UMA ENTREVISTA DE
Victor Marques e Gercyane OliveiraGuilherme Cortez tem 24 anos e será um dos mais jovens deputados da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Apesar da pouca idade, já acumula uma década de ativismo político: se politizou no movimento dos estudantes secundaristas da capital e participou dos movimentos das ocupações de escolas em 2015. No engajamento com as lutas, afirma que foi se compreendendo como um homem bissexual e um militante socialista.
Com mais de 45 mil votos, torna-se o primeiro deputado abertamente socialista a ser eleito pela tradicionalmente conservadora região de Franca, interior do Estado de São Paulo. Sob o slogan “Nosso futuro não espera”, encarou de frente a luta contra o bolsonarismo e fez uma campanha demonstrando a atualidade de um socialismo renovado, que incorpora com centralidade a defesa do meio ambiente e das lutas LGBTQIA+.
Com Jacobin Brasil conversou sobre sua trajetória política, o significado dessas eleições e os desafios para a reorganização da esquerda brasileira.
JB
Você é um dos mais jovens a entrar agora na Alesp, com uma votação expressiva de mais de 45 mil votos. Nada mal para um jovem ativista LGBTQIA+ e militante socialista em uma região com fama de ser bastante conservadora. Como você enxerga o significado de sua eleição em um Brasil ainda governado por Bolsonaro?
GC
O resultado no primeiro turno mostra que o bolsonarismo ainda mantém uma resiliência fortíssima, talvez maior do que as nossas análises otimistas indicavam. A extrema-direita está viva e articulada. Bolsonaro ficou à frente do Lula no estado de São Paulo, Tarcísio passou Haddad, elegeram senadores (inclusive em São Paulo), e mostraram uma vitalidade ainda muito preocupante. Apesar disso, é uma eleição que também mostra que o nosso lado tem crescido, que estamos no meio de um processo de reorganização da esquerda brasileira. Analisando as bancadas de esquerda, que já vinham se diversificando desde 2016 com um protagonismo de mulheres, pessoas LGBTQIA+, indígenas, negros, negras, pessoas muito jovens e com diferentes trajetórias de ativismo social, foi possível perceber que nessa eleição houve um salto maior ainda, mesmo em bancadas que já eram muito diversificadas. Eu faço parte desse processo. Tenho 24 anos, venho de uma região que é muito conservadora. E fui eleito. Serei o primeiro Deputado Estadual de esquerda da minha região. A região de Franca, uma cidade que nunca elegeu um parlamentar de esquerda, é muito violenta contra a esquerda em geral e contra a população LGBT.
Essa é uma eleição extremamente decisiva para os rumos do país. Temos que travar uma grande batalha ao longo do 2º turno para evitar o que seria, aí sim, uma derrota histórica. A continuidade do governo Bolsonaro seria uma tragédia sem precedentes. Por outro lado, podemos ver a esquerda retomando posições. Pode-se dizer que estamos acumulando, em um processo de crescente. Esse processo é acompanhado de uma reorganização, com protagonismo de setores que antes não assumiam essas posições. Creio que estou entre esses, por ser muito jovem e bissexual, por ser ativista ecológico, pelas identidades e pelas pautas que carrego.
Ainda estou processando essa vitória que, em alguma medida, também é histórica. Não é comum pessoas da minha faixa etária ocupando um espaço político que possui toda uma estigmatização, quando queremos dar a cara a tapa, não é comum ter pessoas LGBT ocupando espaços políticos. Cada um que conseguimos colocar lá é, também, uma vitória. E isso no interior do Estado de São Paulo, um rincão que foi curral eleitoral do PSDB, se transferiu para a extrema direita, e que hoje dá sustentação para o bolsonarismo. Mas a nossa vitória mostra que aqui também tem resistência, tem diversidade e tem uma força política e social capaz de ganhar, capaz de se tornar maioria e de inverter um pouco esse cenário.
JB
Conte-nos um pouco sobre a sua trajetória e formação política. Como você se tornou um militante?
GC
Desde criança já gostava de política, mas naquele sentido mesmo do senso comum, do que nos falam que é a política: gostava de horário eleitoral, observava quem participava da eleição, quem era eleito. Cresci tendo interesse por política. Por volta de 2013, quando tinha uns 14 anos e fui para o ensino médio, entrei na ETEC de São Paulo, onde o movimento e mobilização estudantil eram muito fortes. Coincidentemente, esse também foi o ano em que iriam acontecer as “jornadas de junho”. E eu, que já gostava muito de política, mas nessa questão quadrada, institucional, tive em 2013 um banho de água fria. Aí percebi que a política era muito mais do que aquilo.
Vi como o acréscimo de 0,20 centavos na tarifa do transporte público podia desencadear uma onda muito grande, capaz de fazer governos retrocederem. Percebi aí que mesmo coisas pequenas podem ter um efeito desproporcional, podem desencadear processo muito maiores. Tem uma história anedótica, que acho engraçada, é um detalhe, mas que marcou minha formação. A minha escola, que ocupava um quarteirão inteiro, tinha quatro entradas e, um dia, a diretoria da escola decidiu fechar uma das entradas laterais, o que deixava os alunos do terceiro ano com mais dificuldade para acessar o prédio deles – nada muito grave, só teriam que percorrer um caminho um pouco maior. E, aquilo que parecia algo banal, um portão que não atrapalharia grandemente a acessibilidade de ninguém, desencadeou um processo gigante de luta entre os estudantes, já que a escola era muito mobilizada. A coisa começou com um abaixo assinado, depois uma reunião com a diretoria, um ato e por fim os alunos acabaram arrombando o portão e saindo em caminhada até a Superintendência do Centro Paula Souza. E o portão ficou lá aberto, por anos.
Esses dois fenômenos, junho de 2013 e a história do portão, foram muito emblemáticos para mim. Fiquei pensando comigo: “caramba, a política pode ser também outra coisa além daquelas pessoas que eu vejo no horário eleitoral”. Não teve nenhum parlamentar em nada disso, nenhum deputado, não foi um juiz, ou um diretor que fez o portão abrir – nem a passagem cair: foram as próprias pessoas, se mobilizando coletivamente. Então 2013 foi uma virada na minha tomada de consciência política: passei a me entender como militante socialista de esquerda e entender que a política era mais do que disputar eleições, mas, também, mobilizações, ações coletivas de massas. Com isso me identifiquei quase imediatamente com o PSOL, também porque nunca neguei a política institucional. Passei a ver que eram duas coisas que se entrelaçavam: movimento e institucionalidade.
Tirei o meu título de eleitor assim que eu pude. Votei já com 16 anos e me filiei ao PSOL. Em 2015, participei das ocupações de escolas, ainda que a minha escola fosse uma ETEC (e não tivesse sido atingida naquele momento). Participei da ocupação da escola Fernão Dias, naquelas primeiras horas que ainda não havia saído a liminar que liberou as ocupações nas escolas. O local estava cercado por policiais, com um clima de muita tensão. Esse foi um processo que também me formou muito politicamente. As ocupações foram transformadoras, renovadoras, colocaram novas práticas para a esquerda.
No ano seguinte, entro na faculdade, venho para o interior, e percebo que várias coisas que em São Paulo eram banais, que nós, do movimento, já havíamos conquistado, no interior ainda estavam em falta. Era mais difícil fazer um ato, mais difícil ainda ocupar uma escola, fazer uma greve, organizar um partido e assim por diante. Então, nesses últimos seis ou sete anos que atuei muito ativamente em diversos movimentos aqui em Franca e no estado inteiro, no movimento estudantil da UNESP, por exemplo, rodei muito por esse estado para tentar refundar o DCE da UNESP, para enfrentar a precarização que a Universidade vive já faz alguns anos.
Tudo isso foi me formando como dirigente político, como militante e culminou em 2020, com a minha candidatura a vereador. Mesmo em uma cidade muito conservadora, terminamos a eleição com a quarta maior votação de todo o município. Foi muito surpreendente para a época, o que prenunciou que era possível estabelecer um polo político de esquerda no interior de São Paulo, que era viável defender as causas que defendemos, com criatividade, com ousadia e autenticidade. E isso nos trouxe essa eleição de agora.
JB
Você mencionou, como até um ponto da sua trajetória, um momento formativo, a ebulição social que se chama coletivamente de “junho de 2013”. É um tema ainda muito polêmico no interior da própria esquerda, porque 2013 desorganiza o tabuleiro em alguma medida, e ajuda a criar certas condições para que a extrema direita entre como um ator ofensivo na disputa política. No entanto, 2013 forma uma nova geração de militantes também e vemos agora esses militantes desempenhando com sucesso tarefas eleitorais. Qual a avaliação que você faz de 2013, das ondas de impacto que 2013 gerou, e quais foram os erros da esquerda ao lidar com esse tipo de fenômeno?
GC
Acredito que junho de 2013 foi um processo progressivo. Uma onda de mobilização que refundou a forma de se fazer luta política no Brasil. Despertou uma nova geração de militantes para a luta política. Não haveria ocupações de escola como houve em 2015, sem junho de 2013. A emergência de novas lideranças, com outra cara, como Marielle Franco, Taliria Petrone, ou como Sâmia Bomfim em São Paulo, depois a bancada feminista, passa muito por 2013 também. Acho que o sucesso da minha candidatura tem uma ligação com o que foi esse processo de 2013, essas características de manifestação espontânea, protagonismo da juventude, protagonismo de setores oprimidos, um certo rechaço às formas tradicionais de se fazer luta política, a experimentação com novos métodos. Tudo isso formou uma nova geração, colocou uma nova geração em movimento.
Junho foi progressivo por isso, porque colocou uma base social em movimento, por reivindicações justas e importantes. Mas 2013 também esteve em disputa. A nova direita também se aproveita da situação aberta por junho, disputa os rumos de 2013. E também se apropria desses novos métodos, principalmente o MBL, com essa nova forma de fazer manifestação, utilizando outras linguagens, outros artifícios. E consegue capitalizar uma parte disso também. Agora, não sou daqueles que tem a posição de que junho de 2013 foi quando começou a onda reacionária que vivemos até os dias de hoje. Foi uma manifestação popular legítima, por pautas legítimas, que questionava também limitações dos governos que estavam em curso, tanto à esquerda quanto à direita. Eram indignações genuínas sobre a qualidade do transporte público, da educação, a baixa intensidade de nossa democracia e nossos direitos, a truculência da Polícia Militar. Um processo com essas características não deve ser culpado pela maré que veio logo depois, como se a responsabilidade da ascensão da extrema-direita fosse da manifestação, dos movimentos. Como se caso tudo tivesse permanecido como estava não haveria problema.
Creio que 2013 poderia ter nos colocado em uma outra condição de disputa política, na esquerda e na sociedade, mas, infelizmente, a esquerda não conseguiu ganhar de conjunto o significado de junho, abrindo espaço para que boa parte das bandeiras fossem apropriada pela extrema direita, que conseguiu se projetar a partir disso. Junho de 2013 foi, portanto, ambíguo. Um processo progressivo com um resultado ambíguo. Por um lado, fortalece uma nova esquerda, o que é muito saudável para o país, que aposta na mobilização direta, no enfrentamento, na independência de classe, que dá protagonismo para a juventude, para setores ainda pouco representados dentro da esquerda, e isso vai formar toda uma nova geração de lutadores, com novos métodos de se fazer a luta social no Brasil. Mas, ao mesmo tempo, a direita também vai adequar suas formas, e aproveitar a crise política para partir para uma ofensiva. Eu diria que junho não foi completamente vitorioso: tivemos vitórias concretas e um legado de reinvenção organizativa importante, mas a direita foi capaz de capitalizar a situação melhor do que a esquerda.
JB
Guilherme, agora você está eleito. Além de ser um militante, agora vai ocupar uma cadeira no Parlamento. Como você vê a relação entre luta de massas, ação coletiva extra-parlamentar, e a ocupação de espaços institucionais? De uma perspectiva socialista, como articular o parlamento com a rua?
GC
Para mim vai ser uma experiência nova, porque nunca estive do lado de lá. O que tenho para me guiar é a teoria, e os acúmulos que a esquerda socialista mundo afora já chegou sobre esse tema. Já vimos muitas experiências da esquerda no mundo inteiro se degenerando por conta da relação com o parlamento. Ninguém está imune a isso. Não é uma questão de uma organização, de uma figura pública mais ou menos convicta, mais ou menos bem intencionada, mais ou menos consciente do seu papel. As pressões que o Estado, que o parlamento exerce, são muito concretas e objetivas. Já vimos organizações e figuras com diferentes graus de amadurecimento sucumbirem a essas pressões.
O papel dos socialistas dentro do parlamento é o de utilizar essa tribuna. Primeiro, para ser uma trincheira, e hoje isso é importante que nunca: ser uma trincheira de defesa dos direitos e da condição de vida do nosso povo trabalhador, que estão cada vez mais sob ataque. Se poderia até chegar à conclusão, de uma visão estratégica revolucionária, de que o trabalho parlamentar é de menor importância. Mas eu não acho que seja! Sobretudo porque nesse momento é fundamental que tenhamos mandatos extremamente atuantes, que utilizem todos os mecanismos que a institucionalidade confere para fazer o enfrentamento contra a direita, o enfrentamento ao neoliberalismo e à retirada de direitos. Então em primeiro lugar acho que o papel de um parlamentar de esquerda é esse: de ser uma trincheira de resistência e um porta-voz das demandas populares.
Em segundo lugar, um parlamentar socialista tem que servir para, desde dentro, desvelar as contradições do sistema, as contradições dessa máquina. A gente não está ocupando um espaço nosso lá, pelo contrário: não somos bem-vindos naquele espaço, que não nos aceita e jamais nos aceitará. Estamos ocupando um espaço que não é nosso. Precisamos fazer isso justamente para revelar todas as contradições em operação.
Um mandato parlamentar de esquerda que não esteja a serviço das lutas e dos movimentos, não serve para nada. Não entendo o mandato como um fim, mas como instrumento. Sou um militante hoje, um ativismo político há 10 anos, e continuarei sendo como deputado – agora com mais este instrumento para dar voz às lutas, as pautas que defendemos coletivamente. O mandato parlamentar tem que estar sempre a serviço das lutas em todas as mobilizações, em todas as manifestações, sendo utilizado, também, como uma fortaleza de legalidade para proteger os ativistas e as nossas pautas nesse contexto de perseguição e ofensiva da extrema direita.
JB
E quais são as principais bandeiras de luta que você pretende vocalizar no parlamento como tribuno do povo?
GC
Nós falamos sobre tudo. As pessoas às vezes têm a impressão de que por eu ser um homem bissexual e ativista do movimento LGBT, por isso ter forte ligação com nossa trajetória, nosso mandato seria monotemático. Pelo contrário. Primeiro, porque é impossível ser monotemático, já que as pautas que defendemos são profundamente interseccionais. Para você falar sobre a realidade da população LGBT, você também precisa falar sobre o déficit de atendimento integral de saúde para essa população, precisa falar sobre evasão escolar, questões de segurança pública. Nem seria possível reverberar uma única pauta.
Há, claro, algumas coisas que além de sensíveis são urgentes para nós. Por exemplo: os servidores públicos do Estado de São Paulo sofreram intensamente na mão dos governos do PSDB, principalmente durante esse último governo, do Dória, que acelerou os retrocessos. É fundamental recuperar os direitos dos nossos servidores.
Outro ponto: São Paulo é um estado inseguro. Mas principalmente para aquelas populações mais vulneráveis e mais marginalizadas: a população LGBT, os povos de terreiro, a população negra, que é vítima do genocídio, e as mulheres – venho de uma região onde os índices de feminicídio são gritantes e assustadores. É fundamental colocar essas especificidades no centro do debate político. Ter um plano estadual de combate ao crime de ódio, ter um conjunto de políticas públicas para combater essas práticas de violência.
Por fim, uma coisa que me preocupa muito, e que é pouco discutida pela imensa maioria das figuras públicas, inclusive da esquerda, é a crise ambiental e climática que vivemos. Segundo os especialistas, segundo quem estuda muito criteriosamente essa realidade, se nada for feito com extrema urgência para combater a crise climática e o avanço do aquecimento global no nosso planeta o que está colocado é uma realidade de extinção, em curtíssimo prazo, ainda nas nossas vidas. No mínimo, haverá uma mudança substancial no nosso padrão de vida, como aliás já acontece em partes do globo. Não é que as mudanças climáticas vão acontecer em um futuro distante: elas já estão acontecendo. Quando, por exemplo, tem uma estiagem forte, e falta água, como aqui em Franca. Quando o clima fica muito seco e ocorre uma tempestade de areia, como ocorreu aqui em Franca. Quando chove com muita intensidade e a torrente de água arrasa tudo, principalmente na periferia. E a tendência é que isso se avolume cada vez mais, resultando em amplo sofrimento e piora na vida da classe trabalhadora, caso não tomemos medidas enérgicas, concretas e urgentíssimas. Medidas em primeiro lugar para mitigar os efeitos das mudanças climáticas que já estão em curso e, em segundo lugar, reverter o processo de emissão de poluentes na atmosfera e destruição do nosso meio ambiente. Pensar a questão ambiental articulada com a questão social será uma prioridade do nosso mandato.
JB
Nós da Jacobin compartilhamos o diagnóstico da urgência de um programa ambiental da classe trabalhadora. O governo Bolsonaro tem sido um governo da destruição, que se orgulha de passar a boiada. Você chegou a ter um enfrentamento público com o ex-ministro de Bolsonaro, Ricardo Salles, nas ruas de Franca. Mas, como ativista ambiental e socialista, o que você acha que é possível fazer para conectar luta de classes e pauta ecológica? Como conectar o problema do fim do mundo com o problema do fim do mês?
GC
Uma das grandes questões para a sobrevivência do mundo é como que nós no sul global, onde estão os países que menos contribuiram para a crise climática, e no entanto são os mais diretamente atingido por ela, como podemos elevar a consciência ambiental, e ao mesmo tempo a consciência classista, para construir um caminho concreto de enfrentamento ao problema. Como aqui no sul, temos problemas materiais tão urgentes, que afetam mais visivelmente as pessoas trabalhadoras, acabamos com mais dificuldade para debater um tema que, à primeira vista, parece menos palpável, e que certamente está mais distante do senso comum, da percepção imediata. Isso acaba criando dificuldades na hora de organizar o nosso movimento.
No senso comum, por exemplo, ainda é muito forte a ideia de que fenômenos climáticos extremos não teriam como ser evitados, são como uma força da natureza, totalmente fora do controle dos seres humanos. A maioria das pessoas pensa: “ah choveu muito, mas o que podia ser feito em relação a isso?” – só Deus para dar um jeito. E no entanto hoje sabemos que esses fenômenos naturais não são estritamente naturais, mas também parcialmente sociais, afetados pelas consequências da nossa organização social e escolhas políticas.
A crise climática não é uma questão abstrata ou longínqua. Ela já está aqui, é extremamente concreta e presente, e quem mais a sofrem são as pessoas mais pobres, que moram na periferia, as pessoas da classe trabalhadora, sobretudo negras, indígenas, quilombolas. De modo que a pauta social e a pauta ecológica estão intimamente conectadas. O que a gente precisa é achar as táticas mais eficazes, encontrar a linguagem adequada, as formas de atuação que podem fazer avançar essa consciência.
Ainda hoje há quem trate na esquerda a pauta ambiental e climática como fosse uma pauta secundária, ou como se fosse uma pauta elitizada, inacessível. É um erro. Hoje vivemos em uma realidade onde 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil e isso só acontece porque não temos uma política de soberania alimentar agroecológica que aproveite o imenso potencial produtivo que temos no nosso país, que pode erradicar a fome não só no Brasil, mas em outros lugares do mundo.
Esse sistema como está hoje não é mais funcional para resolver os problemas sociais que temos. Pelo contrário: nos atrasa. Se fizéssemos uma transição agroecológica, uma transição energética e mudássemos a forma como se concentra as terras no Brasil, como se utiliza o solo no Brasil, poderíamos ter condições de vida mais dignas, saudáveis e sustentáveis, garantido não só bem estar para os trabalhadores hoje mas também o futuro das próximas gerações.
Ao contrário do que acontece na maioria dos países do norte global, no Brasil a principal causa de emissão de carbono não é a queima de combustíveis fósseis. A principal contribuição do Brasil para a crise ambiental e climática é pela mudança do uso do solo, com as queimadas, com o desmatamento, ou na produção do agronegócio. Com o governo Bolsonaro, e com o ecocida do Salles, isso se intensificou dramaticamente. O Brasil aumentou a sua contribuição para o fim do mundo. As queimadas e o desmatamento na Amazônia e em outros biomas batem recordes consecutivamente. Não só não estamos sendo parte da solução, como estamos agravando o problema.
Construir uma política ambiental para a classe trabalhadora passa por soberania alimentar, por agroecologia, por expandir as áreas de preservação ambiental e impor o desmatamento zero. Passa necessariamente por uma transição energética, que exigirá muito planejamento e investimento público, e por uma ampla reforma agrária popular. Fundamentalmente, passa pela disponibilização dos nossos recursos naturais e ambientais a serviço da vida, da preservação da vida e da continuidade dela pelas próximas gerações, e não mais para o lucro desenfreado de uma minoria muito rica e poderosa que está disposta a sacrificar a vida de toda a humanidade para manter seu domínio.
JB
A tarefa urgente é derrotar o Bolsonaro. Nós temos agora poucos dias para fazer campanha para garantir que a extrema direita só tenha um mandato presidencial. Como é que você está colaborando com essa tarefa? O que você acha que os militantes que nos lêem podem fazer?
GC
Uma parte de nós se surpreendeu com o resultado do primeiro turno. Existia uma expectativa de que o Lula pudesse ganhar no primeiro turno, e, a rigor, essa expectativa foi acertada: faltou, numericamente, muito pouco para isso acontecer. Deveríamos ter mesmo colocado todas as nossas forças para garantir uma vitória já no primeiro turno. O que surpreendeu, portanto, não foi essa nossa potencialidade, que se confirmou, mas a resiliência do bolsonarismo, que se mostrou bem mais firme e aglutinado do que imaginávamos.
Em muitos estados, a extrema direita conseguiu se organizar para garantir um crescimento substancial nas vésperas do pleito. Com isso, conseguiram chegar na frente aqui em São Paulo, elegendo senador, uma forte bancada. Não devemos nos enganar: a extrema direita é uma força ativa, enraizada, que sobreviveu e mantém capacidade de ação coordenada mesmo depois do desastre que foi o governo Bolsonaro. Esse problema continuará conosco por ainda um bom tempo.
Evitar a reeleição do Bolsonaro é tarefa da nossa geração. Um segundo governo de extrema direita, depois de toda experiência e sofrimento vivido pela classe trabalhadora nos últimos quatro anos, teria contornos de uma derrota histórica. Também não é menos importante afastarmos a extrema direita do governo do Estado de São Paulo, o maior estado em população do país, com uma das polícias militares mais violentas – que nas mãos da extrema direita não quero sequer imaginar o que aconteceria. Falo do interior de São Paulo, uma região que historicamente foi base eleitoral do PSDB, que ajudou a dar sobrevida para os governos do PSDB em São Paulo e dar competitividade nacional para as candidaturas presidenciais do PSDB. De 2018 para cá, essa base social migra para a extrema direita, e foi o que deu vantagem para o Bolsonaro e para Tarcísio no primeiro turno. Haddad e Lula ganham na capital, ganham na maior parte da região metropolitana, e em poucas regiões do interior – o restante do interior dá vantagem para o bolsonarismo. Aqui no interior de São Paulo, de onde eu falo, para mudar essa correlação precisamos tentar virar o jogo tanto para o Lula quanto para o Haddad. É possível. A diferença já tem diminuído, e as chances de uma virada são reais.
O melhor caminho para fazermos isso não é outro que não a nossa mobilização, principalmente a mobilização de rua. Lula tem feito atos massivos desde o começo do segundo turno. Esse é o caminho, mas precisamos replicá-los localmente, multiplicar os atos de campanha, interiorizar a mobilização. Defendo que derrotar a extrema direita não tem como ser uma vitória fria. Não será uma vitória passiva, que vem até nós, pelo contrário. Temos que nos mexer. Para ganhar, vamos ter que esquentar as ruas. O tipo de período político em que estamos vivendo exige de nós uma estratégia de mobilização permanente.
Há hoje uma extrema-direita militante no Brasil, que já mostrou sua capacidade de mobilização. Não podemos ficar para trás, nem nos deixar intimidar. Precisamos ocupar as ruas. Mas, também, absorver aquele clima de virar voto, conversar com as pessoas que não votaram, com as pessoas que ainda estão indecisas, que votaram em outras candidaturas ou mesmo com as pessoas que votaram no Bolsonaro mas não são bolsonaristas convictas. A menos que você seja muito rico ou se beneficie muito da dinâmica de violência e de opressão que o governo Bolsonaro incentiva, não tem motivo para votar neste governo. A imensa maioria do nosso povo não tem motivo para votar neste governo porque, na verdade, foi alijada durante os últimos quatro anos, perdeu seu poder de compra, perdeu pessoas queridas para a COVID-19, está vendo a comida ficar cada dia mais cara no mercado.
O nosso caminho é a verdade, a verdade está conosco. Por isso que eles têm que apelar para a mentira, para a confusão, para desinformação. É necessário dialogar com o máximo de pessoas para virar o voto, sobretudo nessas regiões que vão ser decisivas para poder dar a vantagem para o Lula e, aqui no estado de São Paulo, virar o jogo para o Haddad.
JB
Ao longo da sua fala, você falou muito de “classe trabalhadora” e se reivindicou socialista. O que significa para você o socialismo hoje? Qual é a estratégia socialista do nosso tempo? Quais são as tarefas da geração militante da qual você faz parte, não só agora, na conjuntura eleitoral, mas pensando no longo prazo?
GC
Sou socialista convicto desde a minha adolescência e estou cada vez mais confiante nessa tese. Acredito em um marxismo vivo, profundamente dialético. Tenho a impressão de que muitos que se consideram “marxistas ortodoxos”, na verdade, não são tão marxistas assim. Porque a ortodoxia não combina muito com marxismo. O que Marx nos ensina é que a compreensão sobre a realidade é profundamente dinâmica. Uma boa compreensão da realidade deve, portanto, incorporar sempre novos elementos, novas análises, novas figuras e conceitos, e isso torna o nosso projeto socialista mais forte, com mais vitalidade.
Acredito que o socialismo para o século XXI compreende a profunda intersecção que existe entre a classe trabalhadora, as identidades e os problemas mais prementes que vivemos. A ideia de que a classe trabalhadora é um sujeito unidimensional, masculino, heteronormativo, cisgênero, operário fabril, não está de acordo com a imensa diversidade da classe trabalhadora. Na verdade, a classe trabalhadora sempre foi muito diversa, e isso frequentemente se expressou nas suas formas de atividade política, mas hoje debatemos mais sobre isso teoricamente, e é bom que o façamos! Mostra uma teoria viva, capaz de lidar com os problemas reais da vida das pessoas.
O socialismo em que acredito anda casado com a luta contra as opressões. Da mesma forma que procura compreender as novas dinâmicas sociais que aparecem, inclusive no mundo do trabalho, como a “uberização”, e é capaz de assimilar esses novos processos para propor novas formulações. Um socialismo que não se contenta com uma fórmula acabada, mas busca o seu papel, que é mobilizar a classe trabalhadora em toda a sua diversidade, em toda a sua complexidade.
Os socialistas devem estar, por exemplo, junto com os entregadores de aplicativo, buscando maneiras de organizar os trabalhadores que não têm direitos. E devem entender que a luta contra o machismo, o racismo, contra a LGBTfobia, contra todas as formas de opressão, é uma luta conjunta. Não vamos esperar para abolir o capitalismo e só depois olhar para as outras opressões: vamos enfrentá-las aqui e agora, enquanto construímos juntos um caminho para a emancipação de todos. A luta socialista precisa ser vanguarda na luta pela libertação de toda a humanidade.
Por fim, precisamos de um socialismo que compreenda muito bem que sem um planeta saudável, sem condições ecológicas equilibradas, não vamos conseguir implementar uma sociedade radicalmente diferente dessa. Não vai existir abundância para todos em terra arrasada. Por isso, também não dá para esperar a vitória do socialismo para começar a reverter o estrago que o capitalismo tem feito no meio ambiente. E os marxistas têm que ser os primeiros a apontar que a pauta de classe e a pauta ecológica estão hoje completamente entrelaçadas. O ecossocialismo é a luta pela sobrevivência da humanidade. O Michael Löwy diz algo assim: “A minha geração costumava acreditar que a revolução era a locomotiva da humanidade, quando, na verdade, a revolução é o freio de emergência”. Um freio de emergência para impedir que a locomotiva do trem da humanidade caia num precipício de degradação e de destruição com a crise ambiental.
A esquerda do século XXI tem que ser profundamente ecossocialista, antirracista, feminista, anti-LGBTfobia, combater todas as formas de opressão e entender que essas pautas não são secundárias, mas dizem respeito à diversidade e concretude do nosso povo.