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As primeiras 192 moradias do programa Minha Casa, Minha Vida na modalidade Entidades – projetado e gerido por movimentos sociais – foram entregues em Taboão da Serra, na região metropolitana de São Paulo. Foto Danilo Ramos/RBA.

A habitação não pode estar sujeita à lógica financeira

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Tradução
Mauro Costa Assis

Estamos passando por uma das mais graves crises habitacionais que já vimos no país, com uma quantidade de moradores de rua nunca visto antes. Para entender como sanar essa questão, conversamos com Raquel Rolnik, urbanista, ex-secretária no governo Lula e autora do livro "Guerra dos Lugares: A Colonização da Terra e da Moradia na Era das Finanças", sobre a necessidade de promover programas habitacionais que respondam às necessidades das pessoas através de iniciativas populares.

UMA ENTREVISTA DE

Camila Parodi

Raquel Rolnik é uma arquiteta e urbanista brasileira. Ela se dedica a mais de quarenta anos como pesquisadora da academia, mas também como ativista dos direitos humanos na participação em políticas de planejamento, urbanismo e o problema habitacional. Por sua vez, foi uma promotora de políticas de habitação popular, planejamento urbano e desenvolvimento local no âmbito do governo do Partido dos Trabalhadores (PT) liderado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Entre 2003 e 2007, foi Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades.

Em maio de 2008, em meio à crise financeira das hipotecas, o Conselho de Direitos Humanos da ONU a nomeou Relatora Especial das Nações Unidas sobre o Direito à Habitação por seis anos. Nessa função, a pesquisadora avaliou e acompanhou as denúncias de violações de direitos humanos em questões habitacionais.

Recentemente, lançou seu último livro Guerra dos Lugares: A Colonização da Terra e da Moradia na Era das Finanças, editado pela Boitempo. Conversamos com Rolnik sobre a produção da cidade no contexto atual e as possíveis alternativas populares que respondem à financeirização do direito à moradia.


CP

Seu último livro, Guerra dos Lugares, recentemente publicado na Argentina, é um material essencial para repensar a cidade e compreendê-la no quadro das relações de poder. Nele, você escreve sobre a colonialidade do poder e qual o impacto disso através das finanças globais. Por que é importante falar sobre o poder colonial hoje?

RR

Toda a trajetória do livro Guerra dos Lugares veio da minha experiência como Relatora Especial para o Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) a partir de 2008, que coincidiu justamente com a crise financeira das hipotecas. Assim, ao tentar investigar as razões e as origens da crise financeira hipotecária, enquanto fazia meu trabalho de relatora, visitando diversos países do planeta, percebi que estávamos diante de um processo global, sobretudo os processos particulares e seus territórios.

Ali tomei isso como uma metáfora — que no final não era tanto— como uma ocupação territorial do espaço construído pelas finanças. De tal forma que estamos falando de uma nova potência colonial. Por que a ideia de colonialidade é importante para tentar avançar nossa compreensão desse fenômeno? Porque estamos falando de uma tripla ocupação: material, política e cultural. É uma ocupação material, pois todas as partes do território do planeta são capturadas por uma lógica de ocupação e gestão do lugar estabelecida por meio de regimes privados de controle territorial com o objetivo de gerar juros para o capital investido.

“A ideia de colonialidade vai muito além da ideia de colonialismo, como algo que ficou no passado. Estamos falando de uma renovação do conceito e da presença colonial no planeta.”

Mas é também uma ocupação política, porque, por exemplo, no Brasil, toda vez que se discutem políticas públicas nacionais, é anunciado na mídia: “O mercado está nervoso”. Mas o que é o mercado que “fica nervoso”? É o mercado financeiro. Há algo além, que é abstrato, que não tem vínculos com os territórios, mas que se sobrepõe às dinâmicas existentes, as controla e as submete politicamente. Porque, por causa dos “nervos” do mercado, presidentes, primeiros-ministros, coligações políticas caem, então é uma ocupação política também.

E, finalmente, continuando com a metáfora da colonialidade, esta é também uma ocupação cultural. É uma imposição de certas formas de organização do espaço novamente, se tomarmos como exemplo os centros comerciais de shopping centers, o que são senão uma nova forma de organizar a sociabilidade e também ligada aos processos de consumo. A imposição cultural de um modo de viver, de um modo de existir, de estar no planeta. A ideia de colonialidade vai muito além da ideia de colonialismo, como algo que ficou no passado. Estamos falando de uma renovação do conceito e da presença colonial no planeta.

CP

No livro, você também menciona que o aluguel é “a nova fronteira da financeirização da habitação”. Que lugar ocupa o mecanismo de aluguel no sistema financeiro e quais devem ser as respostas dos governos?

RR

É muito interessante olhar para isso a partir do processo de acumulação e financiamento da habitação. O que pudemos observar no ciclo anterior, que levou à crise financeira das hipotecas, foi a promoção da casa própria como algo novo. Porque, embora em alguns países de social-democracia onde as lutas históricas dos trabalhadores construíram a ideia da habitação social como uma realidade, em muitos outros países isso era uma ilusão, como no caso da América Latina. Mas, mesmo como uma ilusão, houve também essa mudança de que a moradia não é um direito social, não faz parte de uma política assistencialista — seja como realidade ou como ilusão — para se tornar uma mercadoria, um ativo financeiro, e dessa forma, políticas muito amplas têm sido promovidas para induzir a promoção da habitação e da propriedade via crédito imobiliário e hipotecário em todo o mundo, mobilizando inclusive um grande subsídio público nessas operações.

A habitação passou a ser como um elemento de passagem do circuito financeiro, dos excedentes financeiros para poder obter lucros. Assim, tornou-se um bem e também foi promovido culturalmente, de tal forma que a partir da habitação como garantia é possível emprestar e financiar o consumo, mas também financiar direitos. Ou seja, financiando educação remunerada, saúde privada e também como parte do investimento dos sistemas de previdência privada, ou seja, colocando tudo isso em um circuito permanente de valorização financeira e endividamento.

CP

E qual foi o resultado?

RR

O resultado desse primeiro ciclo foi uma enorme concentração de lucros nos gestores financeiros e um ciclo de desapropriação com perda de valor, com a falência de construtoras e execuções hipotecárias. Estou falando muito do processo norte-americano. Mas depois desse ciclo, o mesmo modelo de promoção da habitação e da propriedade via crédito imobiliário também foi aplicado na periferia do capitalismo. Vemos isso claramente a partir do modelo chileno, que depois se difundiu na América Latina, em África, nas várias partes da periferia do capitalismo.

“Durante a era Lula, com o governo do PT, o Brasil experimentou o financiamento habitacional massivo por meio da promoção da habitação via crédito hipotecário.”

É claro que nem mesmo na periferia do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos conseguiram acabar com o problema da habitação ou com o fato de muitas pessoas não terem onde morar ou não terem condições de pagar por um lugar para morar, e, portanto, há uma nova onda para tudo o que a emergência habitacional significou nos países do centro do capitalismo, toda uma nova onda de investimento em habitação nesta segunda onda de aluguéis.

Arrendamento como nova frente para a financeirização da habitação, os mesmos agentes financeiros, gestores de finanças globais que estiveram envolvidos na promoção da casa própria, tornaram-se agora locatários, proprietários corporativos de milhares de casas alugadas. E agora, em termos de políticas públicas, há mais uma vez uma promoção massiva em todas as partes do mundo da ideia de que “você tem que ter um setor de aluguel profissional, corporativo”. Um pouco com isso, abrindo o campo — que é exatamente o que os Estados fazem — para essa nova fonte financeira.

Por sua vez, fenômenos como o Airbnb, plataformas digitais para a mobilização do espaço construídas juntamente com a privatização e venda das ações habitacionais que estavam com os bancos pelas execuções de hipotecas por gestores financeiros. Todo esse processo também transformou a locação como uma nova frente de finalidade da habitação, agora trabalhando muito mais com a ideia de extrair juros e rentabilidade do tempo e não do espaço.

O tempo de permanência na habitação torna-se também uma unidade de extração de valor e avança ainda mais para uma nova forma de explorar os ganhos de capital. Por exemplo, no Airbnb, as próprias pessoas colocam seu trabalho e seu tempo para que as plataformas digitais possam extrair esses ganhos de capital.

CP

No livro você menciona as pessoas “sem lugar”. No contexto brasileiro, os “sem-teto” de hoje são os “sem-terra” da década de 1980, o que nos aponta uma continuidade na lógica da exclusão e marginalização, mas também da extração permanente de renda da terra rural e urbana. Quais são as experiências de resistência das pessoas “sem lugar” hoje? E, em particular, qual é o papel das mulheres?

RR

Todo esse processo ativa a luta em torno da moradia. É um processo que gera um novo grupo ou um novo segmento de despossuídos e despossuídas. Na questão da habitação há uma importante presença feminina, não só no processo de endividamento, mas também no processo de desapropriação, bem como na organização e luta pela moradia. Portanto, há toda uma nova geração de organização e luta em torno da habitação em diferentes partes do mundo. Organizações de pessoas afetadas por hipotecas e execuções hipotecárias, sindicatos de inquilinos e inquilinas, organizações de inquilinos, movimentos em torno do congelamento de aluguéis, denunciando aluguéis abusivos, rumo à regulamentação. Por exemplo, no Brasil, há uma nova onda de ocupações habitacionais nas periferias, mas também nas áreas centrais; São Paulo é um exemplo muito forte dessa nova onda.

“Devemos gerar políticas muito mais descentralizadas de apoio a iniciativas de habitação popular, a cooperativas já organizadas, a entidades e experiências de autogestão.”

Desde que a habitação se tornou um campo de aplicação financeira para as finanças globais, a pressão especulativa sobre os preços é muito maior, pois estamos falando de uma imensa massa de capital financeiro global que está procurando onde investir. Há novos instrumentos financeiros que conectam o espaço construído com as finanças e sua circulação dinâmica, títulos financeiros que conectam e permitem que o capital entre e saia. Assim, os pobres têm que competir com sua baixa renda pela localização com esse capital que está pronto para entrar e investir e com uma expectativa de remuneração a médio e longo prazo, não imediata. Por se tratar de um ativo financeiro, nem precisa ser usado, então podemos falar de uma espécie de “boom dos preços imobiliários” que se mantém mesmo em períodos de crise que se configura de forma mais ampla e global.

Assim, forma-se uma agenda muito importante de organização e luta. Em alguns países, não se via mais lutas em torno da habitação, e agora isso ressurge. Em países como Brasil e Argentina, as lutas por moradia sempre foram importantes e continuam ainda mais intensas.

CP

Estamos em meio as eleições presidenciais. O que você poderia nos dizer sobre o contexto atual e o que está em jogo para você em termos de direito à moradia?

RR

Durante a era Lula, com o governo do PT, o Brasil experimentou o financiamento habitacional massivo por meio da promoção da habitação via crédito hipotecário, que também foi um dos pequenos componentes da possibilidade de empréstimo para entidades autogestionárias. A moradia também foi construída pelo mercado com altíssimo subsídio do orçamento público, que ficou conhecido como o programa “Minha Casa, minha vida”, que produziu moradias na cidade e nas periferias e que não conseguiu efetivamente (pelo próprio modelo, por falha na sua aplicação) garantir a qualidade da habitação para a população.

“Estamos passando por uma das mais graves crises habitacionais que já vimos no Brasil. A quantidade de população que vive nas ruas é algo absolutamente impressionante e em uma escala que eu nunca tinha visto antes.”

Mas o que aconteceu após o golpe contra Dilma Rousseff foi a interrupção total dos programas habitacionais. Todo o subsídio que foi mobilizado no programa “Minha casa, minha vida” acabou. Estamos passando por uma das mais graves crises habitacionais que já vimos no Brasil. A quantidade de população que vive nas ruas é algo absolutamente impressionante e em uma escala que eu nunca tinha visto antes. A quantidade de novas ocupações também é muito grande nas periferias. E não só não há políticas públicas no nível federal do governo Bolsonaro, também não há políticas no nível estadual ou municipal nas cidades, é como nada.

Nesse contexto, também, acredito que a luta pela moradia começa a crescer. Uma campanha muito importante que ganhou muito territorialmente no Brasil é a campanha “Zero Despejos” para evitar que pessoas fossem despejadas durante a pandemia. É importante em termos de articulação real em torno da habitação com certa capacidade de aprovação de algumas medidas de suspensão de despejos, o que tem sido importante em alguns casos e que colocou a questão na mesa. No entanto, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) onde foi aprovada essa suspensão de despejos já terminou.

O que temos é uma situação muito complicada e acho que essa será uma questão importante na eleição. Também porque a questão da habitação durante todo esse período onde não houve política, o autodesenvolvimento e as ocupações de prédios cresceram muito, então a luta pela reabilitação dos prédios ocupados, a luta pela urbanização e consolidação dos assentamentos eu acho que vai ser uma luta muito importante.

Espero que haja uma política habitacional importante e que não voltemos a um programa como “Minha casa, minha vida” porque acho que isso também é uma discussão para tudo que é reconstrução pós-crise e pós-pandemia: um pouco para voltar ao que tínhamos, a ideia de que a habitação e as políticas habitacionais foram historicamente traçadas pelo setor industrial, construção civil e setor financeiro tem que mudar. Devemos insistir que não pode ser assim, que as políticas habitacionais não podem estar sujeitas à lógica financeira, mas à lógica das necessidades das pessoas e, assim, gerar políticas muito mais descentralizadas de apoio a iniciativas de habitação popular, a cooperativas já organizadas, a entidades e experiências de autogestão, que já temos. Espero que tenhamos um apoio muito maior a essas propostas e uma visão muito mais crítica dos programas massivos de promoção habitacional em geral em todas as partes do mundo, inclusive, não só no Brasil.

CP

Como você propõe em seu livro, se olharmos globalmente, há atualmente um processo de transformação que tem a ver com a produção da cidade. Isso levou à reconfiguração do papel dos governos locais e dos mecanismos de participação, bem como à incorporação de agências e leis que tratam da questão da habitação. No entanto, muitas vezes estes se tornam apenas discursos, sem participação real. Qual sua leitura sobre essas mudanças institucionais?

RR

Acredito que a questão seja definir o “locus de definição das políticas públicas”. Especialmente na política habitacional, o locus de definição é a negociação com o setor de construção civil e o setor financeiro e, portanto, a questão central é quantas novas casas podemos produzir e quanto crédito imobiliário podemos colocar? Esta é a questão central e não qual é a necessidade do povo. Mudar totalmente o locus de definição implica fazer uma leitura muito mais clara e a partir de baixo das necessidades específicas da habitação.

Significa também cortar a ligação entre finanças e habitação. É imaginar formas de organizar a habitação muito menos suscetíveis à financeirização. Por exemplo, cooperativas, eleições coletivas, ou seja, formas coletivas e solidárias de organizar o vínculo com o território de tal forma que possamos gerar espaços protegidos da complementação de espaços, reservados à vida e não à renda. Acredito que isso é muito importante e que o que a política pública tem que fazer é apoiar essas iniciativas com recursos públicos, ao invés de desenhar iniciativas que não dialogam com ninguém.

Sobre os autores

é uma arquiteta e urbanista brasileira. Foi Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva. É autora de Guerra dos Lugares: A Colonização da Terra e da Moradia na Era das Finanças (Editorial Boitempo).

é uma antropóloga e jornalista feminista argentina que é membro da Marcha. Atualmente atua como servidora do Estado na integração de políticas de urbanização e habitação popular.

Cierre

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Published in Cidades, Entrevista and Sociologia

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