Em seu discurso na abertura no último encontro do Foro de São Paulo, em junho, a presidenta do Partido dos Trabalhadores (PT), Gleisi Hoffman disse: “A integração é um passo fundamental para emancipação dos povos da América Latina” — e ela não está errada, sobretudo na era que o ex-presidente equatoriano Rafael Correa chama de “Operação Condor 2.0”, iniciada em 2009.
Na última década, iniciou-se o golpe contra o presidente hondurenho Manuel Zelaya que, em seguida, se estendeu ao Paraguai, Argentina, Bolívia, Equador e claro ao Brasil. Vimos que o império não estava contente com o melhor ciclo de mudanças sócio econômicas vividas pela América Latina após a Onda Rosa no fim dos 90 até o início dos anos 2010.
Muitas dessas mudanças aconteceram somente porque essa integração regional foi fortalecida por mecanismos como a CELAC e a UNASUL. Estávamos poderosos demais, grandes demais, avançando em todos os dados sociais e econômicos em um período em que o Norte Global amargava uma crise econômica histórica.
“Houve o crescimento desenfreado de uma extrema direita que tinha como item número 1 em sua agenda, frear a integração regional, usando como desculpa teorias conspiratórias anticomunistas.”
Como o modelo de golpes aos moldes antigos não se encaixava mais a realidade atual, surgiu a necessidade de se adaptar aos novos tempos: por essa razão, houve o crescimento desenfreado de uma extrema direita que tinha como item número 1 em sua agenda, frear a integração regional, usando como desculpa teorias conspiratórias anticomunistas.
No Brasil, esse conspiracionismo foi prontamente abraçado por figuras delirantes como o ex-chanceler Ernesto Araújo, que inclusive se vangloriava de um dos seus primeiros atos na pasta ter sido a retirada do Brasil da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). A integração latino-americana assusta, mas não por causa de um real “pânico vermelho” ou outras conspirações.
Por que a integração do Sul assusta o Norte Global
O medo que a integração latino-americana produz é porque somos um continente rico, gigantesco, com uma classe trabalhadora historicamente mobilizada e combativa, capaz de entender, desde muito antes de Eduardo Galeano falar das nossas veias abertas, todas as mazelas que nos foram impostas pelo imperialismo.
Quando Gleisi diz: “esse encontro serve para mostrar que não desistimos dos nossos ideais e nem temos de nos envergonhar por defender os direitos do povo”, ela está querendo dizer que apesar de todas as campanhas de desinformação, teorias conspiratórias, difamação e etc., que o Foro existe para um propósito muito maior do que criticar países irmãos, ou comparar experiências individuais, mas sim, para continuar uma luta que é a gênesis de todas as lutas latino-americanas: independência dos impérios.
“Quando o Foro surgiu nos ano de 1990, os países latino-americanos estavam passando por períodos de redemocratização e de uma busca por alternativa.”
O Foro de São Paulo é uma articulação de partidos latino-americanos de esquerda e progressistas que têm muitos pontos em comum, mas principalmente a ânsia pela integração continental, e isso pode parecer básico mas na realidade é mais complexo e vital do que poucas pessoas, e principalmente a mídia corporativa, dão importância – embora seja a chave do sucesso para o continente prosperar.
“Muitos tentavam fazer a revolução”
Quando chegou a vez do presidente Lula falar na abertura do encontro, ele deu um breve histórico de como se aproximou Fidel Castro no final dos anos 1980 dizendo “aventamos a possibilidade de fazermos uma reunião com toda a esquerda latino-americana, quando muitos na época lutavam em partidos muito pequenos tentando fazer a revolução”.
Lula teve a visão da importância de não apenas interconectar essas lutas mas achar uma maneira institucional de se lutar também. Quando o Foro surgiu nos ano de 1990, os países latino-americanos estavam passando por períodos de redemocratização e de uma busca por alternativa.
E por mais que o “fantasma do comunismo” ainda estivesse bem vivo na mente das pessoas, com certeza o Foro teve um papel importante em nutrir esses partidos e movimentos para que um dia eles conseguissem o reconhecimento ou até o poder em muitos dos casos.
Quando Lula defende a soberania da Venezuela, e diz que o conceito de democracia é relativo, ele ao mesmo tempo alerta para o fato de que no passado não aceitou a integração do país ao bloco quando Hugo Chávez era professor da academia militar durante o Caracaço. O presidente ainda disse que a decisão da época foi consenso entre os movimentos participantes do Foro, mas que isso obviamente mudou com a eleição de Chávez.
“A pressão diplomática que o Foro de São Paulo exerceu, ajudou que importantes resultados eleitorais de seus membros fossem respeitados e até reconhecidos.”
Porém, o posicionamento do bloco continua o mesmo, diálogo e não ingerência de assuntos internos em outros países. Em seu discurso, Lula foi claro, “a gente não pode ficar a vida inteira criticando os outros”, e obviamente ele está certo. Esse comportamento divisível só serve a aqueles que já estão cumprindo a agenda do império ou pior, que acham que cumprem. Uma esquerda democrática, é uma esquerda que não dá munição para que o inimigo ataque o vizinho com sanções ou tentativas de golpe.
Quando Lula disse em entrevista à Rádio Gaúcha que “vão ter eleições esse ano na Venezuela (…). Quem quiser derrotar o Maduro nas próximas eleições, derrote e assuma o poder. Nós vamos lá fiscalizar. Se não tiver uma eleição honesta, a gente fala”, ele não somente defende o país irmão, mas também de maneira velada crítica à mídia corporativa que tão rapidamente caí nas narrativas tendenciosas de organizações como a OEA, que não faz muito tempo esteve abertamente envolvida no golpe de 2019 na Bolívia.
E o imperialismo?
Apesar de todo o trabalho que o Foro de São Paulo faz, conectando países e movimentos de todo o continente, não podemos esquecer o importante aspecto combativo do coletivo. A pressão diplomática que o Foro de São Paulo exerceu, ajudou que importantes resultados eleitorais de seus membros fossem respeitados e até reconhecidos.
Mais recentemente, podemos citar as eleições de Honduras com o apoio à Xiomara Castro, ou até mesmo as eleições peruanas, que apesar do trágico fim do governo do Pedro Castillo — ele não teria nem chegado ao poder, se o bloco não tivesse trabalhado com outros mecanismos internacionalistas para garantir sua posse.
Um dos aspectos mais interessantes é que o Foro de São Paulo tem como um dos seus propósitos “avançar com propostas de unidade de ação consensuais na luta anti-imperialista e popular”, e não faz isso somente em países que são infiltrados pelo imperialismo, mas atacam diretamente os interesses dos Estados Unidos.
Ao denunciar a dominação colonial dos Estados Unidos sobre Porto Rico, o Foro condena o governo norte-americano “por todos os seus atos criminosos contra o povo de Porto Rico e compromete todas as organizações que o compõem com o apoio necessário ao povo irmão de Porto Rico em sua luta pela independência”.
“O Foro de São Paulo está aí para intercâmbio de ideias e de união de forças progressistas, mas principalmente para alertar ao povo latino-americano sobre as ameaças do imperialismo.”
Poucos países latino-americanos fizeram essa condenação tão importante para essa situação pavorosa que vivem os boricuas, e nem podem: afinal de contas, quem pode, abertamente, apontar os crimes contra humanidade que os Estados Unidos cometem e, em seguida, não sofrer represálias por isso (sanções, bloqueios, golpes de estado e etc…)?
É uma situação delicada e perigosa do ponto de vista diplomático, mas através do Foro de São Paulo isso e muito mais pode ser feito. Falando ainda de Puerto Rico, o bloco tem como membros quatro partidos do país que têm em comum o desejo de liberdade e independência.
O Foro de São Paulo está aí para intercâmbio de ideias e de união de forças progressistas, mas principalmente para alertar ao povo latino-americano que o imperialismo infelizmente não é somente algo que está nos livros de história, mas sim sendo enfiado goela abaixo como alternativa viável pelas páginas dos principais jornais do continente.
Sobre os autores
é uma jornalista independente e comentarista política, anti-imperialista. Nascida no Brasil mas radicada na Escócia.