UMA ENTREVISTA DE
Isabela BenassiMargarida Alves, liderança sindical da luta no campo, foi brutalmente assassinada no dia 12 de agosto de 1983. A injustiça de sua morte gerou revoltas por todos os cantos do país e sua memória ecoa em meio às lutas populares.
A Marcha das Margaridas é um dos reflexos desse evento histórico, sendo uma manifestação popular conduzida por centenas de mulheres rurais, mas também por setores das florestas e das águas, que acontece há mais de 20 anos, em Brasília. Em 2023, após seis anos de resistência, a 7ª Marcha das Margaridas bateu recorde de mobilização, reunindo mais de 150 mil mulheres em marcha rumo ao Palácio do Planalto.
Nesta conversa com Isabela Benassi, colaboradora da Jacobin Brasil, Mazé Morais, coordenadora geral da Marcha das Margaridas, nos conta sobre o processo de mobilização deste evento e a luta pela reconstrução da democracia conduzida pelas mulheres do campo.
IB
Mazé, nos conte um pouco sobre a sua trajetória.
MA
Eu sou Maria José Morais Costa, mais conhecida como Mazé Morais. Sou nordestina, do estado do Piauí e agricultora familiar, filha de um casal de agricultores que tiveram nove filhos. Como eu vivia da roça junto com meus pais, comecei a me organizar entre a juventude do campo, na nossa comunidade, na cidade de Batalha (PI). Eu comecei bem jovem nos movimentos, nas pastorais da juventude. Me identifiquei com a luta desde cedo, porque meus pais também sempre foram sindicalizados. Peguei o exemplo e segui em frente.
Batalha é uma região com pouco mais de 28 mil habitantes e que a maior parte da população é agricultora. Logo o sindicato dos trabalhadores rurais (STTR) da minha cidade observou a movimentação que estávamos fazendo por ali e chamou a juventude para compor a diretoria. Foi quando o sindicalismo entrou na minha vida mais formalmente. Me organizei junto a diversos jovens nas comunidades rurais, discutindo sucessão rural, construindo uma nova visão sobre a importância da participação sindical entre os jovens e as mulheres, mas também pensando sobre nossa participação na construção de políticas públicas.
Então a minha trajetória de luta nunca mais parou, fui seguindo no sindicalismo, fortalecendo a construção da luta no campo em suas diversas frentes. Da estrutura sindical em Batalha, passei para a federação estadual do Piauí, como liderança da juventude, e depois de quatro anos, fui indicada para a composição da direção nacional da CONTAG. Agora, desde 2017, sou Secretária de Mulheres da CONTAG e a tarefa de organizar as mulheres me fez refletir sobre a função do feminismo e da grandiosidade de conduzir a Marcha das Margaridas.
IB
Essa é uma ótima deixa pra gente perguntar como foi o processo de mobilização da 7ª Marcha das Margaridas. Como foi a experiência de coordenar a mobilização nesse período pós pandemia e governo Bolsonaro? Foi diferente das anteriores?
MA
A construção foi muito linda! A gente costuma dizer na organização que a Marcha das Margaridas é singular e única, porque ela acontece em contextos e cenários diferentes. Desde a primeira Marcha, em 2000, todas aconteceram em contextos que demandaram articulações muito particulares. A Marcha de 2019, por exemplo, falamos que foi de muita resistência e medo. Diferente deste ano, conforme o nosso lema diz, Margaridas em marcha pela reconstrução do Brasil e pelo bem-viver. Então foi um processo muito lindo de formação na base, porque nós temos essa estratégia como prioridade.
“Nosso objetivo não era só trazer mais de 100 mil mulheres para Brasília, mas também fazer com que nenhuma mulher chegasse em Brasília sem saber o propósito pelo qual estávamos ali.”
Então é muito simbólico pra nós estar aqui depois de muitos anos de retrocesso, de um governo negacionista, que voltou para o mapa da fome. Estar aqui em Brasília, com essa esperança, do verbo esperançar, como diria Paulo Freire, significa para nós a retomada das políticas públicas, das conquistas sociais, dos espaços institucionais, que ao longo desse caminhar havíamos perdido.
IB
Sobre essa questão do simbólico, você poderia compartilhar com a gente sobre a importância da memória da Margarida Alves para a construção da marcha?
MA
Margarida Alves foi uma grande liderança sindical, primeira mulher presidenta de um sindicato de trabalhadores rurais, lá em Alagoa Grande, na Paraíba. Foi brutalmente assassinada no dia 12 de agosto de 1983 pelo simples fato de ser mulher e por lutar pelo direito ao salário mínimo, aposentadoria e salário maternidade. Margarida foi morta porque lutava pelo direito da classe trabalhadora. Mas a gente sempre diz: tiraram a vida de Margarida Alves, mas esqueceram que ela era semente. Hoje, essa semente se multiplicou e se espalhou não só pelo Brasil, mas pelo mundo todo.
A luta dessa mulher fez com que nós continuássemos marchando. Marchamos por saúde, educação, terra, pelo fim da violência contra as mulheres, pela igualdade, pelo direito de viver. Lutamos pelo comum, pela natureza, pelos direitos previdenciários, pelo direito à participação política das mulheres, por nossa autonomia econômica, trabalho e renda. Lutamos pelo fortalecimento da agricultura familiar. Enfim, nossas lutas ainda são as mesmas de Margarida e é por isso que nós continuamos marchando. Como ela mesma dizia, “prefiro morrer na luta do que morrer de fome” e nós seguiremos esse raciocínio, essa linha de Margarida Alves, porque ela nos faz avançar.
IB
E como você vê a imagem de Margarida Alves para a construção do feminismo?
MA
Novamente, vivemos em um país que voltou para o mapa da fome e que isso tem um impacto mais drástico na vida de nós mulheres. Quando a situação econômica aperta, somos nós mulheres que deixamos de comer para alimentar nossos filhos. São as mulheres negras, indígenas, quilombolas, as lésbicas e as mulheres que habitam as periferias que sofrem primeiro com o processo de crise que estamos vivendo. Econômica, ambiental.
E é por isso que continuamos marchando, inspiradas pela luta de Margarida Alves. Cada vez que apresentamos uma pauta e avançamos, a gente quer mais. Por isso, nós queremos retomar um ciclo de crescimento em relação a todas essas conquistas que nos foram retiradas. E é como sempre dizemos, “mulher tem que estar onde ela quiser”. Seja nos movimentos sociais, sindicatos, mas também nos partidos. Nós queremos ocupar esses espaços. Nós queremos decidir muitas coisas que têm a ver com a nossa vida. Que mudam as nossas vidas. Precisamos ser respeitadas com toda nossa diversidade. Então essa é a nossa luta, para que possamos viver. É pela nossa vida.
IB
É muito poderoso você falar que é uma luta pela vida. Como o conceito de bem-viver está incluído nessa questão, já que é um termo que compõe o mote da marcha deste ano?
MA
Quando nós margaridas apontamos o bem-viver como um projeto que queremos para o Brasil, é num sentido de reconstrução. O bem-viver é reafirmar a possibilidade de uma relação de não exploração com a natureza, de usufruir do direito de viver em nossas terras, territórios, de mudar os modos de produção e consumo. Propomos novas formas de produção de alimentos, de fortalecer a soberania, a segurança alimentar e nutricional. Queremos participar plenamente da política e dos espaços de decisão.
“Nossas lutas ainda são as mesmas de Margarida e é por isso que nós continuamos marchando. Como ela mesma dizia, prefiro morrer na luta do que morrer de fome.”
Bem-viver é lutar pela limitação da concentração de riquezas e de terras. Queremos viver uma vida sem desigualdade, pobreza, fome, racismo e violência. Em que as mulheres do campo, da floresta e das águas tenham autonomia sobre seus corpos, seus territórios e, por fim, possam cultivar relações em que o cuidado e os afetos sejam resguardados por todas e por todos.
IB
Durante as discussões nas oficinas, ficou evidente que algumas pautas representam demandas históricas das mulheres do campo enquanto outras trazem problemas mais atuais. Você poderia falar um pouco sobre o processo coletivo de elaboração dessas pautas?
MA
São 13 grandes eixos importantes. Mas posso citar aqui, por exemplo, um eixo histórico que trata da questão do combate a violência contra as mulheres. Uma vida livre de todas as formas de violência, sem racismo e sexismo. Outro é sobre autonomia econômica, trabalho e renda. Porque se você tem autonomia, trabalho e renda, você torna as mulheres mais livres, inclusive das violências. Por exemplo, muitas das nossas trabalhadoras rurais não têm dinheiro nem para comprar um absorvente. São dependentes de tudo e de todos.
Algo que trazemos de novo, é o eixo da inclusão digital e acesso à internet, o eixo da comunicação. As mulheres vivem nos seus mais diversos territórios sem comunicação. Isso as torna vulneráveis inclusive para denunciar que estão sofrendo violência. Nós vivemos em um país onde mais de 70% dos municípios são de pequeno porte e não têm estrutura o suficiente nem para acolher a denúncia de alguma companheira. Por isso, esses são eixos extremamente importantes para nós.
Sobre o levantamento das pautas, foram muitas caravanas e audiências públicas. Muitas reuniões em associações, em comunidades, na beira dos rios, florestas e roçados. A execução da Marcha demanda quatro anos de mobilização e articulação exatamente por isso. Além do levantamento de nossas pautas, organizamos a captação de recursos e a comunicação. Nosso objetivo não era só trazer mais de 100 mil mulheres para Brasília, mas também fazer com que nenhuma mulher chegasse em Brasília sem saber o propósito pelo qual estávamos ali. E isso reflete a grandiosidade do processo formativo, porque mesmo aquela mulher que não pôde estar ali marchando com todas nós, foi impactada pela jornada de formação e foi capaz de contribuir com a organização das pautas. Nós ouvimos todas as mulheres: do campo, das florestas e das águas. As que habitam as periferias e que são companheiras das cidades, e que se somaram na realização dessa grandiosa marcha.