Agora está ficando cada vez mais claro que se não houver um entendimento por meio de negociações, o conflito vai se alongar. E quanto mais se alongar, a situação econômica da Rússia, sufocada por sanções, só tende a piorar. 

Quanto às demandas que os russos imporiam, sem dúvidas a primeira delas é a neutralização militar da Ucrânia, ou seja, um compromisso formal, na forma de um tratado escrito oficialmente reconhecido pelo sistema internacional, de que a Ucrânia não irá entrar na OTAN. Mas talvez o tiro tenha saído pela culatra em alguns aspectos, e uma das consequências da guerra seja, na verdade, o fortalecimento da OTAN. A Finlândia e a Suécia agora demonstram interesse em entrar na aliança militar também, totalmente no sentido contrário dos interesses russos. 

Seria, sem dúvida, desejável aos russos a substituição do governo ucraniano, a queda do governo Zelensky. Nesse sentido, também, a invasão, por enquanto, tem contribuído para o efeito contrário, uma vez que a popularidade do Zelensky cresceu acentuadamente: ele passou, praticamente do dia para a noite, de ser uma figura majoritariamente impopular para um presidentes como uma das mais altas taxas de aceitação do mundo. Se em uma coisa Zelensky tem sido muito bem sucedido é em fazer uma publicidade, uma autopromoção como um herói de guerra, que no processo tem apagado elementos mais polêmicos dessa figura que, lembremos, era um comediante. 

Outros objetivos de menor importância, mas que sem dúvidas a Rússia vai tentar obter, é o reconhecimento definitivo da Crimeia como território russo e a garantia de que o canal da Crimeia permaneça aberto. Uma das primeiras ações militares da Rússia nesse conflito foi tomar a barragem que os ucranianos tinham construído para impedir que esse canal, construído no período soviético, abastecesse a península da Crimeia com água. As tropas russas, ocupando o território ucraniano, reabriram esse canal, o que foi muito simbólico, e bastante explorado para fins propagandísticos. Não vi isso ser comentado na imprensa ocidental, mas na Rússia foi um momento muito simbólico: a reabertura do canal para permitir que a água volte, já que havia um problema grave de desabastecimento por causa desse bloqueio realizado pela Ucrânia. E, claro, o reconhecimento do Donbass, das repúblicas separatistas.

VM 

Um dos desdobramentos do episódio do Euromaidan foi a anexação da Crimeia pela Rússia. Mas nesse momento havia então um consenso elevado na sociedade russa de apoio a essa ação, o que levou a uma alta da popularidade de Putin. Dessa vez parece ser um pouco diferente. Como é que você analisa a recepção da guerra pela sociedade russa?

RI 

De fato, não dá para comparar, até mesmo porque a tomada da Criméia representou um dos picos de popularidade do Putin em todos os seus 22 anos de governo. Isso foi muito bem recebido, e acho que um elemento importante dessa aceitação foi o fato de que foi pouco feito sem qualquer derramamento de sangue, de maneira rápida e a Ucrânia sequer teve tempo de dar uma resposta. Era, enfim, uma demanda antiga, a Criméia tem ligações históricas com a Rússia muito mais profundas do que tem com a Ucrânia. Era uma questão muito mal resolvida no fim das contas. É claro que não foi a mesma reação a essa atual situação. Também porque trata-se de um conflito de proporções tais que a Rússia via aí talvez desde as guerras da Chechênia. 

Agora é um contexto internacional, não uma guerra civil, é mais grave. Agora, também não vamos nos iludir. Acho que existe uma tendência da mídia ocidental de focar nas manifestações antiguerra, onde a opinião pública estaria sendo contrária à guerra, mas nesse sentido, a gente não deve se iludir porque ainda há uma ampla base de apoio ao Putin. Não há dúvidas de que há uma considerável parte da população russa apoiando essa intervenção. A tendência, conforme o conflito se estende, é que esse apoio diminua. Os custos já estão chegando e isso tende a aumentar. São situações como outras passadas nas quais a própria Rússia, a União Soviética, se envolveu, conflitos que foram se estendendo e geraram situações como, foi comparado aí, ao Afeganistão, que foi até um dos motivos centrais da dissolução da União Soviética. Então é uma situação delicada. E, sem dúvida, em um primeiro momento, ela foi recebida com muito menos apoio em relação ao que aconteceu na Criméia, porque são momentos bastante distintos. 

Veremos nos próximos dias, nas próximas semanas. O mais importante, o que eu acho é que querendo ou não, o Putin ainda tem um apoio muito grande graças a recuperação que ele trouxe ao país, em relação a década de 90 que foi uma tragédia humanitária, social e econômica para a Rússia. Acho também importante a gente observar a reação das elites. Os interesses dos oligarcas russos já estão sendo ameaçados pelas sanções e a erosão dessa base de sustentação contínua é potencialmente bastante perigosa para a manutenção do poder de Putin.

VM 

Qual é a relação dos comunistas com Putin? O reconhecimento das repúblicas populares do Donbass foi feito basicamente por unanimidade no Parlamento. Não teve nenhuma resistência séria. O Partido Comunista russo foi o autor da proposta parlamentar. Mas desde então alguns parlamentares do Partido Comunista já começaram a vocalizar críticas em relação à ofensiva militar, ressaltando que haviam votado pelo reconhecimento das repúblicas do Donbass, mas não pela invasão da Ucrânia. O que isso diz sobre a relação do Putin com o Partido Comunista?

RI 

O Partido Comunista, com relação ao Putin, é na verdade uma oposição tolerada. É o único partido de oposição no parlamento, mas ainda assim ele é bastante diminuto em relação ao partido governista, o Rússia Unida, que sozinho controla mais de 70% das cadeiras da Duma. E de fato o Partido Comunista não se opõe ao governo em questões de real importância. Há algumas exceções e, bem, vou dar um exemplo de uma dessas exceções que não depõe em favor do Partido. Justamente o Partido Comunista da Federação Russa aumentou bastante a sua fração dentro do Parlamento nas últimas eleições, ao se opor ao governo Putin em relação a medidas de combate à pandemia, se opondo à obrigatoriedade da vacina. Inclusive em determinado momento foi espalhada uma propaganda pelo Partido Comunista que afirmava que a pandemia seria uma conspiração da burguesia internacional, do Bill Gates, e teorias da conspiração nesse sentido. Portanto, o Partido Comunista tomou essa posição profundamente deplorável em relação à pandemia e à vacinação em oposição ao Putin, que por mais que tenha feito um trabalho bastante ineficiente no combate à pandemia, ao menos, tentou impor algumas restrições e incentivar a vacinação. A Rússia foi um dos países com menor adesão à vacinação do mundo. Então, o Partido Comunista tem questões graves que precisam ser olhadas. 

Claro que não é o único Partido Comunista do país, há outros movimentos, mas é o único representado no parlamento e, sem dúvida, é o maior. Agora dentro do próprio Partido Comunista, se pode notar, não é um partido monolítico, longe disso. O líder, Guennadi Ziuganov está aí desde o final da União Soviética e é uma figura com posições bastante controversas, como a proximidade com a Igreja Ortodoxa e com outras forças reacionárias. Porém, há um movimento de renovação vindo de dentro do partido e a situação na Ucrânia evidenciou isso, porque o Ziuganov em um primeiro momento apoiou e inclusive soltou notas apoiando a invasão à Ucrânia e depois alguns deputados do Partido Comunista demonstraram discordâncias. 

Então, não é um partido monolítico, a gente tem que analisar as contradições dentro do partido. Outro exemplo foi o Cazaquistão, que evidenciou a indecisão de Ziuganov. Em um primeiro momento, ele condenou a intervenção russa no Cazaquistão, agora em janeiro deste ano, para depois passar a apoiá-la. Enfim, as posições às vezes não são muito claras no Partido Comunista e essa situação da Ucrânia também demonstrou uma profunda discordância interna.

Sobre os autores

é é historiador pela Universidade Estatal em Moscou.

é professor da Universidade Federal do ABC e diretor de desenvolvimento da Jacobin Brasil.

Cierre

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Published in América do Sul, Entrevista, Europa, Guerra e imperialismo and Imprensa

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