Adaptado de King and the Other America: The Poor People’s Campaign and the Quest for Economic Equality.
O fato que Martin Luther King Jr “se recusou a repudiar o marxismo completamente” agora está bem estabelecido, com historiadores apontando sua profunda preocupação com a desigualdade estrutural econômica. King não hesitou em expressar sua opinião dentro de seu círculo mais próximo. Ao discordar do centrismo do líder dos direitos civis Andrew Young, ele supostamente disse: “Você é um capitalista e eu não sou.” Segundo o biógrafo de King, David Garrow, ao conversar com amigos na década de 1960, o pregador admitiu que “economicamente falando, considerava a si mesmo o que ele chamava de marxista, em grande parte porque acreditava com crescente força que a sociedade americana precisava de uma redistribuição radical da riqueza e do poder econômico para alcançar pelo menos uma forma rudimentar de justiça social”.
Ele havia alimentado essas ideias por muito tempo, formulando desde cedo sua crítica ao capitalismo e às desigualdades de riqueza. O Reverendo J. Pius Barbour, mentor e amigo dos Kings, lembrou que quando Martin era um jovem seminarista, ele insinuava suas inclinações socialistas, dizendo que “Marx havia analisado corretamente o lado econômico do capitalismo” e que “o sistema capitalista era baseado na exploração e preconceito, na pobreza”. Em uma carta que escreveu para sua futura esposa, Coretta, em 1952, King confessou que se inclinava mais para o socialismo do que para o capitalismo.
Que King evitou usar a palavra “socialista” publicamente até seus últimos dias foi provavelmente menos uma expressão de sua relutância genuína do que uma medida profilática para evitar o estigma e a perseguição governamental sofridos por dezenas de ativistas radicais negros. De maneira reveladora, escritores e ativistas radicais negros convocados para depor perante “juntas de lealdade” eram questionados: “Você acha que uma filosofia franca de igualdade racial é um índice de comunismo?”
Vozes negras que permaneceram contundentes foram atormentadas. W. E. B. Du Bois foi o exemplo mais notório. Ele terminou sua vida no Gana, sem autorização para voltar ao seu país natal. No centésimo aniversário do nascimento de Du Bois, em fevereiro de 1968, King expressaria desânimo durante um tributo a Du Bois no Carnegie Hall:
Não podemos falar do Dr. Du Bois sem reconhecer que ele foi um radical durante toda a sua vida. Algumas pessoas gostariam de ignorar o fato de que ele foi comunista em seus últimos anos. Vale a pena notar que Abraham Lincoln acolheu calorosamente o apoio de Karl Marx durante a Guerra Civil e correspondia-se livremente com ele… É hora de parar de silenciar o fato de que o Dr. Du Bois foi um gênio e escolheu ser comunista. Nosso irracional e obsessivo anticomunismo nos levou a muitos atoleiros para ser retido como se fosse um modo de pensamento científico.
MLK e o marxismo
Martin Luther King estava convencido de que a cidadania significativa implicava acesso igual a bens sociais, culturais e educacionais que permitissem às pessoas desenvolver seu potencial humano e, portanto, deveriam ter garantido o acesso, como um direito social básico, à educação, saúde, moradia, segurança de renda, treinamento profissional e mais.
Mas, como cristão, ele não pôde deixar de ter grandes ressalvas sobre os princípios marxistas. Ele rejeitou o materialismo do marxismo, e enquanto Du Bois era admirador da revolução bolchevique e passou a elogiar a URSS, King a condenou. No entanto, baseando-se no legado de radicais negros, ele fundiu sua fé com uma visão radical de igualdade que complicava e reformulava o discurso anti-comunista baseado na religião predominante.
Em uma carta inicial para Coretta, ele escreveu: “Imagino que você já saiba que sou muito mais socialista em minha teoria econômica do que capitalista.”
Ele certamente se destacou no ambiente da classe média negra em que cresceu. O pai de King relembrou conversas tensas com seu filho, relacionadas à crítica do jovem ao livre mercado e à solidez do sistema capitalista. “Papai King” discordou dessa dissidência, lamentando que, politicamente, seu filho “parecia estar se afastando das bases do capitalismo e da democracia ocidental que eu considerava muito fortemente. … Houve algumas trocas ásperas; talvez eu tenha elevado a voz algumas vezes.”
Muito cedo, King Jr começou a especular que o capitalismo desenfreado da América estava errado. As devastações econômicas da Grande Depressão pouparam sua família, mas atingiram sua consciência. Em seu primeiro livro, Pilgrimage to Nonviolence, King recordou precisamente quando “viu a injustiça econômica em primeira mão e percebeu que o branco pobre era explorado tanto quanto o negro.” Ele rapidamente chegou à conclusão de que o “gêmeo inseparável da injustiça racial era a injustiça econômica” e que ambos eram contingentes à ordem capitalista vigente. Em uma carta para Coretta, ele escreveu:
Imagino que você já saiba que sou muito mais socialista em minha teoria econômica do que capitalista. E ainda assim não sou tão contrário ao capitalismo que deixei de ver seus méritos relativos. Começou com um motivo nobre e elevado, bloquear os monopólios comerciais dos nobres, mas, como a maioria dos sistemas humanos, sucumbiu à própria coisa contra a qual se revoltava. Então, hoje o capitalismo já não é útil. Ele trouxe um sistema que tira necessidades das massas para dar luxos às classes. … Nosso sistema econômico está passando por uma mudança radical, e certamente essa mudança é necessária. Eu certamente saudaria o dia em que haverá uma nacionalização da indústria. Vamos continuar a esperar, trabalhar e rezar para que, no futuro, vivamos para ver um mundo sem guerra, uma melhor distribuição de riqueza e uma fraternidade que transcenda raça ou cor. Este é o evangelho que pregarei ao mundo.
King nunca deixaria de conectar sua fé cristã à justiça econômica e à chamada por formas mais robustas de democracia. A teologia do Evangelho Social validava e fundamentava sua crença de que o bem-estar social das pessoas, visando a uma comunidade amada e inclusiva, era um imperativo democrático. Dois de seus primeiros mentores, Benjamin Mays e Howard Thurman, afro-americanos adeptos do evangelho social que defendiam um socialismo cristão democrático, também o conscientizaram sobre a natureza global da opressão e exploração, enraizada no imperialismo como expressão internacional do capitalismo.
Enquanto estava no Seminário Teológico Crozer, King leu o Manifesto Comunista e O Capital. Informado e bem lido, King buscou navegar nas contradições e limitações do comunismo enquanto apontava as falhas do capitalismo. Refletindo sobre sua descoberta do marxismo, ele concluiu:
Em resumo, eu li Marx como li todos os pensadores históricos influentes – a partir de um ponto de vista dialético, combinando um sim parcial e um não parcial. Na medida em que Marx propôs um materialismo metafísico, um relativismo ético e um totalitarismo sufocante, eu respondi com um não inequívoco; mas na medida em que ele apontou as fraquezas do capitalismo tradicional, contribuiu para o crescimento de uma consciência definida nas massas e desafiou a consciência social das igrejas cristãs, eu respondi com um sim definido.
Se ele detestava a “depreciação da liberdade individual” e o ateísmo advogado pelos países comunistas – afirmando em um sermão de 1962 que “nenhum cristão pode ser comunista” de jeito nenhum – ele contrastava esses defeitos com os males do supostamente sistema oposto. Enquanto a maioria dos liberais da Guerra Fria articulava sua condenação aos regimes comunistas de maneiras que tornavam o sistema econômico e político americano um modelo irrefutável, King se recusou a sucumbir a dicotomias simplistas.
Ele corajosamente deu crédito ao comunismo por certas verdades, observando que “por mais errado que seja o comunismo, devemos admitir que ele surgiu como um protesto contra as dificuldades dos mais desfavorecidos” e continuou a alertar que “o capitalismo pode levar a um materialismo prático tão pernicioso quanto o materialismo teórico ensinado pelo comunismo”.
Ele também permaneceu enfático de que o dogma e os regimes comunistas negavam a dignidade dos homens, transformando-os em “meios” em vez de “fins”. Mas também expressou suas preocupações sobre a ganância dos países capitalistas e o descaso pelos pobres. Falando à equipe da Conferência de Liderança Cristã do Sul (SCLC, na sigla original) em 1966, ele reiterou suas dialéticas:
Eu sempre olho para Marx com um sim e um não. E havia algumas coisas que Karl Marx fez que foram muito boas. Algumas coisas muito boas. Se você o ler, verá que esse homem tinha uma grande paixão pela justiça social… [Mas] Karl Marx se perdeu, primeiro porque não ficou com aquele Jesus que ele tinha lido; mas em segundo lugar porque ele nem sequer ficou com Hegel.
Como sempre, King passou a falar sobre Jesus como sua principal inspiração:
Agora é aqui que deixo o irmão Marx e sigo em direção ao Reino [da Irmandade]… Eu estou simplesmente dizendo que Deus nunca pretendia que alguns de seus filhos vivessem em riqueza superflua desmedida, enquanto outros vivem em pobreza abjeta e entorpecedora.
King e a tradição do socialismo democrático negro
Se o estado precisava ser combatido quando falhava em proteger seus cidadãos mais oprimidos ou em fazer valer a democracia, King acreditava que também deveria ser incumbido do poder de neutralizar os efeitos nefastos do livre mercado e do capitalismo desenfreado. Os socialistas democráticos e os sindicalistas igualitários eram, portanto, aliados naturais, com King se unindo ao líder sindical A. Philip Randolph e ao militante dos direitos civis Bayard Rustin nesse credo.
Rustin, ex-membro do Partido Comunista, conciliou seu pacifismo e seu igualitarismo radical na criação do Congresso para a Igualdade Racial (CORE). Enviado a Montgomery em 1955 para ajudar King a organizar uma ação em massa não violenta, Rustin permaneceu um conselheiro próximo e desempenhou um papel significativo na Campanha dos Pobres (Poor People’s Campaign). Ele foi o defensor mais notável do socialismo democrático no círculo íntimo de King.
Rustin teorizou que um estado social democrático forte poderia atender às necessidades dos cidadãos mais desfavorecidos, renunciando às noções individualistas de propriedade e lucro. Em 1956, ele explicou que, porque “a massa dos negros são trabalhadores e fazendeiros” cujos interesses estão “fundamentalmente aliados a outros trabalhadores e fazendeiros”, eles deveriam se unir para formar uma coalizão progressista. Negros, para Rustin, assim como para Du Bois e mais tarde para King, eram essenciais, pois sua “agitacao… por empregos inevitavelmente estimularia os trabalhadores brancos a aumentar a militância”.
Rustin trabalhou em estreita colaboração com Randolph para conectar a luta pela libertação negra com o trabalho, pois “a liberdade não pode ser sustentada no meio da insegurança e exploração econômica”. Embora não fosse o único esquerdista entre os companheiros de King durante sua vida, Rustin foi certamente o embaixador mais coerente das teorias trabalhistas e socialistas seculares para o SCLC. Ele ajudou King a compreender a necessidade de priorizar questões econômicas.
Em 1966, o SCLC se aliou ao Conselho Coordenador de Organizações Comunitárias para lançar uma campanha para acabar com as favelas em Chicago e proporcionar moradias decentes aos residentes negros. Em janeiro de 1966, King decidiu levar seu movimento para o norte e concordou em liderar a luta em Chicago.
“Rustin foi o defensor mais notável do socialismo democrático no círculo íntimo de King.“
Ele se mudou para um apartamento precário no gueto de Lawnsdale com Coretta e seus filhos para dramatizar a pobreza urbana e a subjugação. Depois de vários meses vivendo com os habitantes do gueto e participando sem sucesso de marchas de protesto por moradia justa em bairros totalmente brancos, ele escreveu seu último livro, Where Do We Go from Here (1967), em grande parte fruto de sua experiência nos guetos de Chicago.
Em dezembro de 1966, King foi convidado pelo Senado, que havia organizado audiências sobre as recentes revoltas urbanas. A ênfase de King na justiça econômica levou o senador Abraham Rubicoff a se perguntar se o movimento pelos direitos civis havia “entrado em uma fase diferente”. King respondeu afirmativamente, mas evitou a suposição implícita de que as desigualdades raciais agora estavam subsumidas sob questões de classe, como se as duas não estivessem fundamentalmente entrelaçadas.
Ele também instruiu os senadores sobre a opressão comum sofrida por brancos e negros pobres, desempregados ou subempregados, que “se aglomeram nas grandes cidades”. Descrevendo a situação das crianças negras que vivem nos guetos, ele desvendou a continuidade da privação sistemática:
Já na infância, suas vidas são esmagadas mental, emocional e fisicamente, e então a sociedade desenvolve o mito da inferioridade para dar credibilidade aos seus padrões de exploração ao longo da vida, que só podem ser descritos como nosso sistema de escravidão no século XX.
King mais tarde denunciou os ricos e poderosos que tinham interesse concentrado na pobreza:
Você não pode falar sobre resolver o problema econômico do negro sem falar em bilhões de dólares. Você não pode falar sobre acabar com as favelas sem dizer primeiro que a exploração motivada pelo lucro deve acabar nas favelas. Você está realmente mexendo com coisas perigosas porque está mexendo com as pessoas importantes. Você está mexendo com capitães da indústria.
King, que havia participado de workshops na Highlander Folk School no Tennessee, relacionou-se com a tradição esquerdista de organização sindical interracial. Em 1957, expressou seu senso de solidariedade e destino com o trabalho, dizendo aos participantes da Highlander que “as forças que são anti-Negro são, em grande parte, anti-trabalho”. Falando em uma reunião de chefes de equipe do sindicato Teamsters em 1967, lembrou à sua audiência que “negros não são os únicos pobres na nação. Há quase o dobro de brancos pobres do que negros, e, portanto, a luta contra a pobreza não está envolvida apenas com cor ou discriminação racial, mas com justiça econômica elementar”.
“Você não pode falar sobre resolver o problema econômico do negro sem falar em bilhões de dólares.”
Embora o alcance do papel de organizações de esquerda com inclinações marxistas no movimento de libertação negra tenha sido debatido, o fato permanece que, por um período significativo, uma visão social democrática uniu seus membros e ativistas pelos direitos civis. Desde o sindicalista E. D. Nixon até Rustin, pessoas com raízes no meio esquerdista do período pré-guerra impregnaram o movimento pós-1955 com demandas por justiça substantiva, incluindo cidadania plena para negros, fortes direitos trabalhistas, políticas de pleno emprego e tributação progressiva que poderiam financiar um estado de bem-estar radical. Para eles, o governo precisava corrigir a desigualdade passada e erradicar de forma eficaz a pobreza e os mecanismos que a perpetuavam.
A última campanha de King
Seguindo os passos de Du Bois, King desafiou o liberalismo racial, “a ideia de que todos os americanos, independentemente da raça, devem ser politicamente iguais, mas que o estado não pode e, de fato, não deve impor igualdade racial interferindo nas relações sociais ou econômicas existentes”.
A Campanha dos Pobres que King imaginava era mais do que um movimento baseado em classe aberto a liberais e reformistas de boa vontade. Em 1961, falando no Conselho de Trabalho Afro-Americano, King já proclamava: “Chame isso de democracia, ou chame de socialismo democrático, mas deve haver uma melhor distribuição de riqueza dentro deste país para todas as crianças de Deus”.
O apelo de King remontava às chamadas do final do século XIX por uma reconstrução plenamente realizada e uma democracia industrial justa. No crepúsculo de sua vida, ele imaginava uma campanha como um movimento revolucionário de massas não violento. A Campanha dos Pobres eventualmente veria a luz do dia em 1967, como uma tentativa de construir uma coalizão capaz de buscar a agenda igualitária que Du Bois e dezenas de igualitaristas radicais negros tinham em mente.
Sobre os autores
Sylvie Laurent
leciona estudos americanos na Sciences Po, em Paris, e é autora de King and the Other America: The Poor People’s Campaign and the Quest for Economic Equality.