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O ex-vice presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, e deputado espanhol do Podemos, Íñigo Errejón, no lançamento do livro na Espanha. Foto da editora Lengua de Trapo.

Os desafios e as limitações da esquerda radical

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Por que a desobediência é a exceção e não o hábito? Quais são as tarefas de uma força popular e democrática uma vez que chega ao poder? Como um revolucionário governa em tempos de recuo? Essas são algumas das perguntas que os teóricos e dirigentes políticos Álvaro García Linera e Íñigo Errejón tentam responder em novo livro para traçar um horizonte de teoria, ação e disputa hegemônica emancipatória no século XXI.

Resenha do livro Qual horizonte: hegemonia, estado e revolução democrática, de Álvaro García Linera e Íñigo Errejón (Autonomia Literária, 2022).


A primavera serviu e serve como hipérbole teórica ou imagem expressiva de um momento social excepcional, crucial para desvendarmos as leis que conduzem a locomotiva da história. No campo da teorização marxista, particularmente, investiram-se amplos esforços intelectuais para compreender as dinâmicas que subjazem a momentos de temperaturas políticas elevadas – processos pelos quais os vínculos e as demandas sociais dilatam-se no contínuo espaço-tempo, transformando as estruturas do que é previamente reconhecível na conformação de um horizonte radicalmente novo.

Com o advento do austro-marxismo, de Otto Bauer e companhia, e de intervenções sobre hegemonia no coração da social-democracia revolucionária e da segunda internacional, como em Rosa Luxemburgo, Vladimir Lênin e Leon Trotsky, floresceu, no raiar do século xx, uma prolífica diversidade teórica marxista. Essas reflexões deram nuance a diversas lógicas de contingência, subjacentes às dinâmicas sociais, que demarcavam a centralidade estratégica de intervenções políticas para assegurar a vitória da classe trabalhadora. Esses esforços permaneceram, no entanto, restritos a um mero suplemento intelectual e foram posteriormente subsumidos nas férreas condições de necessidade histórica, preponderantes desde a segunda internacional na sua concepção de Revolução, com R maiúsculo. 

Foi nas prisões de Benito Mussolini que um novo arsenal conceitual se estruturou, expandindo, perigosamente, os horizontes do marxismo. A gramática introduzida pelo pensador italiano Antonio Gramsci nos seus Cadernos do Cárcere – guerra de posições, vontade coletiva, bloco histórico, liderança intelectual e moral – extravasou as considerações anteriores sobre a política hegemônica, compreendida, do leninismo até a Internacional Comunista (Comintern), como “aliança de classe”. A intervenção gramsciana, por sua vez, fez do terreno hegemônico o espaço em que a própria disputa política e as identidades sociais encontram, propriamente, condições de possibilidade.

(Twitter da editora Lengua de Trapo)

O vazio teórico que a virada para uma política hegemônica tentou preencher fica evidente nas torções conceituais que o marxismo empreendeu para não perder do escopo as mudanças de época. Da autonomia relativa até a determinação na última instância, as categorias do marxismo dão conta de um impasse clássico na sua aproximação de fenômenos sociais enigmáticos, inabordáveis a partir de binários ferrenhos como massa-classe ou estrutura-superestrutura. O perspicaz olhar de Antonio Gramsci sobre as complexas dinâmicas de luta popular italiana, imersas na forte divisão regional entre o norte industrial e o Mezzogiorno agrário, transcende as catacumbas do fascismo e as demarcações limítrofes do comunismo italiano, promovendo um encontro entre mundos populares e vontades coletivas díspares nas suas épocas revolucionárias. 

O diálogo entre Álvaro García Linera e Íñigo Errejón que costura o livro Qual horizonte: hegemonia, estado e revolução democrática é produto da mais fecunda interlocução entre duas gerações de militantes que, divididas geograficamente pela imensidão do oceano Atlântico e, cronologicamente, por ondas quase subsequentes de efervescência popular, acharam na inventiva gramsciana um universo conceitual comum, por meio do qual lograram interconectar os processos sociais que os consagraram como ilustres partícipes. Entrelaçam-se no livro as vozes de duas das mais brilhantes figuras do pensamento político contemporâneo radical na sua busca por expandir, de forma franca e modesta, as margens do consenso político existente num horizonte emancipatório que está sempre por vir.

Quando a teoria vira prática

Inicialmente publicado em castelhano pela editora Lengua de Trapo, em 2020, o livro Qual horizonte traz uma conversa entre o ex-vice-presidente do Estado Plurinacional da Bolívia e o ex-dirigente e um dos fundadores do Podemos, na Espanha, e, hoje, no Más País, como deputado do congresso espanhol, onde apostam em uma visão compartilhada de poder, hegemonia e democracia.

As discussões ocorreram entre abril de 2018 e fevereiro de 2019, entre La Paz e Madri. Por meio delas, García Linera e Errejón propõem uma contribuição de natureza, notoriamente, teórica. Cabe afirmar, no entanto, que a prática política concreta que percorre a trajetória militante dos dois autores é sempre mantida como pano de fundo, através de uma narrativa acolhedora e pausada. Assim, a relação entre biografia e reflexão, estabelecida ao longo do livro, ajuda a dar contorno às formulações conceituais com matizes contextuais, elevando com maestria o grau de rigor analítico ao virar de cada página. É também este um mecanismo valoroso por meio do qual Errejón e García Linera convidam reiteradamente o leitor a se localizar no contexto de raciocínio.

“A junção do militar com o indígena no pensamento intelectual guatemalteco oferece ao marxista boliviano uma perspectiva abrangente e complexa.”

Para alguém distante das dinâmicas sociopolíticas espanholas e bolivianas e pouco familiarizado com a trajetória intelectual de García Linera e Errejón, perdem-se riquezas vibrantes da pluralidade de elementos que permitem aos diversos imaginários simbólicos e afetivos articular, conjuntamente, uma síntese teórica de tão notável depuro. Em vez de oferecer uma resenha das reflexões que estão por vir, este texto tem o objetivo de oferecer um mapa de navegação ao leitor que embarca, pela primeira vez, nos inóspitos e irradiantes mares intelectuais e políticos de Álvaro García Linera e Íñigo Errejón.

De Túpac Katari ao Palacio Quemado

Álvaro García Linera é hoje o mais dotado marxista latino-americano. É matemático, foi guerrilheiro e chegou a codirigir, na qualidade de vice-presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, uma das mais audazes e épicas experiências nacional-populares do século XXI.

Nascido em Cochabamba, em 19 de outubro de 1962, a política se consagrou uma excêntrica habitual na infância de García Linera, por meio de sucessivos golpes de Estado que fizeram da exceção normalidade durante os seus primeiros dez anos de vida. O primeiro golpe foi o de René Barrientos, em 1964. Depois, seguiu-se o levante popular que instaurou o governo militar de esquerda nacional de Juan José Torres González, em 1970, derrubado, com o incondicional apoio de Washington, pelo ditador Hugo Banzer Suárez um ano mais tarde.

A inclemência da intervenção militar, entre massacres, desaparecimentos e torturas de vítimas, forja nos sumidouros bolivianos um aguerrido comunitarismo trabalhador camponês-mineiro que energiza a estrutura organizacional da Central Obrera Boliviana (COB). Enxergou no comunitarismo mineiro o principal foco de reflexão da teorização marxista boliviana, veementemente palpável no feroz pensamento do sociólogo e filósofo René Zavaleta Mercado. Os processos insurrecionais e organizativos do movimento mineiro, na sua linguagem popular e democrática, fornecem subsídios discursivos a um García Linera que, já aos seus 14 anos de idade, adota uma postura eminentemente marxista.

O maior divisor de águas, político e intelectual, viria, no entanto, no ano de 1979, com o disruptivo bloqueio de caminhos aymara, que estabeleceu um cerco à cidade de La Paz. Uma ação insólita, não testemunhada em tal escala desde os tempos de Túpac Katari e de seu indômito levante contra o colonialismo espanhol. É justamente no final da década de 1970 e começo da década de 1980 que as comunidades indígenas bolivianas experienciam um florescer da sua organização e do seu discurso, passando a exibir práticas de ação coletiva e articulações de narrativas profundamente singulares, autônomas das dinâmicas organizacionais da COB. Essa ação desperta em García Linera a obstinação em compreender e se envolver nessa enigmática e disruptiva linguagem comunitarista que, ao passo que se revelava desconhecida para a organização trabalhadora e para o pensamento marxista, conectava-se com o grosso da população, auto-identificado como indígena.

Dois anos depois do bloqueio, viaja à Cidade do México para desenvolver estudos em matemática num dos centros intelectuais de maior intensidade política da América Latina, a Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Na sua chegada, o jovem boliviano de 17 anos se depara com um contexto de efervescência intelectual inusitado, propiciado pelo fervoroso intercâmbio de ideias entre exilados políticos ibero-americanos, entre os quais circulavam anarquistas espanhóis, poetas peruanos, guerrilheiros guatemaltecos e salvadorenhos, artistas colombianos e políticos argentinos. Encontra também nesse efervescente México dos anos 1980 um paraíso editorial, de uma literatura incendiária que o contexto de ditadura boliviana impossibilitava acessar. García Linera rapidamente mergulha com obstinada disciplina nos livros de Marx, Lênin, dos austro-marxistas, de Gramsci e Althusser que a Siglo XXI Editores publicava. 

“Articulam-se cidade e interior, trabalhador e indígena, intelectual e mineiro, alimentando uma massa popular de robusta densidade nas trincheiras espalhadas pela Cochabamba.”

Prolífico leitor da teoria militar marxista de Võ Nguyên Giáp e Mao Tsé-Tung, García Linera se aproxima de núcleos guerrilheiros da América Central. Identifica nos círculos guatemaltecos, de militantes da URNG, a maior vanguarda intelectual do marxismo latino-americano. Eram eles os únicos a abordar a questão indígena com a devida atenção. A junção do militar com o indígena no pensamento intelectual guatemalteco oferece ao marxista boliviano uma perspectiva abrangente e complexa. Isso lhe permite refletir de forma mais sistemática sobre as dinâmicas golpistas, inerentes ao contexto político da sua infância, e a irrupção de um movimento indigenista, para ele palpável a partir do bloqueio de 1997, que o marxismo ortodoxo boliviano, pelo seu olhar essencialista, não conseguia avistar. Seria a partir das ferramentas teóricas, étnicas e militares guatemaltecas que os Ayllus Rojos Tupakatarista nasceriam politicamente, pelas mãos de Linera, anos mais tarde.

Movido pelo entusiasmo de uma revigorada junção de narrativas político-teóricas que reavivaram um marxismo indigenista, militarista e popular, Álvaro acelera sua formação em matemática e retorna à Bolívia. Junto a um grupo de seis camaradas, dá início a uma modesta e irradiante atividade de formação política e organização popular em pequenos centros mineiros, módicos complexos industriais e remotos ayllus indígenas, propondo uma perspectiva emancipatória profundamente audaciosa – e inevitavelmente incômoda para os consolidados círculos da esquerda urbana ilustrada, que enxergavam o indígena como pequeno-burguês ou, no melhor dos casos, como camponês.

Aparece, nesse processo, a penetrante figura de Felipe Quispe, mais conhecido como “el Mallku” –, a mais prodigiosa liderança de uma experiência indianista radicalizada. Do encontro entre Quispe e Linera surgem os Ayllus Rojos Tupakataristas, conjugando o comunitarismo aymara e bases teóricas do pensamento comunista com a ancestralidade indígena heroica e insurgente anticolonial, evocada na epopeica figura de Túpac Katari. Os Ayllus Rojos tornam-se rapidamente uma estrutura dual: por um lado, se constituem como foco de produção de pensamento político e opinião no debate público boliviano; por outro, como organização clandestina de estruturas camponesas e indígenas armadas, atentas à maré social que sustentasse um momento de sublevação popular.

Em 1992, com 30 anos, García Linera é preso, torturado e depois enviado à prisão de Chonchocoro, em El Alto. Diz que “atrás das grades aprendeu a dançar com o tempo”. A conduzi-lo e rodeá-lo com a paciência suficiente para lhe permitir identificar, entre o entusiasmo da vontade e a tolerância do pragmatismo, o momento de se jogar na ação e arriscar, de um só golpe, até a última gota de sangue. Os anos seguintes seriam fiéis testemunhas da destreza cultivada pelo marxista boliviano na sua dança política epocal.

Saindo da prisão, e já como professor universitário, embarca em uma disputa midiática por identificar nos meios de comunicação uma frente privilegiada da batalha ideológica. Participa de conversas no rádio, entrevistas em jornais de bairro e debates na televisão. Ocupa todos os espaços que foi convidado. A batalha na mídia faz dele uma figura de visibilidade, com uma narrativa carregada de rigor e ideias que pareciam se adiantar a eventos próximos – indistinguíveis, no entanto, no espectro visível do presente de então.

O triunfalismo elitista vestido da retórica neoliberal dá indícios, no final dos anos 1990, da sua mais iminente derrocada. Após a criação de expectativas exorbitantes de crescimento econômico, usadas para justificar privatizações de telecomunicações, vias férreas e petróleo, o PIB nacional colapsa em cifras negativas. O esgotamento popular, palpável em focos sociais marginais, emerge com força vulcânica para impedir a privatização da água no ano de 2000. Articulam-se cidade e interior, trabalhador e indígena, intelectual e mineiro, alimentando uma massa popular de robusta densidade nas trincheiras espalhadas pela Cochabamba que viu Álvaro nascer. O governo retrocede ante a ofensiva popular.

A resistência para impedir a privatização da água é seguida por uma insurreição social, em 2003, dessa vez com o objetivo de impedir planos de expansão da exportação do gás natural, e exigir a nacionalização dos hidrocarbonetos. O ambiente então era outro. Figuras como García Linera e Felipe Quispe derrubam, ante a opinião pública, as vozes dos analistas tradicionais, e passam a conduzir um diálogo popular que procurava destrinchar aqueles excepcionais acontecimentos. O então deputado e liderança indígena cocaleira Evo Morales, após ter participado ativamente das sublevações populares desde o começo dos anos 2000, vira um ponto central de difusão institucional das calorosas discussões em que, com uma linguagem carregada de praticidade, entre humildes camponeses, indígenas e trabalhadores desenhavam horizontes para sua própria história.

“Um indígena marxista e um marxista indigenista irradiando, a partir do calor da primavera social boliviana, um novo horizonte popular.”

À crise do sistema político boliviano, do senso comum dominante, subjaz uma vitória discursiva por parte de atores socialistas, comunistas, indígenas que penetram os procedimentos lógicos e morais com os quais os setores subalternos avaliam o seu entorno e mediante os quais se localizam no espaço social do qual fazem parte. Há uma eficiência da produção discursiva na medida em que antecede à transformação política em uma vitória cultural. Ocorre um redirecionamento do senso comum, que permite, seis anos depois do começo da guerra da água, a vitória eleitoral de Evo Morales como presidente da Bolívia, tendo García Linera como vice-condutor. Um indígena marxista e um marxista indigenista irradiando, a partir do calor da primavera social boliviana, um novo horizonte popular.

Da Universidad Complutense à Puera del Sol

O insólito e recém-eleito governo boliviano, com um indígena liderando pela primeira vez um Estado formado por uma população majoritariamente indígena, se consolida rapidamente em um processo fecundo de elevado crescimento econômico, alta mobilidade social e amplo apoio popular. A irrupção dessa vitória transcende as fronteiras regionais e chama a atenção de intelectuais e militantes de uma esquerda europeia sumida num aparente estado de letargia ante uma agenda neoliberal que, de forma silenciosa e decidida, parasitava os cofres do Estado de bem-estar social. A irrupção boliviana faz despertar um ímpeto transformador em muitos. Poucos, no entanto, conseguiriam penetrar estruturas institucionais tão hermeticamente capturadas por pactos elitistas como fez na Espanha o Podemos de Íñigo Errejón.

Filho de pai marxista e mãe feminista, o vínculo entre Errejón e a política foi inato. Nasceu em 14 de dezembro de 1983, em Madri, Espanha. Durante sua adolescência, foi próximo ao marxismo libertário, inicialmente como membro do Colectivo de 1984, no município madrileno de Pozuelo de Alarcón. Os tempos de faculdade na Universidad Complutense de Madrid foram marcados pelo nascimento de um movimento global, dentro do qual autonomistas, ambientalistas e marxistas camuflavam-se na multidão para resistir, entre os anos de 2000 e 2001, contra a cúpula do G8 nas Batalhas de Praga e Gênova. Reaviva-se então a cólera de uma juventude contrária à financeirização desenfreada da vida europeia, particularmente após o assassinato do jovem anarquista italiano Carlo Giuliani. 

Íñigo participa vigorosamente das manifestações madrilenas contrárias ao G8 e à guerra no Iraque, caso da mobilização de 13 de março de 2004 em frente à sede do Partido Popular (PP). Ajuda a formar a plataforma Arde Madrid, numa tentativa de articular organizações de esquerda da capital espanhola que vinham ganhando corpo nesse auge efervescente de resistência. Àquela altura, estabelece um diálogo muito fecundo com quem havia sido seu professor de ciências políticas, Pablo Iglesias Turrión – com quem conspiraria tomar de assalto ao Palácio de La Moncloa, através do Podemos, dez anos mais tarde. 

A primeira empreitada política que construiu junto com Iglesias foi a associação universitária Contrapoder, em 2006, instalada no coração da sede da Universidad Complutense em Somosaguas. O então presidente boliviano, Evo Morales, acompanha as atividades da associação e participa, presencialmente, de uma conferência em 2009. Desde então, Álvaro García Linera aproveitaria suas visitas a Somosaguas para se deleitar conversando com Iglesias e Errejón, em um ritual obrigatório a cada uma de suas visitas à Espanha.

“Enquanto a Complutense forjou-o como intelectual e militante, na América Latina Errejón amadureceu como político.”

Errejón se destaca com notoriedade por suas capacidades intelectuais, como artífice de audaciosas acrobacias conceituais na intermediação de autores clássicos da ciência política com o pensamento marxista. Já era notável sua impressionante capacidade de relacionar ideias complexas com desafios sociais práticos, o que fez com que se destacasse como militante e dirigente no movimento estudantil. Por essa época, Gramsci enchia-o de entusiasmo para imaginar caminhos de transformação social, fazendo do conceito de hegemonia o centro das suas reflexões políticas. Encontra particular afinidade com a radicalização do pensamento gramsciano a partir de insumos provenientes do pós-estruturalismo e da psicanálise lacaniana, tal como desenvolvida por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe em Hegemonia e estratégia socialista – Íñigo torna-se, rapidamente, um destacado intelectual pós-marxista. 

Enquanto a Complutense forjou-o como intelectual e militante, na América Latina Errejón amadureceu como político. Viajou com frequência, como membro fundador do Centro de Estudios Políticos y Sociales (CEPS), ao Equador, à Argentina e à Bolívia. Concentrou  seus esforços intelectuais no processo boliviano, desenvolvendo uma tese de doutorado que avaliasse, a partir de uma perspectiva laclausiana, a disputa pela hegemonia empreendida pelo Movimiento Al Socialismo (MAS) de Evo Morales e García Linera ao longo do primeiro mandato (2006-2009). 

Na conformação da análise de Errejón sobre a particular articulação do processo boliviano, é claramente perceptível a presença da gramática pós-marxista, energizada pela originalidade inventiva de Laclau, articulada na sua magnum opus, A razão populista. Íñigo rompe assim com o lugar privilegiado conferido pelo marxismo à noção de “classe” e se aproxima das identidades sociais como fruto de práticas articulatórias. Após anos de intensa atividade política, que o distanciam da reflexão intelectual, Errejón retomaria, em 2015, seus esforços teóricos a partir do seu diálogo com Chantal Mouffe, publicados no livro Construir pueblo: hegemonía y radicalización de la democracia. Muitos acontecimentos políticos, no entanto, distrairiam o intelectual espanhol até então.

Desde Somosaguas, intelectuais como Carolina Bescansa, Iglesias, Juan Carlos Monedero e Errejón identificaram uma elevação de temperaturas no clima político espanhol após a crise de 2008, sustentada pelo crescente distanciamento entre representantes e representados. O bipartidarismo se distanciava do eleitor, com um PP impune e um Partido Socialista Obrero Espanhol (PSOE) indolente, num panorama de inusitada precarização social europeia. Articularam estratégias de inovação na comunicação política desde o grupo Contrapoder, dialogando com narrativas próprias à cultura audiovisual. Nasce aqui a irreverente figura midiática de Pablo Iglesias, sustentada por uma equipe que teorizava e preparava os rumos do discurso, centralizada no gênio estratégico de Errejón. Começam com um programa modesto, chamado 99 Segundos, para depois estrear no canal Tele-K, com o já legendário programa LaTuerka.

Em 2011, explode a primavera popular em manifestações que abarrotam, em Madri, Puera del Sol. Inicialmente convocadas por organizações como Juventud sin Futuro ou Plataforma ¡Democracia real YA!, as manifestações provocam um estrondo social que, tal como um abalo sísmico, revela as fragilidades no sistema político-partidário. Essa foi a hipótese que levou um grupo de intelectuais e jovens militantes a apostar na formação de um partido político, o que resultou na formação do Podemos, em 17 de janeiro de 2014, que fragmentaria, para o bem, o histórico sistema bipartidário espanhol, oferecendo novos e fecundos horizontes à esquerda europeia.

Um livro para ler no inverno

O quadro de efervescência popular desenhado junta duas biografias de ação política radical. Nelas, percebe-se o momento de viragem, em que dois militantes e intelectuais, entregues aos anseios, às demandas e às vontades sociais que reavivam o calor de um descontentamento popular disruptivo, conseguem articular ideias-força e propiciar uma reconfiguração do sentido comum que os conduz até o Estado. Denota-se, tanto na Bolívia quanto na Espanha, um ambiente de temperaturas sociais elevadas: desde a primavera popular insurrecional à articulação política de irradiantes horizontes republicanos. Os tempos difíceis, no entanto, tardariam pouco em chegar.

A maré social que levou o Podemos a ocupar o centro do debate público na Espanha não permitiu-lhe, em 2015, consumar os seus anseios de tomar por assalto os céus de La Moncloa. Com Iglesias à frente, o Podemos assume desde então uma nítida lealdade ideológica que dicotomizava, crescentemente, a disputa política entre esquerdas e direitas. Para Errejón, o desafio subjacente ao momento de recuo demandava emplacar os anseios populares que transcenderam as bandeiras habituais da militância política. Assim, convencido que a vitória não subjaz à unidade das esquerdas mas advêm da reconstrução do campo popular, Errejón abandona, em 2016, o partido em que fez estremecer, desde 2014, o bipartidarismo espanhol.

“São os tempos difíceis a única garantia de um processo de transformação social, mas são também estes o fôlego que reaviva a convicção transformadora do revolucionário.”

Sutil e progressivamente no diálogo, capta-se a preocupação dos dois autores por desvendar as tarefas revolucionárias a serem assumidas no crepúsculo político que antecede ao inverno popular: momento em que que os setores subalternos demostram pouca disponibilidade – seja porque estão desgastados, desarticulados ou desamparados – e as forças inimigas avançam realinhadas. As reflexões contidas neste livro, finalizam momentos antes da investida reacionária das elites bolivianas que, seduzindo importantes segmentos sociais da classe média, articula o tenebroso fantasma do golpismo, levando, em novembro de 2019, Evo Morales e Álvaro García Linera a um súbito e ignominioso exilio. 

As perspectivas integradas do diálogo entre Álvaro García Linera e Íñigo Errejón que compõe este livro, partem de um horizonte político no qual as condições propiciadas para levar a frente o processo revolucionário nunca estão dadas. São os tempos difíceis a única garantia de um processo de transformação social, mas são também estes o fôlego que reaviva a convicção transformadora do revolucionário. Por que a desobediência é a excepcionalidade e não o hábito? Quais as tarefas de uma força popular e democrática uma vez que chega ao Estado? Como um revolucionário governa em tempos de recuo? Essas são algumas das perguntas por meio das quais Álvaro García Linera e Íñigo Errejón estruturam, conjuntamente, um novo horizonte de teoria e de ação hegemônica. 

Sobre os autores

é professor de filosofia e teoria política na Fundação Getúlio Vargas. Ele também é membro pesquisador da rede DeSiRe (Democracia, Significação e Representação) e do Centre of Ideology and Discourse Analysis (cIDA) da Escola de Essex.

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