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(Ilustração de Dnego Justino)

A cor da revolução

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Ao insistir em enquadrar a questão racial como “identitarismo”, parte da esquerda impede o debate sobre os vínculos entre raça e classe na estruturação do capitalismo dependente. Desfazer esse nó é essencial para retomar o debate sobro os rumos da necessária e imprescindível revolução brasileira.

O texto a seguir foi publicado na 7ª edição impressa da Jacobin Brasil sobre “Raça e classe”. Adquira a sua edição avulsa ou assine um de nossos planos!


Em 2014, enquanto era estudante de graduação, conheci o debate sobre teoria do reconhecimento, ao encontrar um livro sobre o tema numa das bibliotecas da UFPE. Em resumo, o argumento é o de que, no século passado, as lutas populares e movimentos sociais tinham como foco uma pauta “materialista”, ligadas ao mundo do trabalho e sindicalismo, focadas em melhores salários, condições de trabalho e igualdade material. Já no século atual, a ênfase estaria nas lutas por reconhecimento, protagonizadas por grupos sociais historicamente marginalizados e discriminados. Negros e negras, imigrantes, mulheres, povos originários e LGBTs seriam os protagonistas destas lutas. Foi assim que tomei conhecimento da obra de Nancy Fraser e Axel Honneth. Como num passe de mágica, na eleição de 2018, sem nenhuma relação com as reflexões da “teoria do reconhecimento” dos dois autores e de outros do campo, todo mundo falava em identitarismo e “pautas identitárias”. Podemos visitar as entrevistas dos candidatos à eleição em 2018 e veremos que era quase impossível uma sabatina sem a seguinte pergunta: “candidato, o que pensa sobre as chamadas pautas identitárias?”

Identitarismo, pautas identitárias e termos correlatos passaram a dominar o debate público. Para muitos, o identitarismo foi responsável pela vitória do fascista Jair Bolsonaro e pela avalanche conservadora de 2018. Surgiu um novo senso comum generalizado. Não é preciso mais detalhar o que você quer dizer ao usar esses termos. Cada pessoa preenche com o conteúdo que desejar.

A reflexão a seguir debate aspectos do senso comum generalizado sobre o “identitarismo” para chegar na relação raça e classe no Brasil. Contudo, cabe desde já uma advertência de ordem teórica: em relação às opressões, focaremos apenas na questão racial, ainda que vários argumentos utilizados tenham validade para pensar também na luta contra o patriarcado, o machismo e a LGBTfobia.

A festa do colonialismo radical

Nos debates sobre o identitarismo, é comum vermos a afirmação de que se trata de uma ideologia importada dos Estados Unidos ou da Europa Ocidental. Alguns, indo além, dizem que se trata de um plano do imperialismo estadunidense para fomentar “guerras culturais” e dominar com maior facilidade um país. Se você já fez tal afirmação, questiono: já parou para pensar como foi que nasceu o “identitarismo”? Em que contexto? Como passou a circular nas ciências humanas e nas esquerdas? Quais os principais aparelhos responsáveis por sua difusão?

Se existisse um real interesse em responder essas perguntas, livros como “Armadilhas da identidade: raça e classe nos dias de hoje”, de Asad Haider, ou “Camarada”, de Jodi Dean, teriam feito grande sucesso, na medida em que são duas obras que debatem o surgimento e consolidação da “política de identidade”. Mas não é o caso. Os dois livros tiveram pouco impacto nas esquerdas brasileiras. Também não faltam boas publicações em português sobre a atuação de organizações apontadas como as principais difusoras do identitarismo. Particularmente sobre a Fundação Ford, temos “A questão negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria (1950-1970)”, de Wanderson Chaves, e “Guerra Fria e Brasil: para a agenda de Integração do negro na sociedade de classes”, de Elizabeth Cancelli, Gustavo Mesquita e Wanderson Chaves. No entanto, novamente são obras que não repercutem no campo progressista.

O espanto vai além. Os que defendem que o identitarismo é apenas uma importação estadunidense — ou uma tática de “guerra cultural” do imperialismo –, poderiam explicar se existe ou não uma questão racial no Brasil. Nesse ponto, surgem dois caminhos básicos. Tomar a posição do ex-diretor de jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel, que lançou um livro chamado “Não somos racistas”, reutilizando uma clássica posição teórica de negar que existe racismo no Brasil, dado sermos um país “miscigenado” e coisas do tipo. Ou afirmar que sim, existe uma questão racial a ser enfrentada.

Se a resposta para a questão é o segundo caminho, outras perguntas se impõem: qual é o debate brasileiro sobre a questão racial? Temos um pensamento nacional sobre o tema? É impressionante como tanto nos “guerreiros contra o identitarismo” ou nos que “apoiam as pautas identitárias”, não temos um movimento de recuperação e valorização do debate brasileiro sobre a questão racial e dos nossos clássicos.

É inegável que vivemos um momento de maior visibilidade e procura por nomes como Luiz Gama, Lélia Gonzalez ou Clóvis Moura. Mas esses são movimentos minoritários, tentativas de resistência. A luta contra o “identitarismo” não provocou um movimento em massa dos trabalhistas para recuperar as reflexões de Alberto Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Darcy Ribeiro e documentos como A carta de Lisboa. Também não provocou, por parte dos comunistas, um esforço organizado de valorizar a produção de Edison Carneiro, dos comunistas baianos articulados em torno da Revista Seiva (1938-1943), de Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes e do já citado Clóvis Moura ou das experiências práticas dos comunistas atuando junto aos povos de terreiro, escolas de samba e quilombos urbanos.

Também não vemos explodir publicações e debates sobre a história do movimento negro no Brasil, a exemplo de iniciativas como a Frente Negra Brasileira, o Teatro Experimental do Negro, o Movimento Negro Unificado e o papel do movimento negro na Constituinte de 1987–88. Como uma realidade invertida, a denúncia do colonialismo cultural em torno das “pautas identitárias” se completa com um reforço do colonialismo cultural: ao invés de condicionar um movimento intelectual e político para (re)estabeleceras particularidades das relações raciais no Brasil, recuperando os clássicos e avançando na pesquisa e organização popular, temos uma simples negação da realidade brasileira, apelando para uma luta de classes abstrata e incolor.

Com um olhar mais atento, vamos perceber que o que há é uma volta disfarçada do mito da democracia racial. No Brasil, tal mito tem muitas facetas e intérpretes. Um dos mais famosos e qualificados foi Gilberto Freyre.

Reduzir a questão racial à “pauta de costumes” ou ao “identitarismo”, bem como apelar para um debate econômico que estaria separado da questão racial, são formas de dizer que o racismo não é um complexo estrutural determinante da vida brasileira.

O sociólogo de Pernambuco não negava a existência do racismo no país, mas sim rejeitava o seu caráter de antagonismo estruturante da sociedade brasileira. Para ele, a questão racial não seria um traço basilar da nossa formação econômico-social. Em forma popular, é como se Freyre dissesse: racismo no Brasil? Existe sim, mas isso não marca profundamente a vida brasileira, não é um dos grandes fundamentos da nação.

Reduzir a questão racial à “pauta de costumes” ou ao “identitarismo”, bem como apelar para um debate econômico que estaria separado da questão racial, são formas de dizer que o racismo não é um complexo estrutural determinante da vida brasileira. Neste raciocínio, a violência racial seria aspecto lateral nos conflitos políticos e na luta de classes. Uma forma de repetir a lógica de Gilberto Freyre
de afirmar que o racismo existe, mas não é decisivo.

Do pelego sindical ao liberalismo no movimento negro

Mas, afinal, o que é identitarismo? É a defesa de uma compreensão das opressões centrada na valorização de identidades negativadas e marginalizadas, atuando predominantemente na esfera cultural, simbólica e institucional. Significa uma demanda por maior “igualdade de oportunidades” na dinâmica de competitividade do capitalismo. Ou seja, uma compreensão identitária da luta
contra o racismo entende como tarefa central desnegativar a identidade negra, destacar o histórico de exclusão e oportunidades negadas e, a partir disso, operando como central a noção de representatividade, atuar para conseguir mais possibilidades de inserção da identidade negra
nos diversos postos da divisão social do trabalho, sem intenção de ruptura com as estruturas do capitalismo.

A tendência à fragmentação, ao autorreferenciamento, à reificação a-histórica do Eu/identidade e ao corporativismo é consequência necessária de uma organização coletiva com horizonte burguês, que visa combater alguns efeitos de exclusão/barragem de oportunidades produzidas pelo racismo. Ou seja, o identitarismo existe. É uma compreensão liberal, adaptada ao capital, do que é o racismo e as formas de “combatê-lo”.

Neste sentido, temos o exemplo do sindicalismo liberal. Trata-se de um movimento corporativo dos trabalhadores, centrado numa identidade fechada, reificada, fragmentada e que busca melhores condições de existência no capitalismo, sem questionar ou enfrentar a dinâmica do sistema. Na Inglaterra do século xix, Marx e Engels tiveram que lutar muito para o movimento operário inglês não apoiar a colonização da Irlanda e as políticas xenofóbicas contra os migrantes irlandeses na indústria britânica.

Nos Estados Unidos, os comunistas tiveram uma dura luta para combater a segregação racial que existia no mundo sindical e no Partido Socialista, buscando unificar a classe trabalhadora e enfrentar o corporativismo da solidariedade racial branca policlassista. Também podemos citar casos de movimentos de libertação nacional, como a luta anticolonial polonesa, também no século xix, que tinha setores centrados numa emancipação nacional burguesa, sem reforma agrária, sem questionar a servidão, sem tocar no poder dos barões e da nobreza, criando uma identidade nacional também corporativista (aristocrática), a-histórica e totalmente adaptada ao sistema interestatal dominante.

É até engraçado em um país com fortíssima tradição de sindicalismo liberal, pelego e corporativista, haver estranhamento em relação à possibilidade de movimentos políticos dos oprimidos assumirem um programa liberal, objetivando negociar melhores possibilidades de inserção na ordem burguesa. Claro que existem diferenças importantes entre o movimento negro liberal e o sindicalismo liberal. O primeiro apela para a identidade como ponto central da sua gramática política e da sua razão de ser, sem uma ligação direta com o mundo do trabalho. Mas ter identidade não é especificidade de negros e negras, muito menos apelar para identidade como elemento organizador da ação política.
Todos têm identidade!

Assim como não existe um lugar não-ideológico e não-político, também inexiste um lugar de não-identidade. Todos os seres humanos estão inseridos em relações sociais e estruturas objetivas que balizam os padrões de reconhecimento intersubjetivo: as práticas sociais, as formas de perceber-se e relacionar-se com o mundo. Ao nascer, ainda na maternidade, eu não sabia que era negro. Recém-nascido, não podia fazer ideia de que existia uma divisão social do mundo baseada na racialização dos indivíduos e dos grupos humanos. A despeito disso, porém, a cor da minha pele ao sair do ventre da minha mãe já me constituía enquanto sujeito diante dos outros, já me situava nas hierarquias sociais e subjetivas construídas historicamente.

Caso fosse abandonado, minhas chances de adoção seriam menores do que as chances de uma criança branca. A possibilidade de descaso médico também cresce por ter a pele escura. Ainda na maternidade, era conhecido como “o índio”, por causa da minha pele negra (mas nem tanto) e meu cabelo liso. Antes mesmo de ser capaz de compreender um simples “a” do mundo, já estava inserido numa identidade. A cor da roupa, as formas de brincar, os apelidos, os tipos de presente, a forma de sentar, o carinho de pessoas próximas, etc. – tudo é definido, antes do sujeito ter consciência, a partir de uma rede complexa de múltiplos determinantes que constituem as identidades como estruturas objetivas de organização do ser social. Claro, assim como no caso da ideologia, há quem acredite estar situado em um lugar de não-identidade. Quem pensa isso? Aqueles inseridos nos padrões de identidade socialmente dominantes: o “universal”, o “natural”, aqueles padrões que, na verdade, são construídos historicamente como critério de “normalidade”.

Ser homem branco, hétero e sudestino é, no caso brasileiro, ser “universal”. O padrão que serve de referência para considerar os casos desviantes. Uma das principais características da ideologia burguesa é apresentar um interesse particular como se fosse de todos e todas, constituindo-se como uma universalidade falsa. Tal “universalidade” se constitui enquanto mistificação negativa do Outro, que estabelece os desviantes. Para ser branco não basta ter a cor de pele identificada como branca. Ser branco é uma posição social historicamente construída e mantida, não um dado biológico. Os irlandeses, um povo que ninguém duvida ter a cor de pele branca, até o começo do século xx eram tratados pela classe dominante inglesa como um povo racialmente inferior ao inglês.

Toda formação econômico-social tem os seus padrões de identidade universal. Como outro necessário do universal, temos os desviantes, as “minorias”, os “identitários”. Apelar para representatividade negra em um filme, por exemplo, é lido como identitário. Ver um filme com elenco todo branco não é considerado exemplo de “identitarismo branco”. Isso explica o ponto central do dilema brasileiro.

A existência de um sindicalismo liberal, como no exemplo que citamos acima, não significa pôr em questão os padrões de competitividade dentro da esquerda brasileira, isto é, as disputas em torno de quem vai ser considerado intelectual, líder, dirigente partidário, sindicalista de renome, quadro eleitoral. O crescimento de um questionamento do padrão de identidade das lideranças e dirigentes da esquerda brasileira é um fato e está relacionado predominantemente com as correntes liberais do movimento negro, mas não só.

O capitalismo é um regime concorrencial, como dizemos. As esquerdas não estão imunes a essa dinâmica societária. Existe concorrência para ver quem vai ser lido como o intelectual, o líder, o dirigente. Em 1990, na hora de definir os candidatos à vereança de uma capital, como Recife, o fato de não ter como candidatos mulheres negras não era um problema ou uma questão. O padrão, inclusive, era essa ausência não ser “percebida”.

Hoje, em 2023, o partido socialista, comunista ou progressista que lançar candidaturas para a eleição de 2024 e não tiver mulheres, negros e negras e em menor medida LGBTs, será criticado e pode perder votos. Essa mudança de padrões de identidade provocou um aumento da competição intraesquerdas. Em 1990, um homem branco e hétero, disputando uma vaga de dirigente partidário ou candidato, tinha vantagens simbólicas e subjetivas contra, por exemplo, uma mulher negra. Hoje, contudo, na mesma disputa, em um espaço de esquerda, o fato de ser mulher negra vai ser usado como ativo político na disputa contra o mesmo homem branco e hétero.

Esse aumento da competitividade nas esquerdas é um dos grandes fatores de atraso no debate. Para muitos, a reação histérica, irracional e desqualificada contra o “identitarismo” é apenas uma forma de defender os seus privilégios simbólicos, que hoje são questionados. Não se trata de combater o liberalismo no movimento negro, mas apenas a demanda por representatividade, como se ela e liberalismo fossem a mesma coisa ou necessariamente indissociáveis.

Nesse momento, acredito ser essa a razão central para predominar uma reação desqualificada ao “identitarismo”. Ela impede o fortalecimento do debate marxista sobre a questão racial e colonial, bem como a recuperação e o avanço na produção brasileira sobre o tema. É perfeitamente possível criticar duramente o liberalismo no movimento negro e ao mesmo tempo defender uma demanda por maior representatividade negra nas esquerdas brasileiras. Mas fazê-lo significa para muitos abrir mão de ativos simbólicos de competitividade no âmbito das esquerdas. O circuito se fecha. Avançamos pouco. O liberalismo nos espreme de um lado. E o fascismo do outro!

Antigamente quilombos, hoje periferia

Para desfazer esse nó, que impede o debate estratégico das determinações das relações de raça e classe no país, discuto quatro teses fundamentais para pensar a formação econômico-social brasileira.

A invasão colonial portuguesa estabeleceu uma empresa de exploração fundamentada no trabalho escravizado. Durante mais de 300 anos, a escravidão foi o complexo institucional dominante da vida no território que formará o Brasil. A luta de classes no país foi polarizada entre senhores e escravizados, num mundo do trabalho formado e estruturado a partir do signo da raça. Na obra Introdução à Revolução Brasileira, Nelson Werneck Sodré assim descreve essa relação: “A circunstância, entretanto, é muito importante pelas suas consequências: tudo o que está por baixo, socialmente, é negro; tudo o que está por cima é branco. O rótulo de cor começa a funcionar, com os seus poderosos e generalizados efeitos. Nesse sentido, devemos considerar bem como, muito depois de ficar libertado da escravidão, o negro permaneceu submetido à violência dos preconceitos, rotulado que estava. E ainda é indispensável considerar, nessa apreciação, um aspecto que tem sido propositadamente omitido: o negro continua a fornecer, puro ou mestiçado, o grosso da massa de trabalho, em nosso país. Se isolarmos uma consideração da outra, correremos o risco de cuidar erradamente o problema: relações de raça jamais podem isolar-se de relações de classe” (1967, p. 147).

Até 1850, ser trabalhador no Brasil significava majoritariamente ser negro e escravo. Com o fim do tráfico negreiro e o processo de estímulo em massa à imigração europeia, tivemos o aumento do contingente de trabalhadores “brancos”. Em “O negro: de bom escravo a mau cidadão?”, Clóvis Moura registra como no começo do século XX, nas indústrias de São Paulo, polo mais dinâmico do capitalismo brasileiro, o número de operários brancos era maior do que o de negros e “mulatos”. Como sabemos, a Abolição no Brasil não teve o caráter de uma revolução democrática que garantisse ao povo negro terra, educação, empregos e direitos. Ao contrário, com o fim do escravismo, é estabelecido um novo regime de dominação racial-classista. Nele, a população negra foi majoritariamente privada das oportunidades de emprego na indústria e nos serviços públicos, bem como de todas as possibilidades abertas com a complexificação da divisão social engendrada pelo desenvolvimento do capitalismo dependente.

Mas isso não significa, contudo, que a população negra tenha perdido a função econômica no mundo do trabalho. A forma da Abolição e da transição ao capitalismo competitivo relegou o povo negro à condição de superpopulação relativa ou exército industrial de reserva. E, como sabemos desde Marx em “O Capital”, o capitalismo precisa de uma superpopulação relativa para pressionar para baixo o nível dos salários e condições de trabalho, potencializando a taxa de lucro dos capitais. Aliado a isso, o valor da força de trabalho é dado, também, por um componente histórico-moral. No caso da população negra, o racismo atua como componente desumanizador e rebaixador das condições histórico-morais de reprodução da parcela negra da classe trabalhadora, operando, desde uma perspectiva de totalidade, para deprimir todo valor histórico-moral do povo trabalhador do Brasil.

Novamente, em “O negro: de bom escravo a mau cidadão?”, Clóvis Moura sintetiza esse processo. “Os negros que habitavam as favelas, os mocambos, os cortiços, os alagados, os pardieiros são mantidos como exército industrial de reserva de mão de obra não qualificada para forçar, no plano econômico, a segurança de níveis mínimos de salários aos trabalhadores já engajados no processo de trabalho” (p. 117, 2021). Por outro lado, o negro capacitado técnica e culturalmente, capaz de competir com o trabalhador branco, “é apresentado como perigoso porque” não aceita e fica no seu lugar. Assim, o “preconceito de cor” é utilizado pelas classes dominantes para “manter o equilíbrio da mão de obra, garantindo-lhe alta taxa de mais-valia”, sendo utilizado também para se defender de “reivindicações parciais ou globais dos trabalhadores que elas julgarem mais radicais” (2021, p. 117-118). Neste sentido, Clóvis aponta como, no pós-Abolição, formou-se uma barragem “facilitada pela marca étnica”, que identificava o trabalhador negro com “elementos vindos da massa escrava”:

“No caso específico do Brasil, o negro, vindo de um passado escravista ainda bem próximo, sofre todas as barragens, diretas ou indiretas, que uma sociedade como a nossa exige que sejam criadas a fim de manter inalteradas as atuais relações de produção. Isto para que ele, conforme já afirmamos, exerça o papel de exército industrial de reserva a fim de que os trabalhadores engajados no processo de trabalho não se sintam entusiasmados para fazerem reivindicações perigosas” (Moura, 2021, p. 117-118).

É bastante repetido pela militância que, entre um negro e um branco com a mesma formação e na mesma função, o branco ganha mais; que um homem branco, com a mesma formação de uma mulher negra, pode ganhar mais que o dobro do seu salário; que há predominância de negros e negras em empregos precários, com baixa escolaridade, alta rotatividade e pequenos salários; ou que há predominância de negros e negras entre as vítimas de acidentes de trabalho (inclusive vítimas fatais). Todos esses dados, hoje bem sistematizados pelo IBGE, mostram que, nas condições gerais da exploração capitalista no Brasil, a parcela negra do povo trabalhador tem particularidades no seu processo de exploração.

Nesse sentido, anunciamos duas teses para pensar a história brasileira. É impossível debater a formação da classe trabalhadora do país sem falar da escravidão e da nossa forma de abolição. E não é praticável, também, debater as condições de acumulação no capitalismo dependente brasileiro sem entender o papel das formas particulares de exploração condicionadas pela racialização de parte da classe trabalhadora.

Se a questão racial é incontornável no debate sobre formação da classe trabalhadora e suas condições de exploração, ela também é fundamental para entender a burguesia brasileira. Aqui chegamos na terceira tese. No Brasil, a transição para o capitalismo não foi marcada por uma ruptura popular de baixo para cima com o passado escravista-colonial. Ao contrário, tivemos um lento processo de aburguesamento de latifundiários, comerciantes de pessoas escravizadas e grandes proprietários.

Também não tivemos uma ruptura ou antagonismo irreconciliável entre a grande propriedade rural e a indústria. Antes o contrário. A tendência foi o mesmo ramo familiar operar diversas formas de capital, indo desde a grande propriedade latifundiária até bancos, varejo e indústrias. A ausência de uma ruptura popular com a dinâmica escravista-colonial e a forma da Abolição brasileira – isto é, o tipo de inserção do negro no capitalismo dependente – condicionaram todo o ethos político, ideológico e institucional da classe dominante.

Embora parta das determinações da crítica da economia política do capitalismo periférico (dependência, transferência de valor, superexploração da força de trabalho etc.), o debate sobre o caráter contrarrevolucionário e contrarreformista da classe dominante brasileira não pode desconsiderar o universo sociológico e histórico-cultural de formação e desenvolvimento dessa burguesia. Darcy Ribeiro registra com precisão a temática em sua obra “O Povo Brasileiro”, afirmando que a empresa escravista é fundada na apropriação de seres humanos “através da violência mais crua e da coerção permanente, exercida através dos castigos mais atrozes” (2015, p. 294).

Constituída pela cotidianização de torturas, mutilações, estupros e mortes, essa violência deixou marcas indeléveis. Para Darcy Ribeiro, “a mais terrível de nossas heranças é a de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista”. Essa alma brasileira “é incandescente, ainda hoje, em tantas autoridades brasileiras predispostas a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos” (2015, p. 91). Darcy debate como o nosso país pode ser pensado como uma longa continuidade de opressão, violência e exploração racista, dado que “desde a chegada do primeiro negro, até hoje, eles estão na luta para fugir da inferioridade que lhes foi imposta originalmente, e que é mantida através de toda a sorte de opressões” (2015, p. 131).

Darcy conclui seu raciocínio lembrando que “as atuais classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos dos antigos senhores de escravos”, guardam, diante do povo negro, “a mesma atitude de desprezo vil”. Como a Abolição não expressou uma revolução democrática radical, o que temos é a burguesia brasileira com a mesma atitude ideológica, política e cultural dos seus antepassados senhores de escravos. Assim, a transformação das condições socioeconômicas – do regime escravista para o capitalismo dependente – não alterou o ethos senhorial da classe dominante. Nas palavras do autor, “a nação, comandada por gente dessa mentalidade, nunca fez nada pela massa negra que a construíra. Negou-lhe a posse de qualquer pedaço de terra para viver e cultivar, de escolas que pudesse educar seus filhos, e de qualquer ordem de assistência” (2015, p. 167).

Se a questão racial é indispensável para entender a configuração das duas classes fundamentais, o povo trabalhador e a burguesia, ela não fica fora da compreensão de como se estrutura o Estado e o poder político no Brasil. As relações jurídicas e formas de Estado não podem ser pensadas em si mesmas, pois estão enraizadas nas relações materiais de produção e reprodução da vida. Nesse sentido, o debate sobre Estado, poder político e padrão de dominação política no Brasil que prescinde de explicar as formas particulares de dominação sobre proletariado negro e de controle da superpopulação relativa nas condições brasileiras está necessariamente equivocado.

A transformação das condições socioeconômicas – do regime escravista para o capitalismo dependente – não alterou o ethos senhorial da classe dominante. É comum na militância de esquerda citarem como a violência política, as injustiças no sistema judiciário, o encarceramento em massa e a militarização da vida atingem prioritariamente a população negra. Esses dados, vistos de forma fragmentada, podem indicar uma mera falha do Estado de direito e da democracia condicionada pelo racismo. Na realidade, indicam a determinação da questão negra na formação do Estado burguês no Brasil e sua forma de exercício do poder político.

Em “História da polícia no Brasil”, Almir Felitte ilustra o que estamos debatendo à luz da estruturação do sistema penal no país. “Teorias racistas transformaram diversos sistemas que compunham a sociedade brasileira, sobretudo os penais e policiais. Exemplo claro, além da criminalização da capoeira, é a inclusão dos atos de vadiagem no Código Penal de 1890 como contravenções penais. Na Velha República, contravenções incriminam perigos meramente abstratos, sem a necessidade de se observar qualquer violação real de direito (…) Em 1888, o então Ministro da Justiça, Ferreira Viana, apresentou projeto de lei para combater a ociosidade como resposta à Abolição” (2023, p. 65).

O autor aponta que, mesmo durante a escravidão, “a preocupação com os libertos já estava presente nas discussões políticas do país, sempre contrapondo o ócio ao trabalho escravo e correlacionando libertos a vadios”. Essas dinâmicas também intervirão na conformação da sociedade no pós-Abolição. “As mudanças nos sistemas e práticas penais e policiais na Velha República deixam clara a busca por mecanismos de controle social sobre as camadas mais pobres e trabalhadoras, permanentemente em situação de suspensão de direitos” (2023, p. 66).

Assim, as instituições de controle social enquadram a transição para o capitalismo competitivo. Nas palavras de Felitte: “Por um lado, com a Abolição não sendo acompanhada de políticas de inclusão social à população negra, o Estado brasileiro buscou maneiras de punir a falta de ofício através de fracas justificativas de perigo abstrato. Por outro, legislações que buscavam criminalizar a organização política das classes trabalhadoras, negras ou brancas, também demonstram esta mesma preocupação oligárquica de controle mesmo sobre aqueles que possuíam ocupação. Junto ao sistema penal, é no contexto de tais preocupações que a reformulação das instituições policiais à época, sobretudo as forças militarizadas, está inserida. Elas terão papel fundamental no exercício de manutenção da ordem através do controle das chamadas “classes perigosas”, que transformaram a dinâmica social do país nos anos subsequentes com suas demandas e seus conflitos com as camadas dominantes” (2023, p. 66-67).

No mesmo sentido, em “Brasil: as raízes do protesto negro”, Clóvis Moura debate o papel da política durante a ditadura empresarial-militar: “Atualmente, existem dois papéis básicos para a polícia. O de manter a situação atual, por meio da força, e de pressionar constantemente o exército de reserva de mão de obra barata necessário, por meio da exigência de comprovação e emprego de cada indivíduo, pois o elemento que não comprovar estará sujeito a sanções criadas pelo estado (…) sobre o negro a polícia exerce uma função extraordinária, a de quebrá-lo psicológica e organizativamente. Para a polícia, todo negro é um criminoso em potencial. Ela o persegue em qualquer lugar e a todo momento. Isso faz com que o indivíduo negro sinta vergonha de sua raça e se isole de seu grupo” (2023, p. 306).

Citamos o exemplo da polícia, mas poderíamos debater, com as devidas particularidades, o papel fundamental da questão negra na estrutura de todo aparelho estatal e nas práticas de exercício do poder político, determinados pelo seu caráter burguês, dependente e antinegro.

A retomada na raça da revolução brasileira

Se o marxismo brasileiro quiser se popularizar e ter inserção de massas, ele deve aumentar substancialmente sua inserção no povo negro, a maioria da classe trabalhadora nacional. Tornar o marxismo a alma viva do proletariado brasileiro exige um firme e decidido combate ao liberalismo e a todas as formas de adaptação à ordem burguesa. Esse combate nunca será efetivo enquanto não reconhecermos o caráter majoritariamente branco, pequeno-burguês e academicista das nossas lideranças, intelectuais, dirigentes e quadros eleitorais.

A construção de um marxismo brasileiro, latino-americanizado e africanizado é essencial para avançarmos na construção de uma teoria da Revolução Brasileira que seja farol de emancipação para a classe trabalhadora em toda sua diversidade. Não só um avanço teórico, como prático e organizativo. Nas periferias e zonas rurais de todo o Brasil, o grosso do nosso povo não está organizado e armado com teoria revolucionária para a tomada do poder. Entre outras razões, continuaremos assim enquanto a questão racial não for encarada como elemento central da nossa práxis.

Podemos e devemos aprender com todas as contribuições vindas de outros países, inclusive dos Estados Unidos. Devemos ler Angela Davis, Robin Kelley, W. E. B. Du Bois, os Panteras Negras e afins. Vamos ler tudo, mas com a prioridade de assimilar o útil para pensar o Brasil. Também temos que nos apropriar do nosso acúmulo. A luta contra o liberalismo no movimento negro e em toda classe trabalhadora não pode esperar. É o momento – e desculpem o bordão – de falar que a Revolução Brasileira será negra ou nunca passará de um sonho. E não precisamos de sonhos. Já vivemos um pesadelo. Precisamos de urgência histórica para transformar o Brasil!

Sobre os autores

é mestre em serviço social pela UFPE, organiza livros pela editora Autonomia Literária, mantém um canal no YouTube e participa do podcast Revolushow.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, DESTAQUE, Linha de frente, REVISTA, Revista 7, Revoluções and Teoria

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