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Guerilheiros do Exército Revolucionário de Bougainville, alguns ainda vestindo camuflagem, observam a assinatura do acordo de cessar-fogo que encerrou sua campanha. (Torsten Blackwood / AFP via Getty Images)

A luta pela independência de Bougainville venceu todos os desafios enfrentados

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Tradução
Priscilla Marques

Bougainville é uma ilha no Pacífico com uma população de apenas 300 mil habitantes, mas seu movimento pela independência desafiou com sucesso uma das empresas de mineração mais poderosas e predatórias do mundo. Agora, seu povo votou em massa a favor de formar seu próprio Estado.

A ilha do Pacífico de Bougainville fica entre a Austrália e  Papua Nova Guiné (PNG). Aproximadamente do mesmo tamanho de Porto Rico, Chipre ou Córsega, tem uma população de cerca de 300.000 habitantes. Antropologicamente, a ilha é um lugar incrivelmente complexo, com uma variedade de práticas culturais pré-coloniais, uma composição ancestral variada e um profundo entrelaçamento com o cristianismo.

A fé foi trazida por missionários alemães, cujo governo detinha formalmente domínio sobre a ilha até a Austrália anexá-la após a Segunda Guerra Mundial. Após a Segunda Guerra Mundial, Bougainville entrou em um estado de limbo legal como Território Tutelado das Nações Unidas. A Austrália ainda mantinha a responsabilidade administrativa pela ilha e pelos arquipélagos vizinhos.

Em 1975, Canberra concedeu independência à Papua Nova Guiné (PNG), que também estava sob controle estatal australiano, e incluiu algumas ilhas vizinhas no novo país, como a grande e supostamente “inexplorada”, pelo ocidente, Bougainville. O povo de Bougainville lançou uma campanha política pela independência, mas a comunidade internacional a ignorou.

Após a tomada de posse, eles continuaram com sua luta, o que significava enfrentar não apenas o governo da PNG, mas também seus apoiadores australianos e uma das empresas de mineração mais poderosas do mundo. Contra probabilidades aparentemente avassaladoras, o movimento revolucionário de Bougainville lutou para chegar à mesa de negociações e assegurou um referendo em 2019, que resultou em amplo apoio à independência.

Uma bomba em explosão

As batalhas da guerra em Bougainville entre os Aliados e o Japão trouxeram a ilha e suas riquezas potenciais à consciência da Austrália e de seus amigos próximos na indústria de mineração. Em 1972, a Rio Tinto, que agora é o segundo maior conglomerado de mineração do mundo, criou uma subsidiária chamada Bougainville Copper Limited (BCL) para iniciar a mineração na lucrativa selva de Bougainville após chegar a um acordo com a PNG e Austrália.

“O movimento revolucionário de Bougainville lutou para chegar à mesa de negociações e assegurou um referendo em 2019 que resultou em apoio esmagador à independência.”

A mina estava localizada na região central de Panguna. Logo, se tornaria o ponto focal da atividade revolucionária na região. Ao longo da década de 1980, as contradições sociais e políticas cresceram em Bougainville, à medida que a mina se expandia. A mina reorientou completamente a vida tradicional em torno de uma cidade voltada para as ações da empresa, com oficiais estrangeiros e empresários desfrutando de autoridade suprema, respaldados pelas forças armadas da PNG, que possuíam armas e treinamento australianos.

A modernidade capitalista havia chegado às margens da ilha. O intenso trabalho árduo realizado pelo povo de Bougainville na mina lembrava a Roma antiga ou a Bolívia colonial sob domínio espanhol. Imagens aéreas da mina em seu auge mostram como ela destruiu a floresta exuberante, começando pelo centro da ilha e se espalhando, como uma bomba em explosão.

Trabalhadores e outros moradores começaram a fazer discursos e articular grupos de estudo secretos sobre as condições da mina, parcialmente inspirados por sonhos de soberania nacional. Esses grupos começaram a crescer em popularidade à medida que as condições na mina levaram os residentes a entender sua posição subjugada e a necessidade de libertação do pesadelo em que se encontravam presos.

O povo de Bougainville e seu ambiente eram dispensáveis aos olhos da BCL e de seus aliados. Em seus dezessete anos de operação, a mina se tornou um dos locais de cobre mais ricos do mundo. Era a vitrine dos negócios da Rio Tinto e uma fonte extremamente importante de receita para o governo da PNG. Os lucros da mina, em alguns momentos, representavam até 45% da receita total de exportação da PNG.

De sabotagem à revolução

O dramático declínio nos padrões de vida na ilha após a introdução da mina levou as pessoas para condições precárias de subsistência, ameaçando seus sistemas alimentares tradicionais. A degradação ambiental em massa dos suprimentos de água e alimentos ameaçava sua civilização e os impulsionaram para ação.

O dramático declínio nos padrões de vida após a introdução da mina levou as pessoas para condições precárias de subsistência, o que ameaçava seus sistemas alimentares tradicionais.

Em 1989, diversos atos de sabotagem abalaram a mina de Panguna. Vigas de suporte foram estrategicamente explodidas, as entradas da mina foram fechadas diversas vezes, ferramentas e armas foram roubadas. Isso foi um choque para o governo da PNG, seus apoiadores australianos e da Rio Tinto, viram uma das minas mais lucrativas do mundo ser engenhosamente fechada. A empresa e seus parceiros nacionais sofreram um enorme constrangimento internacional. A BCL e as autoridades da PNG logo implementaram uma política de atirar para matar contra possíveis contestadores, com respostas violentas à população em geral.

O líder deste grupo de sabotadores era um ex-minerador chamado Francis Ona, que se tornou o líder da guerra de guerrilha contra a PNG e a Austrália. Ona deixou de trabalhar na mina em 1988, para trabalhar em tempo integral organizando a resistência contra ela. Ele viajou pela ilha reunindo apoio entre mulheres que viram suas condições despencarem à medida que as estruturas sociais tradicionais como a agricultura de subsistência foram destruídas, assim como homens jovens que haviam visto seus amigos morrerem na mina.

As tentativas de negociação de Ona por melhores condições entre os trabalhadores e a Rio Tinto foram mal sucedidas, e o processo se radicalizou. Um gerente da BCL deu a seguinte justificativa para a contestação deles:

Não gostávamos de ser pressionados a fazer as coisas à maneira melanesiana porque a maneira melanesiana é um pouco… você pressiona alguém, e a pressão resulta em uma recompensa, e então há uma atitude, eu queria ter pedido mais, como consigo mais. Você então reaplica a pressão, talvez um pouco mais forte da próxima vez, e então você obtém uma recompensa maior, e eventualmente você está perguntando “como posso parar com isso, estão esgotando a empresa.”

Os atos de sabotagem se transformaram em uma guerra de guerrilha e a mina foi completamente fechada. Ona fez a seguinte declaração em uma transmissão de rádio:

“Somos geralmente pessoas amantes da paz e obedientes à lei. No momento, temos sido culpados pela ilegalidade na província. Fizemos o movimento após uma dolorosa luta nos últimos vinte anos de domínio da PNG. Estamos lutando para salvar nossa terra da exploração estrangeira.”

As forças de segurança da PNG foram enviadas para a ilha para derrubar Ona e seu Exército Revolucionário de Bougainville (BRA). Eles lançaram ataques a partir das regiões de praia costeiras para o interior, tentando encontrar e matar os combatentes do BRA.

Ona não tinha acesso às armas de fogo modernas nos estágios iniciais da guerra e usava o conhecimento da floresta para empregar armadilhas venenosas, deslizamentos de rochas e emboscadas. Por vários meses, foi assim que o BRA defendeu o interior de Bougainville.

A revolução do coco

Com o tempo, Ona conseguiu mais armas e munições das ondas sucessivas de forças da PNG derrotadas e usou essa sequência de vitórias para estabelecer legitimidade entre os moradores da ilha. Ele estabeleceu infraestrutura de treinamento militar e criou vilarejos revolucionários onde a cultura tradicional e a agricultura de subsistência foram retomadas.

O governo da Papua Nova Guiné impôs um embargo a Bougainville em 1990 e lançou a fase mais sangrenta da guerra.

O líder do BRA aproveitou o fervor cristão da ilha para introduzir uma teoria de teologia da libertação em sua propaganda. Ona não era apenas um general guerrilheiro, mas também um pregador, músico e agricultor. Um artigo acadêmico o apresentava como um Moisés conduzindo seu povo à terra prometida, uma Bougainville soberana e independente.

Este histórico de sucesso fez o governo da PNG e seus aliados repensarem sua estratégia. Eles impuseram um embargo a Bougainville em 1990 e lançaram a fase mais sangrenta da guerra. Isso acabou se tornando o maior conflito na Oceania desde a Segunda Guerra Mundial.

O BRA era uma força revolucionária que teve que resistir aos ataques das forças especiais da PNG treinadas pelos australianos, bem como ao envolvimento direto das forças australianas, que lançavam granadas em vilarejos de helicóptero. Essas táticas provocaram a condenação do papel de Canberra por ativistas anti-guerra internacionais e locais.

Diante desse ataque, o BRA e o povo de Bougainville sofreram pesadas perdas, que foram agravadas pela falta de suprimentos médicos devido ao embargo. Em torno de vinte mil pessoas morreram no conflito durante dez anos em Bougainville: entre mil e duas mil dessas foram mortas em combate, com os civis representando o restante. A ilha tinha uma população de cerca de apenas 200.000 pessoas na época.

Um documentário chamado A Revolução do Coco explora a experiência cotidiana do processo, da guerra e da revolução na ilha. A câmera segue Ona enquanto ele treina jovens, lidera serviços religiosos e cultiva plantações. Imagens de crianças pequenas batendo em tubos de PVC para fazer música para o culto foram contrastadas com imagens de pilotos australianos lançando bombas em vilarejos. O filme também explorou a tecnologia caseira construída para burlar o embargo, assim como os novos sistemas alimentares pioneiros pelas mulheres da ilha.

Aprofundando

A moral entre as forças da PNG piorou à medida que a realidade de lutar contra uma força guerrilheira, profundamente enraizada na população, começou a se estabelecer. Isso levou os funcionários do governo a usar táticas ainda mais violentas na esperança de garantir uma vitória rápida. As autoridades da PNG implementaram uma estratégia de queima de aldeias, tortura e assassinatos indiscriminados de jovens suspeitos de pertencer ao BRA. No entanto, a força rebelde continuou a resistir.

É importante não romantizar completamente o BRA, cujo uso de crianças como soldados recebeu condenação internacional. No entanto, eles eram a única oposição eficaz a um mundo de exploração, enraizado no inferno das minas sufocantes. Muitos dos soldados só conheciam a violência da mina e viam a contra-violência como a única maneira legítima de acabar com ela.

Com a pressão aumentando, o governo do líder da PNG, Julius Chan, cavou um buraco profundo para si mesmo. Esta foi a maior operação militar na história do país. Não apenas o PIB estava em jogo – eles também tinham a Austrália e o Rio Tinto respirando em seus pescoços.

Após várias negociações de paz fracassadas entre o BRA e a PNG, Chan ficou impaciente. Seu governo decidiu contratar a empresa de rede de mercenários Sandline International em 1997, com o respaldo da Austrália. A Sandline, por sua vez, contratou o grupo de mercenários sul-africanos Executive Outcomes para lutar contra o BRA.

A Executive Outcomes era uma das maiores forças de mercenárias do mundo. Era composta por veteranos altamente experientes das forças especiais dos regimes de colonos brancos, na África do Sul e na Rodésia. O modelo de negócios da empresa era baseado na defesa de interesses de recursos em todo o Sul Global.

Apenas um ano antes, o governo indonésio a havia contratado para lutar contra as forças guerrilheiras em Papua Ocidental, que haviam ocupado algumas das minas de ouro e cobre do Rio Tinto. A Executive Outcomes teve sucesso em sua missão, usando métodos horríveis de repressão. Grupos de direitos humanos ainda estão lidando com a violência em Papua Ocidental.

Quando a história da Executive Outcomes veio à tona, pode ter parecido que a esperança estava desaparecendo para o povo de Bougainville. No entanto, eles receberam ajuda de um aliado improvável. Em 1997, um jornalista da PNG publicou uma matéria com os detalhes do acordo secreto que Chan havia feito com a Executive Outcomes, para o uso de quarenta e quatro mercenários por US$ 36 milhões. A empresa até considerava comprar uma participação na BCL.

O exército da PNG ficou profundamente insultado com a notícia, especialmente o comandante líder da operação de Bougainville, Jerry Singirok, que tinha acreditado que a guerra era impossível de ser vencida. Singirok e seus aliados nos altos escalões do exército realizaram uma operação noturna não autorizada para prender todos os mercenários da Executive Outcomes.

Chan não tinha ideia do que estava acontecendo, até acordar na manhã seguinte com grandes protestos do lado de fora de sua casa, depois que Singirok informou o público pelo rádio. Os mercenários foram libertados e enviados para casa sob aplausos de aprovação de uma grande multidão de cidadãos da PNG.

Rumo à independência

Estes foram alguns dos maiores protestos públicos na história da PNG que tiveram o apoio de uma parte determinada do comando militar. Chan foi forçado a renunciar, e novas eleições foram realizadas em 1997. O novo governo encerrou a guerra em Bougainville por meio de um acordo de paz. Houve um cessar-fogo, após as negociações para o status legal de Bougainville independente.

As pessoas em Bougainville celebraram a paz, mas também refletiram sobre a dor e o sofrimento que testemunharam. A Revolução Me’ekamui deixou muitas lições no caminho para a independência. Problemas fiscais e analfabetismo financeiro permitiram que várias empresas de recursos enganassem a jovem nação autônoma. O governo atual está tentando trazer de volta a mineração de uma forma mais segura, mas as operações relacionadas à mineração ainda provocam incidentes violentos. A Rio Tinto, inclusive, expressou seu desejo de restabelecer laços com Bougainville em várias ocasiões.

Em 2019, o povo de Bougainville votou oficialmente pela independência em um referendo, com quase 98% votando a favor. O processo legal para a independência ainda está em andamento. Um ex-comandante do BRA, Ishmael Toroama, foi recentemente eleito presidente de Bougainville.

Seja qual for o futuro de Bougainville, a Revolução Me’ekamui foi uma conquista espetacular. Em um momento em que os sonhos revolucionários estavam desaparecendo em outros lugares, o povo de Bougainville permaneceu firme contra o poder da Rio Tinto, Austrália e PNG, e está no caminho para garantir a soberania de seu próprio país.

Sobre os autores

Matt Schierz

é um escritor freelancer, atualmente residindo em Hanover, Ontário, Canadá.

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Published in Análise, Guerra e imperialismo, História and Pacífico

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