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Eko Soetikno, 75 anos, aponta para sua foto com o escritor indonésio Pramoedya Ananta Toer, que foi preso na ilha de Buru, em sua casa, em 4 de maio de 2016 em Kendal, Java Central. Ulet Ifansasti / Getty

Os crimes da Guerra Fria ainda estão moldando nosso mundo

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Tradução
Gercyane Oliveira

No século XX, os Estados Unidos se engajaram em intervenções brutais e até sádicas em todo o mundo, da Indonésia ao Brasil, para impedir o avanço da esquerda. Novo livro revela por que isso aconteceu e como ainda estamos vivendo à sombra dessas intervenções.

Um espectro está assombrando os Estados Unidos – pelo menos na imaginação fértil de alguns manifestantes e financiadores bilionários. Durante a pandemia, manifestantes de Illinois à Califórnia levantaram cartazes que igualam o distanciamento social e os lockdowns ao comunismo. Como vários meios de comunicação têm apontado, muitos destes manifestantes têm laços com a ex-secretária de Educação Betsy Devos, cuja família está entre os doadores mais generosos para as causas de direita do país. 

No dia 30 de abril de 2020, um homem de 42 anos de idade de Aubrey, Texas, foi acusado de agressão com intenção de matar após abrir fogo contra a embaixada cubana em Washington com uma AK-47. A polícia alega que o atirador ouvia vozes, mas o presidente cubano Miguel Díaz-Canel chamou o ataque de um ato de terrorismo. Só nos últimos anos, a ex-ministra da Cultura brasileira Regina Duarte foi manchete por minimizar os crimes da ditadura militar no Brasil, afirmando que “sempre houve tortura” e que “a humanidade nunca deixou de morrer”. Seu antecessor, Roberto Alvim, foi demitido após elogiar o propagandista nazista Joseph Goebbels.

Estes acontecimentos por toda a América são menos espantosos do que podem parecer. Embora a Guerra Fria tenha chegado ao fim há quase três décadas com o colapso da União Soviética, a hostilidade explícita à social-democracia continua presente entre suas elites, mas especialmente nos Estados Unidos e em nações conhecidas como o Terceiro Mundo. No livro O Método Jacarta, uma interessante e profunda pesquisa sobre o programa de assassinatos em massa que os Estados Unidos desenvolveram no século XX, o jornalista Vincent Bevins afirma que essa campanha sádica na Indonésia é um pesadelo do qual ainda estão tentando entender.

Para Bevins, o último golpe contra o líder da independência indonésia, o presidente Sukarno, em 1967, e o massacre que começou dois anos antes moldaram nosso mundo de algumas formas distintas: a violência que inspirou deixou inúmeras nações traumatizadas, apesar dos diferentes esforços de reconciliação; a totalidade da vitória de Washington destruiu a própria possibilidade de sistemas políticos de governos alternativos; o capitalismo cresceu mais enraizado e de forma mais perigosa nos países diretamente afetados; e o anticomunismo continua a ser uma força potente na geopolítica.

Em nenhum outro lugar isso é mais evidente do que no Brasil, onde o agronegócio e os militares se reuniram em torno do presidente Jair Bolsonaro e, na Indonésia, onde qualquer expressão de “marxismo-leninismo” permanece proibida até hoje.

Como polêmica, O Método Jacarta é consciente e convincente, mas o livro de Bevins ganha fôlego como uma obra de jornalismo narrativo, traçando a história da violenta intromissão dos Estados Unidos no sudeste asiático e na América Latina por meio das histórias dos povos que foram brutalizados.

Poucos temas elucidam melhor a política do que a entrevista com Francisca Pattipilohy, a filha de um arquiteto indonésio que experimentou as agressões coloniais primeiro dos holandeses e depois dos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial. Em uma universidade na Holanda, ela conheceu um socialista carismático chamado Zain e juntos se comprometem a forjar uma nova sociedade, em uma Indonésia recém independente. Francisca aceita um “emprego dos sonhos” como bibliotecária, enquanto Zain se reporta para o Harian Rakyat, do Diário do Povo, em Jacarta – um jornal dirigido pelo Partido Comunista Indonésio (PKI).

Enquanto trabalhava como jornalista, Zain cobria a conferência de Bandung, e mesmo como leitor em 2020, com o conhecimento de todos os esquadrões da morte e desaparecimentos que marcaram a segunda metade do século XX, podemos sentir que um futuro mais democrático se aproximava na época. Líderes de nações que representam mais da metade da população do planeta, incluindo líderes como Gamal Abdel Nasser do Egito e Jawaharlal Nehru da Índia, se reuniram para contestar a ordem hegemônica global e traçar um caminho de prosperidade para o Terceiro Mundo – um conjunto de Estados que não estavam alinhados com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) nem com o bloco comunista.

Juntos, eles se comprometeram a respeitar a soberania uns dos outros, buscar soluções pacíficas para os conflitos internacionais e governar de acordo com os princípios igualitários da igualdade racial e do respeito aos direitos humanos. O próprio Sukarno proferiu um discurso emocionante no qual fez uma comovente advertência a seus colegas:

Imploro a vocês, não pensem no colonialismo apenas na forma clássica que nós da Indonésia, e nossos irmãos em diferentes partes da Ásia e da África, conhecíamos. O colonialismo também tem seu traje moderno, na forma de controle econômico, controle intelectual, controle físico real por uma comunidade pequena dentro de uma nação. É um inimigo hábil e determinado, e aparece com muitos disfarces. Ele não desiste da tentativa de saquear nossos recursos. Onde quer que apareça, o colonialismo é uma coisa má, e que deve ser erradicado da terra.

Suas palavras seriam tragicamente proféticas. Após sua tentativa fracassada de golpe em 1958, Washington começou a destinar dinheiro e ajuda aos militares indonésios, acreditando que era sua melhor chance de recuperar frente a crescente popularidade do PKI. Como Bevins explica, os Estados Unidos tinham chegado a abraçar plenamente a “teoria da modernização” – uma espécie de formulação invertida do marxismo ortodoxo que enxerga as sociedades avançando em etapas, sendo o estágio final de desenvolvimento um Estado capitalista moderno. Oficialmente, os Estados Unidos apoiaram a governabilidade democrática, mas se voltaram cada vez mais para as autoridades militares locais para dar esses “grandes saltos à frente”.

Projeto

No Brasil e na Indonésia, os Estados Unidos encontraram seu laboratório ideal. Em 30 de setembro de 1965, um ano depois que as Forças Armadas derrubaram no Brasil o governo democrático de João Goulart em um golpe militar, o exército indonésio sequestrou e assassinou seis de seus generais. Os detalhes do sequestro permanecem pouco claros, mas a agressão foi rapidamente atribuída ao desarmado e insuspeito PKI, desencadeando uma onda de violência que começou na ilha de Sumatra e rapidamente se espalhou para Java, Bali e todo o país. 

Sob a direção do General Suharto, utilizando listas de assassinatos fornecidas pelo governo dos Estados Unidos, organizações paramilitares como a Juventude Pancasila foram “atacadas junto com toda esquerda da política indonésia”. Uma das vítimas, ficamos sabendo, foi o repórter do People’s Daily Zain, que foi levado para interrogatório ao lado de Francisca, para nunca mais voltar. 

Ao todo, forças de direita massacraram mais de um milhão de comunistas, supostos comunistas e pessoas de etnia chinesa, muitos por meio de facções – uma arma que Bevins observa que chegou à ilha de Bali contemporaneamente, com a campanha de propaganda anticomunista dos militares.

Assim, a Indonésia rapidamente se tornou o projeto do imperialismo norte-americano para a América Latina. Bevins escreve que após a eleição de Salvador Allende no Chile, as pichações começaram a aparecer nos bairros mais sofisticados de Santiago: “Jacarta ainda está por vir” e “Jacarta está chegando”. Grupos terroristas anticomunistas incluindo Pátria y Libertad [Pátria e Liberdade] ameaçaram nada menos que o extermínio da esquerda chilena, “de pessoas que se organizam para um mundo melhor”, enquanto “Jacarta” se tornaria um código para assassinatos em massa promovidos pelos Estados Unidos em toda a região. 

Em 1973, três anos após o presidente Richard Nixon ter instruído o diretor da CIA Richard Helms para fazer a economia chilena “gritar”, os militares tomaram o poder, preparando o cenário para os horrores da Operação Condor. Na passagem mais arrepiante do livro, Bevins pergunta ao chefe do Sekretariat Berasama ’65, um grupo de defesa para as vítimas dos expurgos da Indonésia, como os Estados Unidos venceram a Guerra Fria. Sua resposta é simples: “Vocês nos mataram”.

Nenhum desses países corria o risco imediato de cair na órbita soviética ou mesmo de se vangloriar de um partido governante comunista. Embora o PKI fosse uma força vital na política indonésia, particularmente em nível local, ainda era apenas uma facção dentro da coalizão nacionalista e mais ampla de Sukarno. A “ameaça” do comunismo no Brasil não era substancialmente grande. Pela mesma medida, tanto o Movimento 30 de Setembro da Indonésia quanto o Levante Comunista de 1935 do Brasil eram mitos nacionais — mas eram os bicho-papões usados para mobilizar a oposição e a opinião pública a qualquer tipo de projeto social-democrata, desde a reforma agrária até a regulamentação que restringia o poder monopolista.

Além disso, os Estados Unidos tinham um interesse ideológico em remodelar essas sociedades. “Washington não estava preocupado que a economia do Chile fosse destruída sob uma má gestão de esquerda… ou mesmo que Allende prejudicasse os interesses dos Estados Unidos”, escreve Bevins. “O que assustou a nação mais poderosa do mundo foi a perspectiva de que o socialismo democrático de Allende fosse bem sucedido.” E apoiar as forças de direita em todo os países em desenvolvimento era a melhor maneira para atingir este objetivo.

Sobre os autores

é editor da Truthdig. Seus textos também são publicados no The Nation, Salon e Tablet.

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Published in América do Sul, Ásia, Guerra e imperialismo, Livros and Resenha

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