José Celso Martinez Corrêa, que nos deixou semana passada, foi uma das figuras mais entusiasmantes, gostosas e gozosas da cultura, da política e da vida. Ele devorou o teatro revolucionário europeu de Stanislavski, Meyerhold, Artaud e Brecht, dando coletivamente corpo ao Teatro Oficina Uzyna Uzona. Personagem do terceiro-mundismo, deslocou a incitação de Che Guevara pela multiplicação da subversão vietcongue, ao perceber o papel do teatro na “abertura de uma série de Vietnãs no campo da cultura – uma guerra contra a cultura oficial, de consumo fácil”.
Zé Celso compõe essa geração que pensou-sonhou e tentou concretizar um brazyl – com Cacilda, Celso Furtado, Darcy, Guerreiro Ramos, Glauber… A descolonização como conduta e ética de sua vida-obra e a antropofagia como confluência e inspiração dessas experimentações subversivas, numa efervescência político-cultural que vai ser duramente golpeada em 1964 pelos militares e a classe dominante e novamente no fim de 1968 com o AI-5.
Legado e lutas atuais
O Oficina viveu o maio parisiense de 1968 com o Rei da Vela e na sequência, no Brasil, incendiaram a cena com Roda Viva, que será reprimida pelos grupos de extrema direita e proibida pela censura. Após prisão e tortura, Zé habitará a Revolução dos Cravos em Lisboa e a celebração da vitória da independência em Maputo em 1974-1975. Mergulhou também no sertão e encenou o abolicionista Antônio Conselheiro na comuna-Canudos.
Nesse século não cessou de insistir na direção político-existencial dos povos indígenas e quilombolas e é nesses termos que vai compreender o embate entre Oficina e Grupo Silvio Santos. Como ocorre com os povos da terra e nas múltiplas ocupações na cidade e no campo, se escancara a incompatibilidade dos seus modos de vida com o universo capitalista, encenada recorrentemente na deglutição do inimigo, na radical sabedoria de se lidar com o antagônico. Parque do Bixiga contra as fálicas torres e o projeto monocultural do Grupo SS.
Nessa semana que foi a mais quente já registrada na história só se reforça a urgente atualidade de reavivar as águas e matas da cidade, inclusive em seu centro. A infraestrutura marxista ampliada, da economia para a vida. Um teatro-rua, teatro-pista, teatro-multidão, teatro-carnaval, do janelão de vidro em sua conexão com a cidade, atravessado pela cesalpina, árvore totem – que nasce dentro do teatro de Lina e vai pra fora. O transbordar de uma cosmopolítica; terra e democracia sendo semeadas.
Zé, nesses últimos meses, estava mergulhado na dramaturgia de A queda do céu de Davi Kopenawa e Bruce Albert, planejando o trabalho inédito com indígenas.
“Zé vai, ainda, pescar a dimensão subversiva dos vinte centavos e da proposta geral do MPL como ‘uma metáfora para o passe livre de tudo, inclusive do teatro’.”
Zé era de marcante generosidade com os jovens, o Oficina lançando para o mundo inúmeras atrizes, atores e artistas. Sempre atento às novas irrupções – as incluindo a toda hora nas peças, em transformação permanente –, foi pioneiro, na linha do bárbaro tecnicizado de Oswald, na filmagem e transmissão dos espetáculos.
Em entrevista nas semanas seguintes às revoltas de junho de 2013, com a brasa ainda quente, Zé Celso situa a virada nos termos de uma retomada de “um espírito de aqui e agora, uma coisa que é ‘1968’. […] Em duas semanas, o Brasil mudou. Tudo mudou, e tudo tem que mudar”. Vai, ainda, pescar a dimensão subversiva dos vinte centavos e da proposta geral do MPL como “uma metáfora para o passe livre de tudo, inclusive do teatro”. E encara os protestos como um coro; não “os coros de musical americano, de levantar a perna na hora certa. São coros como o futebol, de indivíduos que jogam, que entram em contato com o publico”.
Invocando Artaud e um panteão do teatro, diz “incentivar o poder humano neles, de se autocoroarem. De cada pessoa emanar o seu poder. Teatro é democracia direta. Instantanérrima”. Em contraposição a “todas as catracas, as jaulas, as coisas que fecham, você tem que ir driblando, driblando, driblando para emergir, dar o que você sabe e receber dos que sabem, dos que estão sabendo agora”.
“Venho de uma coisa muito anterior a mim mesmo”, dizia ao ser perguntando sobre o futuro do Oficina e invocando Dioniso e Eros. Pelo Zé e pelo bairro (a bandeira do Vai-Vai cobrindo belamente seu caixão), devemos conquistar o Parque do Bixiga. A comuna-Oficina seguirá, mutação de apoteose, como um laboratório da felicidade guerreira de corpos elétricos no terreyro eletrônico. Vai re-exisitir, puxada pelas bacantes, nessa dimensão recorrentemente colocada por Zé de “um trabalho de libertação, inclusive de si mesmo” que se conjuga ao “sentido de libertar a força de produção que todo mundo tem e, com a soma dessa força de produção, rebentar as relações de produção velhas que estão te reprimindo”, constituindo assim “o movimento revolucionário”.
Exu das artes cênicas (honraria dada por Mãe Stella de Oxóssi), sai de cena miticamente com o fogo, como Sara Antunes tão bem colocou. Em toda sua existência Zé professou e exerceu o luxo comunal, da classe que produz e cria (o emblema do Oficina sendo a bigorna), no ofício (e sacerdócio) teatral, nos amores e no modesto apartamento compartilhado. A beleza da vida coletiva.
Sobre os autores
é professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo com doutorado em Sociologia (Unicamp) e mestrado em Relações Internacionais (IRI/PUC-Rio). É co-organizador dos livros "Junho: potência das ruas e das redes" (2014), "Cartografias da emergência: novas lutas no Brasil" (2015) e "Negri no Trópico” (2017). É autor de Marx Selvagem (Autonomia Literária, 2018).