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Ronald Reagan se encontra com Margaret Thatcher durante uma reunião de cúpula econômica em Veneza, Itália, 1987. (Levan Ramishvili / Flickr)

Para combater a direita, precisamos entender os seus argumentos

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Tradução
Ligia Marinho

Desde a Revolução Francesa, a direita mobiliza um conjunto comum de argumentos para resistir aos esforços de democratização da economia e do poder político. A esquerda só vencerá os conservadores se analisarmos a sua armadilha retórica – para desarmar e combatê-la.

Em 1991, uma década após a revolução Reagan-Thatcher ter empurrado decisivamente a política para a direita, o economista e cientista social Albert O. Hirschman publicou um pequeno livro chamado The Rhetoric of Reaction [A retórica da reação, em tradução livre]. O livro explica uma tipologia de argumentos de direita — “as mais importantes posturas polêmicas e manobras plausíveis de serem usadas por quem quer desacreditar e derrubar políticas ‘progressistas’”.

Hirschman enfatizou que o pensamento conservador era mais do que uma série de tropos [metáfora ou figura de linguagem]. Os polemistas de direita às vezes atingem seu objetivo. Porém, na grande onda conservadoras, há certas estratégias argumentativas que sempre pipocam. E, ao reconhecer esses padrões retóricos, fica mais fácil refutar os argumentos da direita, não importando o aspecto que tomem.

Três ondas de progresso, três ondas de reação

Albert O. Hirschman nasceu em 1915, em Berlim, Alemanha. Depois de lutar contra os franquistas na Guerra Civil Espanhola, trabalhou com a Comissão para Refugiados de Guerra ajudando antifascistas a escapar da perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Por fim, ele fugiu para os Estados Unidos, onde trabalhou no Exército até o fim da guerra, e assumiu um fellowship na Universidade da Califórnia, Berkeley. Ele atenderia a diversos compromissos acadêmicos até sua morte em 2012. Apesar de nunca ter sido um radical, Hirschman era um crítico afiado da onda de conservadorismo dos anos 1980, e escreveu The Rhetoric of Reaction em resposta.

Ele começa o livro explicando três “ondas reacionárias” na política do Ocidente. Em cada caso, os progressistas avançaram em projetos igualitários que buscavam redistribuir riqueza e poder – e a direita lutou para repelir essas tentativas com seus argumentos e sua organização política.

A primeira onda reacionária, que emergiu no início do século XIX, se opôs às demandas liberais por igualdade perante a lei que tomaram formas mais claras na Revolução Francesa. A segunda onda, que se estendeu do século XIX até o XX, se opôs ao ímpeto de esquerda de lutar pelo sufrágio universal. Conforme o historiador Jacob Burckhardt afirmou naquela época, lamentando a expansão do sufrágio na Suíça:

A palavra liberdade soa opulenta e bela, mas ninguém deveria falar dela sem ter visto ou experimentado a escravidão que reside sob as massas faladeiras, às quais chamamos de “povo”, sem ter visto com os próprios olhos e ter resistido à agitação civil. Eu conheço história o bastante para não esperar do despotismo das massas nada além do que um futuro de tirania, que significará o fim da história.

A terceira onda reacionária começou no final do século XIX, quando partidos trabalhistas e socialistas ganharam poder e influência. Mas ela engrenou somente em meados do século XX, com partidos da classe trabalhadora que venceram eleições pela Europa e democratizaram a economia através da construção do Estado de bem-estar social, institucionalizando a voz dos sindicatos de trabalhadores e, às vezes, socializando setores da economia.

Esta última onda de reação – contra a democracia econômica – foi muito mais bem-sucedida do que as duas anteriores. Enquanto os conservadores tentaram restringir parcialmente quem passou a desfrutar de liberdades civis e direito de votar, o movimento geral foi na direção do progresso.

Mas com os direitos econômicos não foi bem assim. Os conservadores – com a ajuda de seus aliados centristas – tiveram vasto poder de limitar o que o Estado de bem-estar social supria e, frequentemente, privatizar o que sobrava. A política tinha ido tanto para o campo da direita que foi Bill Clinton quem proclamou que “a era dos governos grandes havia acabado”, e Margaret Thatcher identificou o Novo Trabalhismo de Tony Blair como a maior conquista dela. Além de tudo isso, Thatcher e Reagan aprisionaram e, quando possível, destroçaram a capacidade dos trabalhadores de remodelar a economia.

Uma das razões para os conservadores terem tido tanto sucesso no front da democracia econômica é o fato de eles conseguirem manejar um número suficiente de eleitores da classe média e até da classe trabalhadora. Isso atesta a necessidade da esquerda de entender os argumentos e a retórica da direita – o tópico principal do livro de Hirschman.

A retórica reacionária

De acordo com Hirschman, os conservadores usam três “teses” retóricas para provar seu ponto de vista: a tese da perversidade, a tese da futilidade e a tese do perigo. O autor trata de uma por vez, dando exemplos históricos e desconstruindo o raciocínio muitas vezes forçado dos conservadores. Ao ler Hirschman fica claro que – a despeito das alegações de profundo senso de realidade – a argumentação conservadora frequentemente envolve apelos de auto-engrandecimento e desdém por aqueles considerados indignos.

A tese da perversidade provavelmente é a maior culpada disso, uma vez que os conservadores a tomam como um entendimento profundo, apesar de ela ter um passado com vários pontos problemáticos. A tese da perversidade sustenta que, quando a esquerda tenta fazer alguma mudança benéfica, ocorre “exatamente o contrário”, essas intenções acabam sendo um tiro que sai pela culatra, por causa das leis das consequências não intencionais. Em suas Considerações sobre a França, Joseph de Maistre chegou ao ponto de argumentar que Deus puniria os revolucionários franceses e faria a “exaltação do cristianismo e da monarquia”.

Esse tipo de retórica para benefício próprio – Deus não apenas absolverá como também premiará com a vitória os reacionários através da degeneração dos propósitos progressistas – certamente é reconfortante para a direita, porém não é muito convincente para quem não usufrui das mesmas benesses. Irrupções parecidas acompanharam os anseios pelo sufrágio universal, e pessoas aparentemente inteligentes julgaram “a maioria de qualquer país” como “uns tolos” que apenas levariam o país à ruína. Aparentemente, somente os reacionários possuem a clarividência necessária para antever que o esforço das pessoas comuns só pode terminar em desastre.

Mas delírio de grandeza não é uma análise cuidadosa e as predições conservadoras de que o mundo desmoronaria se as “classes mais baixas” ganhassem status igualitário e acesso ao voto se mostraram um grande engano. Além disso, numa de suas melhores objeções, Hirschman pontua que o argumento dos “efeitos não intencionais” é uma faca de dois gumes. Programas de bem-estar projetados para reduzir a pobreza também podem reduzir os índices de criminalidade – porém ninguém chamaria esse efeito de perverso, mesmo que ele seja “não intencional”.

“A esquerda muitas vezes conquistou exatamente as transformações que os conservadores insistiam em dizer que eram impossíveis.”

O segundo argumento que Hirschman analisa é mais severo. É a tese da futilidade, ou afirmação de que “qualquer mudança [progressista] é, foi, ou será muito superficial, de fachada, cosmética, portanto ilusória, enquanto as estruturas profundas da sociedade permanecerem completamente intocadas”. No final do século XIX e no começo do XX, os críticos da expansão democrática Alexis de Tocqueville e Vilfredo Pareto tentaram mostrar que os triunfos da esquerda apenas trocaram de uma ordem plutocrática para outra. Conservadores dos dias de hoje como George F. Will incriminam o Estado de bem-estar social de erigir uma burocracia vasta e ineficiente que permite ao rico demandar que o governo lhe garanta privilégios.

Como Corey Robin observou, a tese da futilidade é a que tem mais efeito contra a esquerda, porque ela sustenta mais do que uma similaridade rasa com a análise estrutural que os radicais defendem. Se o anseio fundamental é remodelar as instituições e as dinâmicas de poder da sociedade e o melhor que os progressistas podem fazer são mudanças superficiais, os conservadores estarão a postos para declarar: “Bem que eu disse”. O resultado disso é uma sensação de impotência e, bem, de futilidade por parte da esquerda.

E isso é intencional. Como Hirschman comenta, a tese da futilidade não é só uma descrição do mundo, mas um esforço para suscitar exatamente os resultados que prevê. Ao proclamar a futilidade das políticas de esquerda, os críticos conservadores esperam dissuadir os progressistas até mesmo de entrar na disputa. A melhor coisa que os militantes de esquerda podem fazer é agarrar as posições derrotistas e fúteis – e reconhecer que no longo prazo a melancolia beneficia o lado do oponente.

Além de tudo, a esquerda muitas vezes conquistou exatamente as transformações que os conservadores insistiam em dizer que eram impossíveis. Os primeiros críticos do sufrágio universal alertaram que a democracia, inevitavelmente, se degeneraria em demagogia ou conflito civil, que seria desestabilizada pelas vulgaridades daqueles que Burke chamava de “multidão grosseira”. Na realidade, as democracias estabelecidas não são apenas os sistemas políticos mais estáveis e mais bem governados do mundo, mas também as métricas de liberdade e bem-estar são mais altas em lugares onde o papel das camadas “mais baixas” é mais institucionalizado, ou seja: as sociedades democráticas. 

Dessa maneira, críticos da saúde pública alardeiam que qualquer desvio dos mercados de saúde capitalistas provocarão resultados terríveis. Mas eles fazem essas críticas tendo à sua frente décadas de numerosas evidências de que a saúde pública produz melhores resultados, cobertura mais igualitária e custos mais baixos. Não é por coincidência que o National Health Service (NHS) – a instituição mais socialista do Reino Unido – seja, esmagadoramente, o serviço com mais aprovação. Em cada um desses casos (e em outros parecidos) os militantes de esquerda preferem ignorar os derrotistas e céticos e seguir adiante – e estão certos.

Às vezes comentaristas conservadores, especialmente Thomas Sowell, associam a tese da perversidade e da futilidade, afirmando que as políticas progressistas são tanto ineficientes como danosas a quem tentam beneficiar. Mas como Hirschman salienta, essa afirmação é quase contraditória, já que a tese da perversidade sustenta que, para os progressistas, é possível mudar o mundo – apenas de forma negativa – enquanto a tese da futilidade é muito mais cínica por acreditar que nada muda fundamentalmente.

“O apelo da tese do perigo brota da suposição de que não podemos ter muito de algo que é bom, ou muitas coisas boas, sem pôr em risco alguma outra coisa.”

O último tropo reacionário é a tese do perigo. Enquanto as teses da perversidade e da futilidade são “obviamente simples e triviais”, a tese do perigo se vale de uma abordagem mais elíptica para combater políticas de esquerda, afirmando que “propor mudanças, embora seja potencialmente desejável, envolve custos inaceitáveis ou consequências de toda sorte”. Em outras palavras, nosso desejo de querer ter tudo põe em risco o que já alcançamos.

Apesar de Hirschman ter seu foco sobre a direita, a tese do perigo não está restrita aos reacionários. Políticos de centro-esquerda contemporâneos, de Tony Blair a Hilary Clinton, expressam simpatia pelas metas igualitárias, porém opinam que qualquer esforço radical para alcançá-las resultaria em um mal-estar econômico.

É uma coisa que também tem raízes na teoria política liberal: os argumentos de Tocqueville acerca das tensões entre liberdade e igualdade e a separação que Isaiah Berlin faz entre liberdade “negativa” e “positiva” imediatamente vêm à mente. O apelo da tese do perigo brota da suposição de que não podemos ter muito de algo que é bom, ou muitas coisas boas, sem pôr em risco alguma outra coisa. O que leva a um derrotismo similar ao da tese da futilidade, no entanto um é mais melancólico do que cínico em seu anseio de otimismo que nunca pode ser realizado sem algum perigo.

Edmund Burke (1729–97). (Wikimedia Commons)

A força da retórica da tese do perigo se origina na insistência de que uma reforma ou instituição valorizada está sob ameaça. Por exemplo, Edmund Burke em seu Reflections on the Revolution in France afirma que os revolucionários trocaram um monarca decente por violência e caos.

Mas, por dois motivos, isso é menos convincente do que os reacionários pensam. Primeiro, como Hirschman pontua, se, anteriormente, o artifício e a sabedoria humana trouxeram alguma melhoria para a sociedade por meio de reformas e instituições, não há motivo para não podermos fazer algo assim de novo. Segundo – e aqui Hirschman poderia ter argumentado com mais firmeza –, pôr em risco uma conquista estimada só é algo significativo se estivermos satisfeitos com ela.

Muitos liberais clássicos contemporâneos se lamentam pela maneira que os progressistas dessacralizam os heróicos Pais Fundadores dos Estados Unidos e a sua sagrada Constituição, e se preocupam que, no afã de mudança, a esquerda destruiria uma ordem constitucional que funciona há muito tempo. Mas a constituição norte-americana, para começo de conversa, era um documento bastante falho – que transbordava características antidemocráticas e prolongava a escravidão – e que continua a tolerar podridão nos dias atuais. Se a consequência de questionar uma constituição aristocrática for colocar em risco a idolatria de qualidades a ela associadas, acho então que devemos correr esse risco.

A direita está errada

Como qualquer esquema ou tipologia, a “retórica reacionária” de Hirschman é, necessariamente, uma simplificação. Os pensadores conservadores mais notáveis e criativos desenvolveram ramos e fusões mais complexos dessas teses.

Ainda, quando alcançam o abalo almejado com sua retórica, os conservadores muitas vezes apoderam-se das armas da perversidade, do medo de perigo e da futilidade para passar um verniz de profundidade e apelo estético ao arranjos sociais que muitas pessoas rejeitariam em outras condições. Muitos desses arranjos são hoje tão indefensáveis que é possível ver conservadores por aí afirmando que sempre foram críticos a eles, assim como é possível ver tentativas recentes de reposicionar os conservadorismo como se ele fosse uma defesa dos direitos liberais contra os tiranos, como se fosse a democracia contra aqueles que fazem propagandas fraudulentas.

Esses fatos deveriam dar à esquerda a confiança de que, mesmo que os pratos da balança da história não pendam para o nosso lado, nossas ideias vão convencer mais pessoas no decorrer do tempo. E assim será porque são as ideias certas e o lado certo da história.

Sobre os autores

é professor visitante de política no Whitman College. Ele é o autor de "The Rise of Post-Modern Conservatism and Myth" e co-autor de "Mayhem: A Leftist Critique of Jordan Peterson".

Cierre

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Published in América do Norte, Análise, Europa, História and Livros

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