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Membro do França Insubmissa e o líder da coalizão de esquerda Jean-Luc Mélenchon posa com militantes dos partidos Socialista, Verde e Comunista em Poitiers, França, 2 de junho de 2022. (YOHAN BONNET / AFP via Getty Images)

Mélenchon pode ganhar o parlamento com uma agenda radical

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Após quase ir para o segundo turno presidencial, Jean-Luc Mélenchon conseguiu um grande feito ao unir a esquerda francesa para emparedar a falsa polaridade entre neoliberais e a extrema direita. Agora, socialistas, comunistas e verdes estão sob a liderança do seu França Insubmissa e podem controlar o parlamento - abrindo caminho para Mélenchon virar primeiro-ministro.

UMA ENTREVISTA DE

Hugo Albuquerque

Jean-Luc Mélenchon chegou em terceiro lugar nas eleições presidenciais francesa, deixando de ir ao segundo turno por muito pouco. Mas seu chamado para esquerdas se unirem para disputar as eleições parlamentares, entre 12 e 19 junho, como um “terceiro turno”, pelo jeito, funcionou. Socialistas, comunistas, verdes e insubmissos se uniram na Nova União Popular Ecologista e Social (Nupes), que está muito bem nas pesquisas, disputando a ponta com os liberais macronistas, cujo partido se chama agora Renascença, e à frente da extrema direita de Marine Le Pen. 

Foi justamente a falta de união entre as esquerdas que permitiu que a candidata de extrema direita, Marine Le Pen, fosse disputar o segundo turno presidencial com o liberal e atual presidente, Emmanuel Macron, que no fim foi reeleito. Se Mélenchon, bem ou mal, obteve sua melhor colocação histórica, comunistas e socialistas foram devastados eleitoralmente, o que os levou a se moverem.

O trunfo dessa união para o legislativo é poder vencer a eleição parlamentar e, assim, gerar a chamada “coabitação”, isto é, produzir uma maioria contrária ao presidente em exercício para indicar o novo primeiro-ministro – que seria Mélenchon. Esse fenômeno já foi mais comum na França, quando os gaulistas perderam a hegemonia completa da Quinta República (1958 -) nos anos 1980, com os socialistas disputando cabeça a cabeça a presidência — o que gerou parlamentos de direita com presidentes de esquerda e vice-versa.

François Mitterrand, primeiro presidente socialista eleito, teve de aceitar o direitista Jacques Chirac como premiê entre 1986 e 1988 e, também, Édouard Balladour entre 1993 e 1995. Depois, Chirac foi eleito presidente e teve de aceitar o socialista Lionel Jospin entre 1997 e 2002 como premiê.

Em 2002, no entanto, as eleições para presidente e ao parlamento passaram sempre a ocorrer no mesmo ano, o que voltou a se repetir com o encurtamento do mandato presidencial para cinco anos. Disputada poucos meses depois da eleição presidencial, as eleições parlamentares passaram a ter pouco apelo, sobretudo entre os eleitores das forças derrotadas nas presidenciais.

Portanto, Nicolas Sarkozy, François Hollande e Emmanuel Macron tiveram grandes – e artificiais – maiorias no parlamento, tornando a Assembleia Nacional Francesa uma extensão do gabinete presidencial – algo, inclusive, facilitado pelo histriônico sistema eleitoral distrital puro de dois turnos, retomado em 1958 para diminuir o espaço do Partido Comunista Francês, até então uma das maiores forças, em termos relativos, do Parlamento. 

Dessa forma, os três últimos governos franceses foram arautos do neoliberalismo em estado puro, negando a tradição francesa de autonomia nas relações internacionais e de um capitalismo “social” e mediado pela República – o que foi facilitado pela falta de oposição parlamentar. Mélenchon, dessa vez, faz um movimento decisivo para emparedar a falsa polaridade entre neoliberais vitoriosos e a extrema direita e, assim, ameaçar a artificial tranquilidade de Macron.

Para entender esse cenário, a Jacobin Brasil conversou com o cientista político e professor da Universidade Federal do Pará Jean-François Y. Deluchey, para nos ajuda a enxergar as possibilidades, significados e caminhos dessa disputa política em um mundo cada vez mais conflagrado.


HA

Depois de uma eleição presidencial decidida entre liberalismo de Macron e o neofascismo de Marine Le Pen, agora as maiores forças da esquerda francesa se reuniram para as eleições legislativas. O que isso significa?

JF

Nas eleições presidenciais francesas do 10 de abril 2022, o neoliberal Emmanuel Macron (28%) e a neofascista Marine Le Pen (23%) se qualificaram no segundo turno, mas o líder da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, obteve 22% dos votos, ficando apenas 420.000 votos atrás da Le Pen. Os partidos que tradicionalmente se revezavam no poder, os Republicanos (direita) e o Partido Socialista (social-democrata), quase sumiram do mapa eleitoral com respectivamente 4,8% e 1,75%. Nestas condições, três blocos encontram-se em luta no cenário político francês: a direita liderada por Macron com 33% dos votos, a extrema direita de Le Pen e Éric Zemmour com 32%, e a esquerda liderada por Mélenchon, que somou 31%. 

No segundo turno, no dia 24 de abril, graças aos votos dos eleitores de esquerda, Macron venceu com 17% de diferença (58%), mas esse voto não significou um voto de adesão ao programa político antissocial do Macron. Os franceses apenas quiseram evitar que Le Pen ocupasse o palácio presidencial durante mais cinco anos.

“A França é um país semiparlamentarista. Isto significa que o presidente é o chefe de Estado, das Forças Armadas e assina os tratados internacionais, mas por outro lado, o primeiro-ministro é quem dirige de fato a política governamental.”

Neste contexto, as eleições legislativas da França estão previstas para algumas semanas depois, dias 12 e 19 de junho. Temos de lembrar que a França é um país semiparlamentarista. Isto significa que o presidente é o chefe de Estado, das Forças Armadas e assina os tratados internacionais, mas por outro lado, o primeiro-ministro, com maioria no Parlamento, é quem dirige de fato a política governamental. A França já conheceu vários períodos de “coabitação” entre presidentes e primeiros-ministros opostos ideologicamente: o presidente socialista Mitterrand com Chirac e Balladur (entre 1986 e 1988 e entre 1993 e 1995), e o presidente Chirac com Jospin entre 1997 e 2002. Mesmo assim, essas experiências sempre foram consideradas atípicas na história da Quinta República francesa, inaugurada pelo General de Gaulle em 1958. 

Na noite do primeiro turno da eleição presidencial, no último dia 10 de abril de 2022, aconteceu um evento inusitado na história republicana francesa. Face à divisão do país em três blocos, Jean-Luc Mélenchon convidou os franceses a continuar na luta eleitoral no terceiro turno das eleições presidenciais, isto é, nas eleições legislativas de junho. 

Ninguém antes tinha designado as eleições legislativas como um terceiro turno das eleições presidenciais porque, tradicionalmente, espera-se que os eleitores franceses deem uma maioria no parlamento ao presidente eleito. Desde então, Mélenchon conseguiu criar uma dinâmica positiva ao redor de seu projeto, pedindo aos eleitores: “me elejam primeiro-ministro!” Como os outros partidos de esquerda apenas tinham reunido entre 0,7 e 4,6% dos votos, Mélenchon conseguiu reunir em sua volta uma Nova União Popular Ecológica e Social, a Nupes, para apresentar candidatos comuns nas 577 circunscrições legislativas do país. 

A Nupes se formou em 14 dias, após rodas de negociação acirradas entre a França Insubmissa do Mélenchon e os outros partidos de esquerda. Pela União, todos concordaram em nomear Mélenchon como primeiro-ministro caso fossem vitoriosos, e elaboraram uma estratégia e um programa político comum para as eleições legislativas de junho. Pela primeira vez da história da Quinta República, a esquerda francesa irá apresentar candidatos comuns e se apresentar unida frente aos eleitores com um objetivo: impor uma coabitação ao presidente Macron. 

HA

Como você avalia as chances dessa união dentro de um sistema eleitoral complexo como o francês?

JF

O desafio é grande. A França Insubmissa saiu vitoriosa de sua campanha de primeiro turno, apesar de ter ficado em terceiro lugar. Partindo de longe nas pesquisas de opinião (11%), ela conseguiu duplicar o seu potencial eleitoral, disputando vaga para o segundo turno, sem ter apoio de nenhum outro partido de esquerda (nem do Partido Comunista Francês que tinha apoiado a candidatura do Mélenchon em 2012 e 2017). 

Sem aliados, a estratégia de Mélenchon consistiu em convocar uma União Popular pela base, buscando convencer os abstencionistas (26-28% dos eleitores) a apoiar um projeto político de transformação profunda da sociedade francesa: uma 6ª República mais igualitária e ecologicamente responsável. Essa estratégia funcionou porque Mélenchon conseguiu reunir 22% dos votos, isto é, os dois terços do total dos votos da esquerda. 

Dois ensinamentos claros saíram do primeiro turno, dando razão à estratégia adotada. Primeiro, os eleitores de esquerda escolheram um programa de ruptura e rechaçaram as tradicionais propostas social-democratas do Partido Socialista. Segundo, revelou-se certeira a estratégia de tentar mobilizar setores da sociedade francesa que não estavam mais interessados em participar dos processos eleitorais, particularmente os jovens e os residentes das periferias urbanas. 

“Como reação a uma possível vitória da esquerda nas eleições legislativas, a mídia mobiliza diariamente os temas da imigração, da guerra na Ucrânia, da insegurança urbana, da defesa dos valores cristãos contra os ‘islamo-esquerdistas’.”

Agora, existem alguns obstáculos e algumas forças que, dependendo do que ocorrerá entre 12 e 19 de junho, podem confirmar um parlamento submisso ao Macron, ou eleger uma nova maioria, qualificando Mélenchon como primeiro-ministro. Entre os obstáculos, alguns são comuns ao Brasil. O primeiro é uma mídia hegemônica que está completamente favorável ao Macron, e defende pautas políticas de direita e extrema direita. 

Como reação a uma possível vitória da esquerda nas eleições legislativas, a mídia francesa mobiliza diariamente os temas da imigração, da guerra na Ucrânia, da insegurança urbana, da defesa dos valores cristãos contra a “ideologia woke”, os “islamo-esquerdistas”, e contra uma fantasiosa “grande substituição” dos brancos cristãos pelos árabes muçulmanos. Por outro lado, Mélenchon conseguiu também impor alguns de seus temas na pauta midiática: aquecimento global, poder de compra, desigualdades sociais e déficit democrático. 

O segundo obstáculo, ligado fortemente a este primeiro, é um ambiente social depressivo que leva o eleitor a procurar segurança e estabilidade. A França, como o Brasil, conhece uma degradação acelerada do poder de compra. Junto com a guerra na Ucrânia, essa degradação criou na população francesa um grande medo em relação ao futuro. Dependendo da dinâmica da campanha, este obstáculo pode se tornar uma força para uma esquerda que propõe uma ruptura com a política antissocial do Macron. 

O terceiro obstáculo é a desmobilização eleitoral entre as eleições presidenciais e legislativas. Se a juventude e as periferias francesas foram bem mobilizadas pela campanha de primeiro turno do Mélenchon, é possível que, com a recente vitória do Macron, ocorra uma desmobilização daqueles que tradicionalmente se abstêm de votar. Por isto, a estratégia de Mélenchon de convocar o povo francês para um terceiro turno, na mesma noite dos resultados do primeiro turno, foi acertada.

Mélenchon quis dar continuidade à dinâmica que o levou a reunir 22% dos votos, e encarnar o principal opositor a Macron, apesar da qualificação da Le Pen ao segundo turno. A questão da mobilização eleitoral é certamente a chave principal para ter sucesso e conquistar o governo no final de junho. 

O quarto obstáculo poderia ser ligado ao tipo de escrutínio utilizado nas eleições legislativas francesas: um sistema majoritário de dois turnos, onde os dois (ou três) candidatos mais votados concorrem no segundo turno. Para se manter como candidato entre os dois turnos, há de ter pelo menos 12,5% dos votos do total dos eleitores inscritos no registro eleitoral. Nessas condições, há chances de ter três ou quatro candidatos concorrendo no segundo turno em certos distritos eleitorais. 

Esse sistema tem duas consequências. Primeiro, ele favorece os “notáveis” e sua implantação local, ao detrimento de considerações ligadas à defesa de um projeto político nacional. Isto pode trazer problemas ao partido de Mélenchon cujo ponto forte é a qualidade do programa político e cuja fraqueza é a falta de representantes eleitos nos territórios (municípios, departamentos e regiões). 

Para amenizar esta fraqueza, Mélenchon ofereceu 100 das 577 circunscrições ao Partido Socialista francês que, apesar de ter reunido menos de 2% em volta de seu programa social-democrata, tem uma implantação muito maior de que a França Insubmissa nos territórios. Por fim, o grande desafio é a existência desses três blocos. Quem, de Macron ou de Mélenchon, conseguirá captar melhor os eleitores cujos candidatos estiverem desqualificados no primeiro turno? Será que os eleitores da Le Pen votariam para Macron ou para Mélenchon? Esta vai ser outra situação interessante de se observar nas eleições legislativas francesas. 

HA

Quais os principais impactos do conflito entre Rússia e Ucrânia para a França e como isso tem ressoado no debate político?

JF

O impacto foi, evidentemente, enorme! Várias coisas interessantes aconteceram nas eleições presidenciais em relação à guerra na Ucrânia. Primeiro, Macron que não fez campanha e nenhum debate de primeiro turno, conseguiu se aproveitar da guerra para construir para si uma imagem de protetor da nação. Ajudado por uma mídia que transformou os horrores da guerra em uma novela macabra, Macron apareceu como um chefe de Estado enquanto seus opositores apareciam como meros competidores, ou até como amigos do Putin. 

“Os dois candidatos que podem ganhar a eleição, Macron e Mélenchon, têm duas posições completamente opostas em relação à OTAN.”

A mídia mainstream da França tentou desqualificar sistematicamente qualquer análise não maniqueísta sobre o conflito. A guerra beneficiou claramente Macron, criando para ele a oportunidade de não entrar em nenhum embate direto com os outros candidatos, embate que poderia ter exposto o caráter antissocial de seu programa político. Por outro lado, a guerra conseguiu pautar a eleição para bem longe dos temas tradicionais da direita que são a insegurança e a imigração. E cada candidato pôde ser visto como possível ocupante do palácio presidencial, com diferentes propostas, algumas fantasiosas, outras bem interessantes. 

HA

O que pode mudar na relação entre França e OTAN, a depender do resultado das eleições legislativas francesas?

JF

Esta eleição legislativa é fundamental deste ponto de vista. Os dois candidatos que podem ganhar a eleição, Macron e Mélenchon, têm duas posições completamente opostas em relação à OTAN. Macron quer consolidar o papel da França na OTAN, ao detrimento, por exemplo, da criação de um sistema de defesa comum da União Europeia. Mélenchon, por sua vez, quer que a França saia da OTAN, que ele considera como uma organização obsoleta do tempo da Guerra Fria, que coloca a França em posição de subordinação em relação aos Estados Unidos. 

Não sabemos, aliás, o que vai acontecer em caso de coabitação entre Mélenchon e Macron, mas o presidente Macron, enquanto chefe de Estado, terá toda possibilidade de vetar a saída da França do comando da OTAN. Nessas condições, e levando em consideração que os sociais-democratas compõem a nova união eleitoral se opõem a este projeto, Mélenchon informou recentemente estar disposto a voltar atrás de seu projeto de saída da OTAN. 

Quero lembrar que a França foi fundadora da OTAN em 1949, mas o General de Gaulle saiu do comando unificado da OTAN em 1966 para inaugurar uma política de independência da França no cenário internacional. O socialista François Mitterrand e o gaullista Jacques Chirac deram continuidade a essa política até os anos 2000. Foi o neoliberal Nicolas Sarkozy que reintegrou a França no comando da OTAN em 2009, seguido por François Hollande e Emmanuel Macron. Desta forma, temos um claro redirecionamento da política de defesa francesa entre os soberanistas de de Gaulle a Mélenchon, e os neoliberais e social-liberais que escolheram atrelar a França à política externa dos Estados Unidos. 

“Mélenchon recusa a obediência aos tratados europeus que obriguem o governo francês a adotar políticas antissociais e antiecológicas. Ele quer que a França desenvolva uma posição de ‘não-alinhado’.”

Entre Macron e Mélenchon, há uma oposição forte de visão sobre o papel que a França deve desempenhar no cenário nacional. Macron quer uma França atrelada aos Estados Unidos, e partícipe ativa de uma União Europeia pouco democrática e concentrada numa pauta neoliberal. Neste contexto, Mélenchon recusa a obediência aos tratados europeus que obriguem o governo francês a adotar políticas antissociais e antiecológicas. Ele quer que a França desenvolva uma posição de “não-alinhado” e desenvolva uma “diplomacia altermundista” com os países do Sul Global, notadamente com América Latina (que ele considera como modelo de experiências políticas), e com as Áfricas do norte e subsaariana. Mélenchon quer também atuar na consagração do ar e da água como bens comuns mundiais e da criação de uma moeda universal que substituiria o dólar.

Em relação à segurança internacional, Mélenchon defende uma defesa nacional autônoma e soberana apoiada, para além da dissuasão nuclear, nas novas tecnologias para fazer frente às novas ameaças sobre a soberania: proteção do mundo marítimo (França tem o segundo domínio mundial), soberania digital, controle do espaço e das telecomunicações por satélite e etc.. Mélenchon está militando há anos por soluções diplomáticas e, especialmente, propôs uma grande conferência mundial sobre as fronteiras na Europa para resolver os múltiplos problemas diplomáticos pendentes na região. Neste aspecto, a invasão da Ucrânia pela Rússia lhe deu razão. 

HA

Macron parece esgotado e só tem alguma força por contraste com a extrema direita. Mesmo do ponto de vista da política convencional, o que ele teria para oferecer pelos próximos cinco anos?

JF

Eu acho que sua análise está correta: fazia muito tempo não víamos, na França, um presidente recentemente eleito com tão pouco apoio popular para executar sua política, apesar de sua eleição confortável contra Le Pen. A realidade é que o Macron não fez campanha e não foi claro na exposição de seu projeto político durante as eleições presidenciais. O povo francês não sabe muito bem o que ele tem em mente, mas esta falta de clareza foi proposital.

Em plena companha eleitoral, Macron não podia colocar às vistas a natureza profundamente antipopular de seu projeto político. As poucas reformas que ele anunciou durante a campanha são todas antissociais: elevar a idade mínima para se aposentar aos 65 anos, impor um trabalho forçado aos beneficiários da renda social mínima, flexibilização trabalhista, privatização progressiva do setor da educação, política fiscal de forte austeridade para reembolsar os gastos públicos contraídos no início da pandemia de Covid-19 e etc.. A sua política, fragilmente dissimulada, é claramente uma escolha neoliberal, de apoio à renda do capital contra a renda do trabalho. O caráter violentamente antipopular desta política poderia colocar em xeque a obtenção de uma maioria governamental no parlamento para o Macron. 

Para contrabalancear essas políticas antissociais, Macron fez anúncios puramente marqueteiros. Primeiro, reafirmou que a igualdade entre homens e mulheres iam ser uma prioridade de seu governo. O problema é que ele tinha prometido exatamente a mesma coisa em 2017, sem sucesso. Ademais, no novo governo da primeira-ministra Elisabeth Borne, vários ministros estão enfrentando uma onda de denúncias de violências sexuais contra mulheres. No plano da reforma política, Macron voltou a propor instaurar as eleições proporcionais para o parlamento, o que também tinha prometido em 2017 e não realizou. Também disse que a questão ecológica ia ser prioridade de seu governo apesar de ter adotado políticas profundamente anti-ecológicas nos últimos cinco anos. 

Macron até propôs realizar uma “planificação ecológica”, projeto extraído do programa de… Jean-Luc Mélenchon! Também irá propor uma grande lei de apoio ao poder de compra, mas planeja promulgá-la somente depois das eleições legislativas. Essa aparente falta de consistência programática e o caráter visivelmente antissocial de seu projeto governamental para os próximos cinco anos podem ser decisivos nas eleições futuras.

HA 

O que explica a sujeição da Europa aos Estados Unidos sem maiores questionamentos? O quanto essa dinâmica se sustentaria ao longo dos próximos anos?

JF

É muito difícil responder à sua pergunta. Eu que sou francês, e moro no Brasil há 20 anos, aprendi muito sobre o lugar da França no mundo observando-a de fora. Os franceses que moram na França têm uma visão muito eurocentrista e ocidentalista, visão reforçada pela mídia hegemônica. Como já falei, a aliança entre essa mídia ideológica e a sucessão de governos neoliberais e social-liberais na França nos últimos tempos deixou os franceses atordoados em relação aos grandes equilíbrios mundiais, geopolíticos e econômicos. Parece que existe apenas uma via, um modo de governança possível, emancipado da polêmica política e da comparação necessária entre diversas visões do mundo. 

Desde 2009, na sequência da crise de 2008, a governamentalidade neoliberal impôs-se de forma avassaladora. Esta fase também teve de ser relacionada com os atentados feitos nos anos 2000 contra a soberania popular dos europeus e a influência crescente das instituições europeias e da diplomacia norte-americana na escolha das políticas governamentais dos países da Europa. 

“Em 2007, os governos europeus, sem passar pelo voto popular, aumentaram o número de países da União Europeia de 17 a 27, integrando grande parte dos países da Europa Oriental.”

Devo lembrar, por exemplo, que os povos francês e holandês, por via de referendo, tinham recusado o projeto de Constituição europeia em 2005. Em 2007, os governos europeus preparam outro tratado (Tratado de Lisboa) retomando as principais proposições do projeto de Constituição, e o presidente Nicolas Sarkozy modifica a Constituição francesa via parlamento em 2008 para impor aos franceses um projeto constitucional que eles tinham recusado por via democrática. 

Em 2007, os governos europeus, sem passar pelo voto popular, aumentaram o número de países da União Europeia de 17 a 27, integrando grande parte dos países da Europa Oriental. Em janeiro de 2015, em plena crise da dívida grega, Jean-Claude Juncker, o presidente da Comissão Europeia disse essa frase chocante: “Não pode haver escolha democrática contra os tratados europeus.” 

A essa descrença generalizada na soberania popular, acrescentam-se na França uma confusão referente ao que está em jogo na disputa político-ideológica, e particularmente nas eleições. A alternância entre os governos de Sarkozy, Hollande e Macron foi extremamente danosa para a confiança dos franceses no processo eleitoral. Em 2012, quando François Hollande, candidato a presidência pelo Partido Socialista, anuncia que ele ia lutar contra a finança, esse grande adversário “sem nome, sem rosto e sem partido”, nada levava a crer que o governo dele ia ser tão marcado à direita. Em 2017, o seu ministro das finanças, Emmanuel Macron, lança sua candidatura à eleição presidencial, arguindo que seu projeto político não é “nem de esquerda nem de direita”. Essas confusões ideológicas contribuíram a esvaziar o conceito de “esquerda” e a polarização ideológica entre dois campos ideológicos, bem como para desacreditar que o voto podia trazer qualquer diferença em termos de política governamental na França. 

Também devemos lembrar que desde os atentados terroristas de 2015, a França vive sob estado permanente de emergência, o qual foi até incorporado à legislação comum francesa no mandato do presidente Hollande. Esta situação também contribui no ambiente social degradado da França, e no desenvolvimento de medos sociais, especialmente em relação à população muçulmana e imigrante. 

“Os coletes amarelos expressaram uma revolta social que aliava os habitantes conservadores das áreas rurais e periurbanas com a juventude dos centros urbanos e das periferias.”

Face a esses medos e a essa perda de referências ideológicas, houve também sinais de resistência. O “apartidário” movimento dos coletes amarelos, que lutou em 2018 e 2019 contra os ataques do Macron ao poder de compra dos trabalhadores foi violentamente reprimido pela polícia francesa. Os coletes amarelos expressaram uma revolta social que aliava os habitantes conservadores das áreas rurais e periurbanas com a juventude dos centros urbanos e das periferias. 

Parcialmente, foi esta cólera popular que mobilizou os eleitores nas últimas eleições para votar por Le Pen (zonas rurais e regiões industriais degradadas) ou por Mélenchon (juventude e periferias urbanas). Somando os 32% do bloco de extrema direita aos 31% do bloco de esquerda, temos dois terços da população francesa que se opõem ao projeto europeu tal como ele desenhado, e que se opõe ao projeto de Macron de atrelar cada vez mais a França à política externa estadunidense. 

O problema é que, pelo escrutínio majoritário, e pela organização política da República francesa, esses dois terços da população podem sofrer uma política contrária aos seus desejos durante os cinco anos por virem. Eis o maior desafio que a França irá enfrentar nas eleições legislativas de 12 e 19 de junho.  

Caso Mélenchon seja eleito primeiro-ministro, poderemos assistir a um novo ciclo sociopolítico e uma refundação profunda das instituições francesas e de seu papel no cenário internacional. Caso Macron ganhe a eleição, é provável que a sua situação ficará rapidamente insustentável socialmente, porque seu projeto antipopular não poderá ser realizado sem grandes tumultos sociais e políticos ao longo desses próximos cinco anos. Diante desses desafios, a gente pode entender melhor porque as eleições legislativas representam um verdadeiro terceiro turno das eleições presidenciais. 

Sobre os autores

é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Pará e conselheiro eleito da Assembleia dos Franceses do Estrangeiro e militante do movimento Franca Insubmissa e da Nova União Popular Ecológica e Social.

é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).

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Published in Entrevista, Europa, Legislação and Política

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