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Os veículos elétricos não são uma solução direta para um setor de transporte renovável e estão nos distraindo das prioridades energéticas que podem realmente deter as mudanças climáticas. (Tesla Fans Schweiz / Unsplash)

Os carros elétricos não vão nos salvar

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Tradução
Caroline Rodrigues

O carro elétrico será uma parte importante na transição verde. Mas nosso principal foco deve ser a mobilidade coletiva verde, como o transporte público, não a massificação dos carros individuais.

Apesar do compromisso de limitar o aquecimento global a 1,5 graus Celsius estabelecido pelo Acordo de Paris, a última avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (PIMC) deixou bem claro: sem cortes radicais nas emissões de gases de efeito estufa, a Terra deverá atingir esse limiar de 1,5 graus Celsius muito em breve – depois ultrapassá-lo.

Como o setor energético ainda detém a maior responsabilidade pelas emissões e seus impactos, a eletrificação é mencionada frequentemente como uma forma essencial de reduzir radicalmente as emissões, especialmente diminuindo a dependência do petróleo, carvão e gás. Isto significa uma descarbonização geral do setor energético – incluindo cortes nas emissões de CH4 e N2O – que vai além da transição da rede elétrica e térmica. A eletrificação na transição energética também inclui a fabricação e construção e, é claro, o transporte.

A geração de eletricidade e calor depende principalmente do carvão, turfa e xisto betuminoso, enquanto que o transporte depende muito do petróleo. A transição dos combustíveis fósseis para a rede elétrica tem muitas vezes significado uma mistura de solar e eólica, combinada com energia hidrelétrica e nuclear em algumas áreas. A transição do setor de transportes, por outro lado, tende a implicar duas coisas: investimentos em energia renovável para combustível líquido, hidrogênio, biocombustíveis e outros quando se trata de aviação e veículos elétricos. Mas devemos ser claros: os veículos elétricos não são uma solução simples para um setor de transporte renovável e estão nos distraindo das prioridades energéticas que poderiam realmente deter a mudança climática.

Os carros elétricos estão sequestrando a conversa

O mercado de veículos elétricos (VE) cresceu significativamente na última década, com cerca de 10,2 milhões de carros elétricos no final de 2020. Em comparação, os dados para o mesmo ano indicam 0,4 milhões de veículos de consumo leve e 0,6 milhões de ônibus. O foco principal tem sido claramente no carro elétrico de passageiros para indivíduos e residências. As vendas de carros elétricos estão crescendo principalmente na China, Europa e Estados Unidos, e uma estimativa moderada da Agência Internacional de Energia sugere cerca de 135 milhões de VE nas ruas até 2030. A Agência Internacional de Energia Renovável projeta 200 milhões de VE de passageiros.

Esta é, naturalmente, uma pequena porcentagem da atual frota rodoviária global de cerca de 1,4 bilhões de veículos de passageiros e comerciais. Como esta frota deve chegar a 2 bilhões de unidades até 2040, isso também significa que os veículos elétricos não estão nem perto de substituir de fato os carros convencionais. No futuro próximo, o transporte rodoviário exigirá quantidades de combustíveis fósseis que o planeta não pode pagar enquanto torna o tráfego em áreas urbanas ainda mais densas do que antes.

Em 2006, o diretor Chris Paine lançou o documentário Quem matou o carro elétrico?. O filme começa com o cenário do aquecimento global, já que os carros convencionais e seus motores a combustível fóssil continuam a emitir gases de efeito estufa para a atmosfera. Os carros elétricos pessoais foram comercializados nos anos 90 na Califórnia, mas tinham praticamente desaparecido uma década depois. A rápida extinção dos carros elétricos pessoais estava ligada à pressão da indústria automobilística e petrolífera, assim como o governo de George W. Bush.

Em 2011, o mesmo diretor lançou A vingança do carro elétrico. Desta vez, uma das estrelas do documentário parece ser Elon Musk e sua luta para que a Tesla cumpra suas promessas de carros elétricos potentes e desejáveis. Juntos, os filmes posicionam a indústria de combustíveis fósseis e seus carros convencionais de um lado, contribuindo para o aquecimento global, e os veículos elétricos do outro lado como uma resposta ao aquecimento global.

“O carro ainda é a estrela do show – ele só precisa ser resgatado dos combustíveis fósseis para uma nova era de centrais elétricas em cada quarteirão.”

Como a eletrificação é tão importante para mitigar as emissões do setor energético, parece lógico que os carros convencionais sejam substituídos por carros elétricos que possam ter o mesmo desempenho, sejam atraentes para os consumidores, ao mesmo tempo em que sejam favoráveis ao clima e aliviem a culpa que os proprietários de carros enfrentam quando confrontados com cálculos individuais de emissão de carbono. A propaganda do carro elétrico como alternativa aos veículos convencionais poluentes cria uma narrativa poderosa na qual as emissões de transporte podem ser resolvidas através da inovação do mercado, subsídios e incentivos fiscais, e escolhas inteligentes e ecológicas do consumidor. O carro como meio de transporte não é questionado nem o número de carros nas ruas e outros problemas ligados a automóveis pessoais, como congestionamentos e acidentes. O carro ainda é a estrela do show – ele só precisa ser resgatado dos combustíveis fósseis para uma nova era de centrais elétricas em cada quarteirão.

Embora empresas como a General Motors (GM) tenham prometido a eliminação progressiva dos carros que funcionam com combustíveis fósseis até 2035, toda a indústria automobilística não mudará dos veículos convencionais para os veículos elétricos nas próximas décadas. A tendência é de diversificação, com versões elétricas dos principais modelos de carros por cada montadora, além das empresas de VE.

Se observarmos as metas para a eletrificação do setor de transporte, os carros elétricos de passageiros são vistos não como concorrência a metas para o trânsito elétrico, mas como investimentos complementares e desejáveis. Na realidade, a Comissão Europeia trata os carros elétricos de passageiros como uma tecnologia disruptiva importante na matriz da mobilidade elétrica. Isto exigirá maiores investimentos públicos em infraestrutura de carregamento do que um foco muito mais pesado no trânsito elétrico – mas a quantidade de recursos necessários para tal mudança que centraliza os carros pessoais dificilmente é questionada.

Um problema de prioridades

A propaganda sobre os veículos elétricos (VE) de passageiros é alimentada por campanhas de marketing que visam escolhas individuais do consumidor em vez de uma profunda transformação do setor de transporte. As grandes montadoras querem manter seu fluxo de lucro e diminuir a ameaça apresentada pelas campanhas para restringir os carros de passageiros em favor de investimentos em ônibus, trens, ciclovias e cidades mais transitáveis. É um problema de prioridades para o transporte e o planejamento urbano, mas também um problema de disponibilidade de recursos.

Quando o Banco Mundial publicou seu relatório de 2020 sobre a intensidade mineral da transição energética, estimou-se um grande crescimento na demanda de minerais estratégicos para tecnologias de baixo carbono. Só a produção de grafite e lítio teria que crescer pelo menos 500% para atender à demanda de transição da infraestrutura energética atual para longe dos combustíveis fósseis. O relatório exclui de suas estimativas a necessidade de fornecer nova infraestrutura para cerca de 840 milhões de pessoas, bem como a demanda de minerais para colocar 135 milhões de carros elétricos a mais nas ruas na próxima década. Isto significa que a demanda real para a transição da infraestrutura antiga e a expansão e construção de novas infraestruturas seria muito maior.

Mas os “minerais verdes” são limitados e sua extração afeta as comunidades locais e os ecossistemas. No caso da mineração de lítio, ela ameaça o acesso à água e a soberania dos territórios indígenas e promove um novo modelo de zonas de sacrifício. Isto é uma realidade tanto no Sul Global, como no caso dos conflitos de mineração no Chile, como no Norte Global, onde a exploração de lítio também afeta os direitos indígenas nos Estados Unidos e na Austrália.

“A propaganda sobre os carros elétricos de passageiros é alimentada por campanhas de marketing que visam escolhas individuais do consumidor, em vez de uma profunda transformação do setor de transporte.”

Se quisermos evitar mais conflitos e destruição ligados à crescente demanda do capitalismo por minerais, sejam eles tradicionais ou “verdes”, o paradigma dos carros elétricos de passageiros é parte do problema. Uma transição para as energias renováveis é absolutamente necessária para mitigar a mudança climática, e a extração de novos recursos será necessária. Mas se os minerais são limitados e queremos minimizar o impacto das atividades extrativistas, quando confrontados com a escolha de eletrificar milhões de lares pela primeira vez ou construir mais veículos elétricos de passageiros, o primeiro deve ter prioridade.

Para matar o carro elétrico

A mobilidade verde não é o mesmo que a automobilidade verde. Se os recursos são limitados, devemos favorecer abordagens mais eficientes para a eletrificação do transporte que realmente reduzam a demanda de energia em geral, incluindo as energias renováveis. O atual sistema de inovação tecnológica não recompensa a tecnologia mais útil, mas a tecnologia que combina mais lucro com economias de escala industriais. Não é de se admirar que já existam milhões de carros elétricos de passageiros enquanto a tecnologia para carro elétrico de serviço pesado é muito menos avançada.

“O sistema atual de inovação tecnológica não recompensa a tecnologia mais útil, mas a tecnologia que combina lucro com economias de escala industriais.”

Assim, a inovação tecnológica por si só não nos salvará.

Precisamos de uma revisão do setor de transportes que leve a mobilidade a sério, tratando-a como um direito e não como uma nova forma de lucrar. Isto requer uma mudança de infraestrutura longe dos carros em geral, com um imperativo de trânsito público que permite compartilhar uma frota limitada de carros elétricos de passageiros para necessidades ligadas à saúde e acessibilidade, bem como necessidades muito particulares como transportar objetos pesados pela cidade. Os veículos elétricos de não-passageiros ainda terão um papel além do trânsito público, por exemplo, com ambulâncias e serviços postais.

Estas precisam ser projetadas de acordo com a necessidade e eficiência, com baterias que sejam facilmente recicláveis e componentes que se encaixem bem em um modelo de economia reciclável. O setor público precisa desempenhar um papel central não apenas no fornecimento de infraestrutura, mas como o motor da inovação na eletrificação de veículos nas universidades e outras instituições de pesquisa.

Ao fornecer alternativas de mobilidade atraentes que realmente reduzem a demanda geral por minerais estratégicos na transição para as energias renováveis, podemos aliviar a pressão sobre as áreas afetadas pela extração. O frenesi do carro elétrico de passageiros, por outro lado, só tende a agravar estas contradições e deve ser considerado parte do pacote de falsas soluções vendidas pelo capitalismo verde. No final, a indústria de combustíveis fósseis não matou o carro elétrico – mas nosso trabalho é matar o domínio do carro elétrico de passageiros e as ilusões que ele promove.

Sobre os autores

é doutora em sociologia e militante ecossocialista. Escreve e edita para a Jacobin em inglês e é consultora editorial da Jacobin Brasil. Atualmente faz pós-doutorado no Grupo Internacional de Pesquisa sobre Autoritarismo e Contra-Estratégias da Fundação Rosa Luxemburgo e Universidade de Brasília. Criadora de conteúdo do canal de esquerda radical do YouTube Tese Onze.

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Published in América do Norte, Análise, Ecologia, Europa and Tecnologia

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