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A Assembleia Geral da ONU se reúne para discutir o embargo comercial e financeiro dos Estados Unidos contra Cuba, 2 de novembro de 2022. (UKI IWAMURA / AFP via Getty Images)

O Ocidente ainda quer dominar a economia do Sul Global

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A disposição dos votos da Assembleia Geral das Nações Unidas ocorrido este mês para estabelecer uma "nova Ordem Econômica Mundial" mostra que o Ocidente ainda busca estabelecer poder assimétrico sobre países situados no Sul Global.

Em 14 de dezembro, a Assembleia Geral das Nações Unidas iniciou a votação de um Projeto de Resolução intitulado: “Em direção a uma nova Ordem Econômica Internacional”. O projeto foi proposto pelo Paquistão e surgiu diante dos desafios enfrentados pela arquitetura econômica global, especialmente após os traumas causados pela pandemia de COVID-19 nos países com menor desenvolvimento e da necessidade de uma revisão da governança econômica mundial. 

Durante a votação, a Assembleia destacou a necessidade de explorar os meios e os instrumentos necessários para alcançar a sustentabilidade da dívida e as medidas necessárias para reduzir o endividamento dos Estados em desenvolvimento.

A proposta chama a atenção dos membros da ONU para a necessidade de uma reforma do sistema financeiro internacional. Nesse sistema, se incluem as instituições relevantes que tratem dessa temática, além do fortalecimento e aumento do alcance da voz e participação dos países em desenvolvimento a fim de que eles possam participar efetivamente no desenvolvimento de políticas macroeconômicas que os afetam.

O projeto foi aprovado com 123 votos favoráveis, 50 contrários e 1 abstenção. Apesar de ter contado com uma votação confortável, a pergunta que fica é: será que essa resolução terá algum efeito prático? A resposta conta com muitas nuances, mas ao menos em um primeiro momento, dificilmente ela terá.

Isso porque, desses 50 votos contrários, 3 deles são de grandes potências políticas globais: Estados Unidos, Reino Unido e França. Para além desses, outras potências econômicas mundiais votaram de forma contrária, a exemplo da Alemanha e do Japão, todos os países europeus e alguns parceiros tradicionais dessas potências, entre elas, Israel, um ator de grande importância econômica no Oriente Médio.

Quem acompanha política internacional já está acostumado a ver como países ocidentais se comportam em relação àqueles ainda em desenvolvimento. Seja a ausência eterna de países latino-americanos e africanos no Conselho de Segurança das Nações Unidas, apesar das constantes ações com o intuito de se iniciar um processo de reforma do órgão, seja nas pesadas cobranças sobre meio ambiente ou em termos econômicos.

Fato é que, embora apenas 17 territórios no mundo sigam vivendo sob o regime colonial, o Ocidente ainda busca, vez ou outra, exercer poder assimétrico em relação aos países situados no Sul Global. Entretanto, ao longo dos últimos 70 anos, esses países têm feito movimentos políticos interessantes a fim de, cada vez menos, serem vistos como parte da lógica imperialista de outrora.

Sendo assim, vemos que o peso político e econômico dos votos contrários é mais expressivo do que o número de votos a favor. Então, como proceder? A resposta pode ser encontrada em um termo diplomático pouco usual: mecanismos inter-regionais.

Um breve contexto histórico

Esses mecanismos inter-regionais são parte da herança da Conferência de Bandung, em 1955. O processo de descolonização afro-asiática marcou sensivelmente a arquitetura internacional a partir da década de 1950. Com o surgimento de uma série de novas nações, a geopolítica global sofreu importantes alterações e o sistema internacional contou com vozes até então vistas apenas como posses das grandes potências.

A partir do surgimento do ‘’Terceiro Mundo’’, essas nações buscaram compreender quais eram suas identidades para dentro e para fora. Isso porque processos de descolonização não tratam apenas de aspectos políticos. Eles obrigaram aos novos países buscarem conhecimento sobre si: de onde vieram, onde estavam e para onde queriam ir. Em outro sentido, não estar mais sob o domínio dos colonizadores garantia, em algum grau, poder.

Essas questões levaram a esses novos Estados a criar foros de debate, a exemplo da Conferência de Bandung. Os chefes de governo de Birmânia (Myanmar), Ceilão (Sri Lanka), Índia, Indonésia, Paquistão e tantos outros países da África, árabes e Ásia — quase 30, no total — se reuniram na cidade de Bandung, capital da província de Java, na Indonésia.

Entre os objetivos da assembleia, estava a promoção da cooperação entre as nações desses continentes, a apreciação dos problemas socioeconômicos de todos os países envolvidos e a garantia da paz entre esses mundos. Mas também havia uma série de problemas práticos. Entre eles, por exemplo, as discordâncias ideológicas entre os mais diversos participantes, como questões históricas não superadas e agravadas com os processos de colonização.

Algumas delas são as questões de limites causados pelas distribuições geográficas elaboradas pelas potências coloniais e tantos outros. Porém, existia um ponto de união entre essas nações: a luta contra as marcas do colonialismo e a mais completa repulsa a qualquer forma de soberania controlada ou sob tutela de nações brancas.

Em um telegrama enviado ao Ministério das Relações Exteriores, o embaixador do Brasil em Jacarta chegou a informar que Bandung seria conduzida por impulsos de exaltação nacionalistas, algo que poderia alterar bruscamente o curso da história e criaria, indiretamente, perigos para a segurança e a ordem social do Ocidente. 

Esse ponto de vista tem um fundo de verdade. Se analisarmos a configuração da Assembleia Geral das Nações Unidas, veremos como a chegada dessas novas nações impactou em como a política internacional seria vista. Em 1945, ano de sua criação, a ONU contava com 51 membros. Hoje, em 2022, conta com 193. Entre os anos de 1955 — quando ocorreu a conferência de Bandung — e 1965, 39 novos países africanos e asiáticos se tornaram membros plenos da ONU. Hoje, esses continentes contam com 109 países.

Se analisarmos os números acima de uma forma muito despretensiosa, poderíamos assumir que, considerando que a Assembleia Geral da ONU funciona como um parlamento e que seu processo decisório requer um quórum específico de votação, Ásia e África são continentes indispensáveis para qualquer processo política naquela Organização Internacional, certo?

A resposta é: depende. Seu peso é inegável, mas até que ponto países de fora do Ocidente conseguem influenciar efetivamente na política internacional? Muito pouco.

Nos estudos acadêmicos das Relações Internacionais, vê-se, com frequência, a divisão do mundo em polos. O norte e o Sul; os multipolos e assim sucessivamente. Se assumirmos que este ensaio se pauta em um viés decolonial, precisamos olhar o mundo a partir das noções de norte e sul globais. A realidade é que o Sul Global é a posição onde todos os países que não fazem parte do Ocidente estão situados. Em outras palavras: é o ‘’Terceiro Mundo’’ dos tempos de Bandung, ou os ‘’Países em desenvolvimento’’ da nomenclatura moderna.

As Nações Unidas e nova Ordem Econômica

Um conceito muito básico para mecanismos inter-regionais seria o agrupamento que reúne países de diferentes regiões do mundo, independentemente de sua configuração política, que se unem na persecução de um interesse comum a fim de fortalecer laços históricos, políticos e, principalmente, econômicos. São diversos os mecanismos espalhados pelo mundo, todos com objetivos muito semelhantes.

Alguns exemplos são a Liga dos Estados Árabes, que conta com 22 membros espalhados pelo Oriente Médio e África; a União Africana, que conta com 55 membros e busca soluções africanas para os desafios enfrentados por seus países; e o BRICS, agrupamento formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, potências emergentes cooperando em áreas que tenham o potencial de gerar resultados concretos às populações de seus integrantes.

Esses mecanismos têm em comum a capacidade ampliar os espaços de concertação política em escala global, sem, necessariamente, depender do crivo de potências tradicionais.

O caso do BRICS é bastante importante, uma vez que, com a criação do Novo Banco de Desenvolvimento e do Arranjo Contingente de Reservas, surgiram novas oportunidades de cooperação — e investimento — para o enfrentamento dos desafios comuns dos países de renda média. Com isso, o bloco passou a ser, em situações específicas, uma instituição com capacidade de financiamento alternativa para essas nações e seus membros.

Essas medidas ainda estão muito aquém do necessário para o Sul Global possa agir de forma completamente autônoma do Ocidente. É contraproducente considerar um mundo dividido em que as relações entre norte e sul sejam antagonistas.

Porém, é inegável observar que muitas das dinâmicas de um mundo que já não deveria mais existir seguem presentes e, para tal, fazendo-se necessária a adoção de ações diplomáticas e da formulação de uma política exterior que fortaleça, cada vez mais, a coordenação política entre os países do sul. Se analisarmos novamente a votação ocorrida no âmbito da Assembleia Geral das Nações Unidas, todos os países que são membros de mecanismos inter-regionais citados aqui votaram da mesma forma.

Nesse sentido, é possível compreender que, embora o multilateralismo seja um importante instrumento político, enquanto reformas sensíveis em suas estruturas não forem realizadas, resta aos países em desenvolvimento agirem, também, à margem dessas instituições a fim de que possam, juntas, construírem uma ordem internacional cada vez menos assimétrica.  

Sobre os autores

Alexandre Lins

é cientista Político. Pesquisador de História Internacional com ênfase em Impérios, Descolonização e Relações Diplomáticas.

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Published in Análise, Economia and Guerra e imperialismo

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