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Filmagem histórica de Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista (Netflix).

Como a direita chilena facilitou a existência de uma seita nazista

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Tradução
Larissa Helena

Faz tempo que os chilenos sabem sobre a Colonia Dignidad, um assentamento alemão no Chile retratado no seriado da Netflix Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista, cujos membros cometeram incontáveis atos de pedofilia, assassinato e tortura. Mas não é muito conhecida a cumplicidade da direita com esses crimes.

O seriado da Netflix Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista é um louvável esforço para familiarizar o público internacional com a infame história da Colonia Dignidad, um assentamento alemão no sul do Chile. Desde meados dos anos 1960, a maioria dos chilenos sabe da existência da colônia e de seu histórico de crimes atrozes, que incluem pedofilia, assassinato e tortura. Agora, graças à pesquisa e ao trabalho dos diretores Wilfried Huismann e Annette Baumeister, o restante do mundo também pode aprender sobre a história de um dos episódios mais sombrios da história recente do Chile.

Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista é uma crônica da história da seita desde a sua fundação na Alemanha Ocidental de 1950 até 2005, quando seu carismático líder, Paul Schäfer, foi detido e preso. No decorrer de cinco episódios, o espectador descobre uma série bizarra de eventos: a começar pela condenação de Schäfer pelo abuso sexual de duas crianças na Alemanha em 1961, que leva à fuga do líder com cerca de 300 seguidores para o Chile, onde formam uma colônia agrícola no sopé dos Andes, aproximadamente 400 km ao sul da capital, Santiago. Para além do alcance das autoridades alemãs, a colônia rapidamente descobriu que também contava com uma posição extrajudicial no Chile, o que permitiu que Schäfer se referisse a sua comunidade pelo pavoroso termo “paraíso dos pedófilos”, segundo descrevem suas vítimas.

“O fato mais chocante talvez seja que essa situação extrajudicial tenha perdurado após a transição para a democracia no país, em 1990.”

Para tornar a situação ainda mais bizarra, nos anos 1970 Schäfer desenvolveu um relacionamento estreito com a ditadura de Augusto Pinochet, oferecendo a colônia como um centro de detenção secreto onde o regime poderia torturar e assassinar cidadãos chilenos. Descobrimos que Schäfer não se limitou a envolver-se pessoalmente no assassinato de prisioneiros, mas também era o responsável por queimar e se livrar dos restos mortais, fazendo com que “desaparecessem” para sempre. Como o seriado bem ilustra, é difícil encontrar uma faceta da criminalidade — corrupção, conluio, venda ilegal de armamentos, conspiração contra um governo democraticamente eleito, intimidação de testemunhas — que não tenha sido executada à perfeição pela colônia de Schäfer. O fato mais chocante talvez seja que essa situação extrajudicial tenha perdurado após a transição para a democracia no país, em 1990, dificultando ainda mais o processo de levar Schäfer à justiça.

Colônia Dignidade apresenta essa perturbadora história de maneira eficiente através de entrevistas com uma ampla gama de testemunhas — em sua maioria membros e vítimas da colônia  — e através de filmes inéditos cedidos pelo cinegrafista da colônia. O seriado não chega a apresentar novas informações, pelo menos não para os espectadores chilenos que há três décadas vêm aturando o nome de Schäfer em seu ciclo de notícias. Ainda assim, Colônia Dignidade é tão envolvente como é informativo para o público internacional. Ao longo da história, aborda tópicos importantes, como a psicologia dos colonos, sua posição singular tanto como vítimas e como também devotos que cometiam crimes – e como, anos mais tarde, eles reconstroem as memórias e explicam seus atos.

Filmagem histórica de Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista (Netflix).

Faria sentido esperar que, diante de um assunto tão familiar, os diretores se concentrassem em questionamentos de alto nível. Nesse sentido, Colônia Dignidade adota uma postura relativamente simplista.

No documentário, Schäfer é retratado como um tirano que se valeu de uma série de táticas sadistas para controlar sua comunidade e é portanto o único responsável pelos crimes da colônia. Os fiéis membros de seu círculo mais íntimo — os entrevistados Kurt Schnellenkamp, Gerhard Mücke, and Karl van den Berg, por exemplo — agem como se não tivessem tido muita escolha a não ser agir de acordo com os caprichos do líder.

Mas o fato de que Schäfer conseguiu manter o controle de sua colônia de maneira tão eficaz, mesmo a distância — durante, por exemplo, um período de 7 anos em que passou como fugitivo na Argentina — é um mistério que segue em grande parte inexplicado. E mesmo se aceitássemos que a culpa está exclusivamente nas costas de Schäfer, uma série de autoridades e instituições externas deveria prestar contas por ter permitido que tal monstruosidade tenha se desenvolvido por tanto tempo no seio do Chile.

Um nazista na América Latina

Relatos de como a América do Sul se tornou um lugar seguro para nazistas e fascistas já ganharam o status de clichê histórico. Por ser uma produção alemã, Colônia Dignidade evita tais generalizações, apesar de convidar os entrevistados a formular conexões entre Schäfer e o nazismo. Suas opiniões, no entanto, são inconclusivas. Apesar de o rótulo “nazi” e “apoiador de Hitler” ter se tornado comum em associação a Schäfer, há um elemento de exagero nestas alegações. O que sabemos é que Schäfer, nascido em 1921, sem associação ao partido Nazista e não tendo servido como oficial da SS, era tão nazista quanto qualquer outra pessoa na Alemanha de 1945.

“É impossível não se perguntar como um pedófilo fugido da Alemanha obteve um estatuto jurídico extraterritorial e consolidou tamanho poder político de maneira tão rápida e fácil.”

Ainda assim, Colônia Dignidade varre rápido demais a relação da colônia com o nazismo para debaixo do tapete. Para começo de conversa, hoje sabemos que a colônia pertenceu a uma rede de ex-nazistas vivendo na América Latina, que incluía nomes como Gerhard Mertins e Walter Rauff. Além disso, é impossível desligar completamente a ideologia da Colonia Dignidad do nazismo. Schäfer, Schnellenkamp e Mücke eram de uma geração de jovens que se achavam destinados a se tornar “o novo homem”, como parte do Volksgemeinschaft nazista — a “comunidade nacional”. Suas ideias totalitárias frequentemente eram formuladas em termos religiosos, mas se sobrepunham a conceitos nazistas de comunitarismo e pureza sexual. Como os trechos de áudio da série revelam, a linguagem de Schäfer também era repleta de alusões racistas.

Mal se pode acusar o governo chileno de propositalmente permitir que nazistas operassem livremente dentro de seu território. Ainda assim, é impossível não se perguntar como um pedófilo fugido da Alemanha obteve um estatuto jurídico extraterritorial e consolidou tamanho poder político de maneira tão rápida e fácil.

Foi em 1966 que o público chileno soube pela primeira vez das práticas de Schäfer, quando um jovem membro da colônia, Wolfgang Kneese (originalmente Wolfgang Müller), fugiu e contou a história à imprensa. Apesar do grande escândalo e de um mandado de prisão em seu nome, Schäfer foi bem-sucedido na mobilização de diversas figuras políticas de grande influência, conseguindo com que o juiz decidisse em seu favor, e virando o jogo para acusar o delator. Em apenas cinco anos desde sua fundação, o poder político da Colonia Dignidad já era estonteante.

Filmagem histórica de Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista (Netflix).

Como e por que o governo chileno permitiu que essa anomalia jurídica se desenvolvesse e prosperasse? Colônia Dignidade apresenta algumas possíveis respostas. Em primeiro lugar, o resultado da devastação deixada pelo terremoto de Valdivia em 1960 fez um Chile disposto a aceitar a entrada de qualquer organização de “caridade” estrangeira no país. O Chile e a Alemanha Ocidental chegaram a assinar um tratado para estimular tais atividades. Schäfer, sagaz, construiu um hospital, angariando assim o apoio das comunidades vizinhas à colônia. Colônia Dignidade chega a insinuar que os chilenos se impressionam com tudo o que vem da Alemanha — o que o crítico cultural Ilan Stavans definiu como a inclinação da América Latina a perceber europeus brancos como “estrangeiros bem-vindos”. 

Tais explicações são importantes, mas podem acabar distraindo-nos de uma verdade histórica crucial: em grande parte, a culpa pela existência e criminalidade da Colonia Dignidad é da direita chilena. Os realizadores da série se abstém dessa declaração, mas não resta sombra de dúvida: do presidente chileno direitista Jorge Alessandri e seu embaixador na Alemanha Arturi Maschke, passando pela elite empresarial do Chile, pelo sistema judiciário, pelos neo-fascistas do Patria y Libertad, pelas forças armadas do Chile, e pela maioria dos funcionários do governo Pinochet, inclusive o partido direitista pós-Pinochet, o UDI, cujo falecido líder Jaime Guzmán usou a Colonia Dignidad como centro para sessões de “doutrinamento”, todo o setor conservador do Chile tem que responder pela vergonha nacional que é a Colonia Dignidad.

“Schäfer teve um papel significativo em incitar a direita a conspirar contra o presidente socialista democraticamente eleito Salvador Allende.”

Inclusive, Andrés Chadwick e Hernán Larraín Fernández — ambos membros da UDI e do último gabinete do presidente Sebástian Piñera — continuaram apoiando Schäfer até parte dos anos 1990. Conservadores que hoje em dia zombam da ideia de educação sexual dizendo que “incita pedofilia”, facilitaram os atos de alguns dos pedófilos mais terríveis da história recente; os mesmos que fingem ser os defensores da “família cristã” fortaleceram uma seita que impôs sistematicamente a coletivização da criação de filhos; os mesmos que exigem lealdade ao orgulho nacional chileno macularam a imagem do país internacionalmente.

Não é fácil entender por que os conservadores chilenos apoiaram Schäfer com tanto gosto. A simpatia que sentiam em relação aos colonos alemães sem dúvida tinha raízes em preconceitos raciais e culturais, mas é possível que houvesse motivações mais triviais em jogo. Afinal de contas, Schäfer era uma figura de grande influência política, capaz de mobilizar eleitores rurais em uma era — a do governo Salvador Allende da época da Unidade Popular — em que a direita chilena estava perdendo drasticamente o apoio popular.

Além disso, a Colonia Dignidad foi apenas uma de várias sociedades cristãs que chegavam ao Chile — junto à Opus Dei; Schoenstatt; Tradição, Família e Prosperidade; por exemplo — e todas buscavam mobilizar cidadãos comuns contra os Democratas Cristãos de Eduardo Frei e, mais tarde, contra Salvador Allende. Assim, Schäfer teve um papel significativo em incitar a Direita a conspirar contra o presidente democraticamente eleito no país. Claro que há alguns conservadores chilenos — Joaquín Lavín, membro da Opus Dei, é um exemplo — que criticaram abertamente os crimes de Schäfer. A série inclusive mostra Roberto Thieme, líder do Patria y Libertad, lamentando os “assassinatos excessivos” da ditadura. Ainda assim, condenar não é o mesmo que tomar responsabilidade, e menos ainda do que admitir culpa.

E os sobreviventes?

Paul Schäfer morreu em uma prisão chilena em 2010. Para suas vítimas, a história não terminou aí. O paradeiro e modo de subsistência dos ex-membros da Colonia Dignidad são temas que Colônia Dignidade aborda apenas superficialmente. (O documentário Cantos da Repressão trata do assunto em mais detalhes.) Pouco aprendemos do que foi feito da colônia em si, hoje conhecida como Villa Baviera, e menos ainda sobre quem controla seus bens. Curiosamente, a propriedade da colônia foi transferida para uma empresa de participações aberta que agora é controlada pelos filhos dos membros do círculo íntimo de Schäfer.

Filmagem histórica de Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista (Netflix).

A maioria dos colonos já saiu da Villa Baviera. Alguns permaneceram no Chile, enquanto outros voltaram à Alemanha e à Áustria. Nunca tendo recebido educação formal, muitos se encontram em situação precária. A maioria, agora perto da idade de se aposentar, recebe aposentadorias no valor mínimo, já que a Colonia Dignidad só começou a pagar impostos ao Estado chileno na década de 1990. Em resumo, a negligência dos governos chileno e alemão deixou na vida de diversos homens e mulheres uma marca que perdura até hoje.

Também não é fácil considerar a Alemanha isenta nesta história. Por três décadas, a Alemanha Ocidental não fez nada para proteger seus cidadãos que moravam no Chile de abusos sexuais, trabalho forçado e tortura — um fato que o ministro das relações exteriores alemão admitiu em 2016. O governo alemão recentemente assumiu certa responsabilidade pelas vítimas da Colonia Dignidad e, desde 2018, paga indenizações a mais de uma centena de pessoas. Não obstante, o governo alemão também deixou claro que esses pagamentos não devem ser considerados atos de reparação, mas de caridade.

Sintomaticamente, o sistema jurídico alemão também se recusou a cumprir a prisão de Hartmut Hopp, braço direito de Schäfer, que em 2011 foi condenado no Chile a cinco anos de prisão.
Mais amplamente, a série não deixa claro para os espectadores a que ponto a Colonia Dignidad se tornou um símbolo cultural em tempos recentes. Os últimos seis anos foram palco para pelo menos meia dúzia de filmes e seriados — tanto de ficção como documentários —, além de diversas publicações artísticas e jornalísticas sobre o assunto. Aliás, ver como a Villa Baviera se tornou hoje uma atração turística acrescenta mais uma perturbadora camada a uma história de criminalidade e negligência já bastante sinistra.

Sobre os autores

é bolsista Lady Davis no Departamento de Estudos Espanhóis, Portugueses e Latino-Americanos da Universidade Hebraica de Jerusalém. Seu próximo livro, “Hispanic Technocracy: Turning Fascism into Catholic Authoritarianism in Spain, Argentina, and Chile”, explora as fases iniciais da virada neoliberal da América Latina.

é coordenador do projeto “Colonia Dignidad: A Chilean-German Oral History-Archive” (cdoh.net) na Universidade Livre de Berlim. Sua tese de doutorado abordou a reação das ditaduras argentina e chilena às críticas internacionais sobre as violações de direitos humanos.

Cierre

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Published in América do Sul, Filme e TV, História and Resenha

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