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(Fabrica desativada grafitada / Reprodução)

Don L, Ogi e o rap num país desindustrializado

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Nesta entrevista, feita exclusivamente para o livro Caixinhas de música, os dois rappers soltam o verbo sobre as metrópoles brasileiras, suas periferias, o papel do Nordeste e a influências das lutas políticas na cena do rap hoje.

UMA ENTREVISTA DE

Renata Rocha, Pedro Alexandre Sanches, Fabio Maleronka

A entrevista abaixo — com os icônicos Don L e Ogi e conduzida por Fabio Maleronka, Renata Rocha e Pedro Alexandre Sanches em maio deste ano — é parte do livro Caixinhas de música: conversas sobre música brasileira, tempo e cidades (Autonomia Literária, 2024), que será lançado no próximo dia 2 de dezembro às 18h. A obra foi organizada também por Maleronka e Renata. O lançamento será no tradicional reduto da samba paulistana Ó do Borogondó, que também é cenário e personagem na obra.

Caixinhas de música é uma coleção de entrevistas com artistas nacionais de diversas origens, gêneros musicais e gerações em conversas descontraídas com: Alaíde Costa, Hermeto Pascoal, Ney Matogrosso, Elifas Andreato, Eduardo Gudin, Michael Sullivan, Paulo Massadas, Arrigo Barnabé, Lô Borges, Armandinho, Tetê Espíndola, Arnaldo Antunes, Fernanda Abreu, Ivan Vilela, Marisa Orth, Taciana Barros, Maestro Spok, Karina Buhr, Roberto Barreto do BaianaSystem, Céu, Rodrigo Ogi, Don L, Felipe Cordeiro, Filipe Catto, Aíla, Juliana Strassacapa e Sebastián Piracés-Ugarte da banda Francisco, el Hombre, Alice Caymmi e Ayrton Montarroyos.


Realidade inabalável do Brasil dos anos 2020, o rap se espalhou a partir de São Paulo e tem crescido continuamente, do início com os Racionais MC’S até os dias atuais, a ponto de se tornar uma vertente legítima e pujante não da cena paulistana, mas da mpb como um todo. Como a realidade é invariavelmente mais complexa, a origem paulista do hip-hop nacional é relativizada pelo rapper Don L, que se consolidou a partir de Fortaleza, no Ceará, sob a concordância do colega paulistano Rodrigo Ogi, no encontro que resultou na conversa a seguir, no centro histórico de São Paulo.

Don L nasceu em 1981, em Brasília, numa das inúmeras levas de migrações nordestinas para centros detentores do poder e do dinheiro (como também foi o caso de muitas das famílias dos rappers paulistanos), mas cresceu e se tornou artista em Fortaleza, capital do estado de origem de seus pais. Em 2005, formou o grupo cearense Costa a Costa, que surgiu disposto a responder ao espírito derrotista que Don L, Nego Gallo e os demais integrantes viam no hip-hop que se irradiava a partir de São Paulo. Em carreira solo, vivendo na capital paulista a partir da década de 2010, o ex-vendedor de cds piratas em Fortaleza passou a lançar seus próprios cds, na festejada trilogia Roteiro para Aïnouz. Inspirada pelo cineasta conterrâneo Karim Aïnouz, a trilogia começou em 2017, com o volume 3, seguiu com o volume 2 em 2021 e espera pela conclusão com o volume 1. Como artista de frente, Don L segue perseguindo uma trilha original de rap, mais conectada com o Nordeste que com o Sudeste, com a América Latina e o Caribe que com a América do Norte. “A gente sempre teve essa parada de olhar menos para os Estados Unidos, para o que é mainstream nos Estados Unidos, e pensar no reggaeton, na música do Caribe”, explica.

Rodrigo Ogi, nascido em 1980 e criado no Jardim Celeste, periferia oeste da capital paulista, mistura suas origens familiares pernambucanas e maranhenses com um avô materno vindo do Japão, formando um retrato preciso da diversidade que construiu e constrói São Paulo. Foi office boy, vendedor de discos na loja do tio no centro da cidade e atendente de telemarketing, antes de se encontrar inicialmente na pichação e, por f im, na música do hip-hop. Já como rapper, integrou o grupo underground paulistano Contra Fluxo e estreou em carreira solo com o afiado álbum Crônicas da cidade cinza (2011), um pungente relatório sobre São Paulo vista a partir da margem que também abriu ouvidos de admiradores para, por exemplo, o trabalho do dramaturgo santista Plínio Marcos com mestres formados na tradição do samba rural paulista, como Geraldo Filme e Toniquinho Batuqueiro. Em seu terceiro álbum, Aleatoriamente (2023), contou com a produção do conterrâneo Kiko Dinucci, nome central da música local contemporânea, na confluência entre MPB vanguarda paulista, música eletrônica, rap etc. Se a obra do Costa a Costa de Don L foi saudada pelo antropólogo Hermano Vianna como uma atualização do clássico Sobrevivendo no inferno (1997), dos Racionais, o álbum Crônicas da cidade cinza trouxe paralelos entre a poesia de Rodrigo Ogi e os contos-reportagens do escritor paulistano João Antônio. Juntos, Ogi e Don L conversam sobre música, literatura, política, a falta de uma indústria musical brasileira e as possibilidades criativas da temida inteligência artificial no rap.


CM

Don L, como é sua relação com Fortaleza?

DL

Faz dez anos que vim para São Paulo, às vezes me perguntam se já me acostumei, se me adaptei. Mano, eu não me adaptei nem ao planeta, quanto mais a São Paulo. Nunca fui adaptado, não era adaptado quando morava em Fortaleza, tá ligado? Nasci em Brasília, mas minha família é do Nordeste, do interior do Ceará. Fazem aquele êxodo dos nordestinos para Brasília em busca de trabalho, depois voltam. Não conheci Brasília, então nem me considero brasiliense. É uma coisa de jornalista, esses dias uma pessoa desavisada colocou: “O festival vai ter gente de todo lugar, Don L, do Centro-Oeste”. A rapaziada desceu a lenha, “mano, tu nem pegou a música do cara para ouvir?”, fiquei com pena dos caras. Quem ouviu minha música sabe que não sou do Centro-Oeste. Mas é isso, nunca fui adaptado. Esse não lugar, essa falta de adequação vem de uma coisa que muita gente que é artista sente. Acho que é por isso que a gente tem esse ímpeto de ser artista, de não se adaptar ao lugar em que vive, ser um não alinhado, um estranho dentro do que é tido como padrão.

CM

Ogi nasceu paulistano e continua em São Paulo.

OG

Sou nascido e criado na região do Ipiranga. Meu filho é pequeno, acho que quando estiver um pouquinho maior vou mudar para o interior. Não aguento mais morar em São Paulo.

CM

Quem está dizendo isso é um cronista da cidade de São Paulo.

OG

Estou cansado de São Paulo. Quero morar no meio do mato, mas em um lugar que não seja tão distante. Mas entendo isso que Don L falou de não se sentir pertencente a alguma coisa. Também sinto isso desde criança. Nascido e criado aqui, conheço a cidade inteira, mas para mim não tem mais novidade, saca?

CM

Tendo sido pichador, você retrata a cidade real e imaginária, é um cara que transita pelos cantos da cidade e remete a Germano Mathias, a João Antônio, às Quebras do mundaréu de Plínio Marcos, é um olhar de um cronista que se arrisca em lugares difíceis de se alcançar.

OG

A cidade de São Paulo era muito diferente na época em que comecei a andar pelas zonas. Nos anos 1990, você ia no Capão Redondo, era realmente o que os Racionais mc’s falavam na música. A gente ia lá pichar para conhecer, para ver se é aquilo mesmo. Nos extremos do Capão Redondo, lá no fundo, a coisa continua precária, mas mais para perto da Avenida João Dias, onde tem o terminal, mudou muito, a vida prosperou, talvez depois do Lula. Em São Mateus também. A cidade mudou muito, e o rolê da pichação me deu essa base, de conhecer e entender que a periferia onde eu morava conversava com a de Guaianases, por exemplo. Era a mesma sintonia.

CM

Don L também teve essa vivência? O rap começou como música periférica, mas hoje em edia é muito complexo, não?

DL

Hoje em dia não tem mais essa coisa de colocar o rap como som da periferia, mas ele continua sendo uma música de um ponto de vista marginal da sociedade. Quando o moleque fala nome de marca, ele está querendo possuir os bens de consumo que a sociedade produz, de um ponto de vista de quem nunca teve, ou de quem foi excluído, de um ponto de vista marginal. Quando comecei no rap, a gente era, na verdade, movimento político. No Nordeste tinha muito essa parada, a gente se organizava em posses, cada bairro tinha a sua. Eu estava morando em um morro de Fortaleza que era em frente à praia. A gente tinha esse bagulho de ser uma favela em frente ao mar.

CM

Era uma favela que não era na periferia, mas no centro?

DL

Era no centro. Nego Gallo morava do outro lado da cidade, mas era isso também. Talvez por isso nosso som bateu primeiro no Rio de Janeiro e em Salvador. Em São Paulo a galera ficava meio de bico fechado para nós, porque era outro lance. São Paulo tem uma tradição de rap bem diferente do que a gente bebeu em Fortaleza, apesar de, claro, algumas influências serem comuns, tipo Racionais. Ninguém que faz rap no Brasil deixou de ser influenciado pelos Racionais.

CM

No Nordeste em reaggaeton, ao mesmo tempo que tem embolada

DL

No início, eu, que vinha desse movimento muito político, era um cara malandro, andava com a malandragem da área. Queria falar sobre isso, sobre as coisas da rua, e o movimento de rap da minha cidade era muito politizado, em um sentido meio panfletário mesmo. Era tipo “não, isso não pode”, e eu respeitava para caralho, achava que isso era o certo. E eu estava errado. Foram os caras de São Paulo lá fazer a primeira coletânea, pô, vou aproveitar e colar com eles para ser produtor. Comecei a aprender a produzir e, no que você aprende a pensar em produção no rap, você pensa em samples. Fui atrás dos discos, comecei a pesquisar disco, não quero ser igual os gringos, os paulistas nem os cariocas. Quero fazer um bagulho que tenha a ver com a nossa vivência. No Nordeste, o que é a música antiga, dos antigos? É o brega. Fui atrás de Agnaldo Timóteo, dos discos de brega antigo. No Costa a Costa a gente sampleou muito isso. Depois fomos para o carimbó do Pará, para o Pinduca. Nos inspiramos muito nisso e também na coisa mais latina. A gente sempre teve essa parada de olhar menos para os Estados Unidos, do que é mainstream nos Estados Unidos, e pensar no reggaeton, na música do Caribe.

CM

E ao mesmo tempo olhar menos para o Sudeste do Brasil também?

DL

E menos para o Sudeste do Brasil também.

CM

Ogi também teve que seguir a cartilha que Don L citou?

OG

Tive, porque no rap de São Paulo, se tentasse fazer alguma coisa diferente, você era cobrado. Quando comecei a fazer rap e vim com outras ideias, era requisitado na rua. Tinha que agir da mesma maneira, para eles entenderem que eu só tinha a cara de novinho, mas não era bobo. Só que sempre fui muito nerd de música. Eu não tinha internet na época, mas tinha uma tia que morava lá fora. Eu via algum clipe e telefonava para ela, pedia para mandar um cd. Depois de um mês chegava o cd. E nisso meu rap foi sendo moldado no rap nova-iorquino. A atmosfera de São Paulo conversa muito com a de Nova York, diferente do Don, que já foi buscando outras fontes. Meu rap foi moldado nisso e nas coisas que eu lia. Mas queria fazer diferente daquele rap que estava sendo feito, todo mundo tentando seguir uma cartilha meio Racionais. Causou estranhamento no começo, mas expandiu demais, hoje em dia é bem comum.

CM

Ogi, a percurssão de Cidade com nome de santo! (2011) não vem só do rap, vem?

OG

É influência da minha mãe, que ouvia muito samba, Clara Nunes e várias coisas, e de um tio meu, que tinha uma loja de discos no centro, na Rua Vitória. Eu era novo, queria trabalhar, então ficava lá varrendo a loja para ele e mexendo nos discos. Vira e mexe estava ouvindo samba, e isso me influenciou também. E música brega, que minha avó pernambucana ouvia muito. Gosto muito desse tipo de música. Foi misturando tudo e desaguou no que faço agora.

CM

No início, na época dos Racionais, parecia que o rap brasileiro era um movimento paulista.

OG

Aqui em São Paulo tem um marco que é a Estação São Bento, mas uma vez vi [o rapper brasiliense] GOG falando que na mesma época eles estavam fazendo a mesma coisa em Brasília também. Só que ninguém se comunicava. O marco é aqui, mas tinha muitas outras pessoas fazendo em outros estados, e não era documentado.

DL

O Flip, o dj do Costa a Costa, que é um cara mais velho, conta as histórias da periferia de Fortaleza, de como aprendeu com o dj Cambota, um dj de funk. Ele é de periferia mesmo, do Conjunto Ceará, um conjunto habitacional. Na década de 1960, tiraram umas favelas da região central e jogaram lá para a puta que pariu na periferia e construíram conjunto habitacional. Os caras andavam quilômetros para ir atrás de uma fitinha cassete para gravar um negócio. O rap realmente foi a música popular de São Paulo nos anos 1990 e 2000, de um jeito que o funk foi no Rio de Janeiro, que o forró foi no Ceará, que o tecnobrega virou um negócio gigante no Pará. A música popular de São Paulo era o rap, isso não aconteceu em nenhum outro lugar. Talvez quase isso em Brasília.

OG

Em Brasília era muito forte, tanto que caras como GOG e Câmbio Negro tocavam nas rádios de São Paulo.

DL

E tinha um movimento deles mesmos. Quando viajei para São Paulo em 2006 com a mixtape do Costa a Costa [Dinheiro, sexo, drogas e violência de costa a costa, 2007], obviamente o que eu conhecia eram [os selos musicais paulistas de rap] 4P, do KL Jay, e Zambia. Quando cheguei, os caras estavam começando a prever que o funk também ia ser a música popular de São Paulo e assinaram contrato com o mc Bola de Fogo [do hit funkeiro “Atoladinha”, de 2005]. Eu via aquele movimento, mas era muito estranho para mim, porque naquele tempo música popular de São Paulo era só o rap, tá ligado?

CM

Muitos rappers contam essa história de famílias que vieram do Nordeste. Os rappers paulistas geralmente são filhos de migrantes nordestinos?

DL

Ah, sim, mas isso é São Paulo. Na minha equipe tem gente de Minas Gerais, de todo lugar. E o Nordeste é um lugar de êxodo, né? Você vai encontrar nordestinos em todas as funções que imaginar, tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro. Eu estava no Rio, na Favela da Maré, a gente fez um show muito foda lá, de graça, e depois do show fomos em um pico lá que é meio Hong Kong, uns bares cheios de televisão. O cara chegou para mim e falou: “Mano, os donos de bar aqui é tudo cearense que chegou para ser garçom no Rio”. A maioria dos garçons no Rio é de pernambucano, cearense de Ipu, de Nova Russas, de uns picos do interior do Ceará. Os caras nem conhecem Fortaleza, a migração ia direto para Rio e São Paulo. Nunca conheci ninguém da periferia de São Paulo que estivesse aqui três gerações atrás. É muito raro.

CM

Em Favela venceu (2021), Don L coloca uma citação ao funk carioca Rap das armas (1995), de Mc Júnior & Mc Leonardo. o que você está puxando?

DL

O rap tem essa parada de ressignificar clássicos da música brasileira. Nesse disco, peguei duas coisas que considero clássicos do rap nacional: o “Rap das armas” e “Us mano e as mina”, do [rapper paulistano] Xis. O funk, para mim, é rap. Esses dias, uns amigos paulistas estavam meio putos porque [o rapper carioca] Filipe Ret falou em uma entrevista que tem muito respeito pela velha escola do rap nacional, de mc Sapão e Mr. Catra. Caralho, muito foda, ele reivindicou a genealogia dele.

OG

Catra fazia rap também, tá ligado?

DL

É, mano. É rap. O nome era rap, literalmente, o nome da música é “Rap das armas”, não “Funk das armas”.

CM

Como era no Ceará? tinha essas duas vertentes correndo paralelas?

DL — No Ceará tinha um funk, cheguei a ir em baile funk. Mas, na geração anterior, os bailes funk na periferia de Fortaleza eram o bagulho mais insano que você pode imaginar. A galera ia para o baile para brigar, era uma catarse de quem era de favela e de periferia. A violência era uma forma de extravasar um sentimento de ser oprimido toda hora. O baile era uma precariedade que você não imagina, da galera não ter a grana da condução para ir. Voltava de carona, quarenta pessoas penduradas em um caminhão. E era o funk, cara. Depois vi isso com os Racionais, a tradição do rap de São Paulo, toda uma linhagem.

CM

Em que ponto dessas linhagens estamos agora?

DL

Acho louco o que está acontecendo no Rio agora, de os caras virem pela linha do funk sem ser muito planejado, por um outro caminho. Os fãs de rap de São Paulo descobriram que o trap tem a ver com o funk e vieram fazer um trap-funk. E agora o funk de São Paulo é muito grande, tem uma outra galera de outro estilo. Cada um tem sua genealogia. A gente é periferia no sentido da periferia da periferia. Por isso falo no Costa a Costa que “é o gueto do gueto” [em “Do gueto pro gueto”, de 2007]. A gente era consumidor de funk e rap, não tinha estúdios. Para fazer o primeiro clipe do Costa a Costa, só conseguimos fazer num mirante no morro, um lugar para gringo e prostituição. Pegamos uns amigos que tinham um carrão e botamos umas roupas, pá, para chegar lá dizendo que ia fazer uma festa de música eletrônica. Se dissesse que era rap, irmão, não ia conseguir. Podia ter o dinheiro para alugar, mas não era simples assim. A gente tinha um público grande em Fortaleza, e as boates não queriam nosso show, porque era tido como música de marginal, de favela. Não tinha estúdios, gravadoras, ninguém para fazer um clipe. Era muito precário para nós, então a gente era mais consumidor. O que existia lá como mercado era o forró. Hoje em dia a gente dialoga mais. Eu sempre quis, desde o Costa a Costa, fazer um bagulho que não dê para dizer que é gringo. Agora cada vez mais os moleques estão fazendo isso. Trap é batida de funk, até o drill é batida de funk.

OG

Tem moleque fazendo levada de forró com batida de trap.

DL

Meteram FruitLoops [FL Studio, software de estação de trabalho de áudio digital] no forró, virou piseiro. OGI Tem um moleque, [o músico brasiliense] Grego, que faz trap e boom bap e também faz uns piseiros, tudo com essa estética meio do trap. Está vindo aí, está fazendo uns piseiros também.

CM

Rap, trap, boom bap: vocês sentem mais ligação com o trap e as vertentes mais novas ou com o rap clássico, digamos?

OG

Misturo bastante coisa na minha música. No meu disco Aleatoriamente (2023), tem elementos, como o andamento de bateria do [produtor] Kiko Dinucci, que faço meio trap. Mas aquele trap mais raiz nunca fiz. Trago elementos, bebo um pouco nessa fonte, como bebo em fonte de piseiro também. Tento misturar tudo e trazer para deixar do meu jeito.

DL

Eu acho que já fiz trap, sim. Acho que faço trap, na real.

CM

Podemos voltar ao tema das origens da vida de vocês, antes de virarem rappers?

OG

Meu avô materno, japonês, veio do Japão acho que no final dos anos 1930, e conheceu minha avó pernambucana. A família da minha avó só se casava com indicação, e na família do meu avô japonês só se casavam entre eles. Dizem que meu avô pegou minha avó e trouxe para Marília, no interior de São Paulo, e lá tiveram dez filhos. Meu avô paterno era carioca, minha avó paterna era maranhense. É essa mistura toda. Meu pai morreu muito cedo, e sou filho único. Fui criado pela minha mãe na periferia até sair do bairro onde cresci, Jardim Celeste, divisa com Campanário e Parque Bristol, em 2002 ou 2003, que foi quando comecei a voltar a fazer rap. Passei minha infância e adolescência na periferia. Hoje em dia é só prédio, mas antes era só mato e poucos prédios. Minha criação foi nisso, e já tinha vários camaradas desandados, indo para o crime, usando droga. Essa nunca foi a minha onda. Eu via de perto acontecer e queria fazer alguma coisa dali, para ser visto. Mas ali não tinha muita opção, então comecei a pichar. A sociedade não entende, mas a meu ver pichação é um grito de liberdade. Eu quero ser visto, não importa como. Que seja dentro do meu nicho, que seja o cara olhar minha marca e não saber o que está escrito, mas ele está vendo. Ou então que ele fique com raiva, mas vai ver o que eu fiz ali.

CM

Que lugares fora do registro tradicional do hip-hop você frequentava?

OG

Uma que marcou muito foi a Sala Real, perto da Matilha Cultural [no centro paulistano]. Depois teve a Galeria Olido [idem], que [o rapper paulistano] Kamau administrava, onde passou todo mundo da minha geração: Contra Fluxo, Criolo, Pentágono, que era o grupo do Rael, Rashid, Emicida, Projota, Rincon Sapiência, toda essa geração. O próprio Mano Brown cantou ali. A Olido marcou muito para mim, a gente dizia que era a nova Estação São Bento, a São Bento dessa geração que estava vindo.

DL

Minha família é do interior do Ceará, meu avô saiu da roça. Era muito êxodo, muita gente indo para fora do Ceará ou para Fortaleza, para conseguir condições de vida melhores. Tem a história que meu avô saiu para Fortaleza e conseguiu entrar no seminário, então minha mãe foi estudar também. Quando saí de casa, minha mãe era professora do Mobral [Movimento Brasileiro de Alfabetização], e meu pai já tinha se separado dela. Minha mãe é cantora que fez mpb, ciranda, um monte de coisa. Cantava no Ceará, Ângela Linhares. Fez parte do movimento Massafeira.

CM

Ela está no disco coletivo Massafeira (1980)?

DL

Não, no disco não está, mas ela participou de uma banda chamada Grupo Raízes, quando eles moraram em São Paulo. O Grupo Raízes tem um disco muito bom, Brejo das Almas (1976). Eles eram tipo banda B das gravadoras. Ela era a cantora principal do Raízes, ela e o pai da minha irmã, que é de Montes Claros, em Minas Gerais. Eu não tinha nascido ainda, eles eram casados e cantavam no Grupo Raízes, que tem muito mais a ver com Minas que com o Nordeste. Brejo das almas é um disco que você pode colocar junto com Lô Borges, Milton Nascimento, só que é mais raiz mesmo, é “raízes” real. Nessa época, eles ficavam fazendo backing vocal para Elza Soares e para a galera da gravadora. Minha mãe é muito traumatizada com o bagulho da música, porque passou fome em São Paulo, esse tipo de coisa. E eu saí de casa com 16 para 17 anos e fui trabalhar. Sou dessa família, que vem de uma situação de muita pobreza no interior do Ceará e foi estudando, se tornando mais classe média. Terminei o segundo grau, quase sem conseguir, daquele jeito. Nem assistia aula mais, fui trabalhar em pizzaria e vendendo cd pirata, que foi o jeito que mais ganhei dinheiro nessa época de trampo. A galera não tinha acesso à internet, e estava na onda do cd pirata, depois veio o dvd pirata. Eu comprava cd a R$2,50, vendia a R$5. Vendia, sei lá, R$20 ou R$30 por dia.

CM

Você vendia CD na rua?

DL

Na rua, nos bares e tal. Comprei uma vespinha. Sou dessa geração de cd pirata. Chegava em cada botequinho, pegava os cds no Beco da Poeira, tipo uma Rua 25 de Março de Fortaleza. Os becos são bem estreitos, tem um monte de box. Os boxes ficavam com roupas, você tirava a roupa e tinha um monte de cd embaixo. Eu comprava um monte de forrozão que a galera gosta, Lagosta Bronzeada, Calcinha Preta. Rodava os morros todos, as favelas, comecei a perceber que cada cara que tinha um comerciozinho, um barzinho, um boteco, ficava tocando música direto e queria ter disco. Eles me pediam os bregas antigos, comecei a pegar Agnaldo Timóteo, Waldick Soriano, Evaldo Braga. Os outros vendedores às vezes não tinham, tinham só o que era sucesso atual, aí eu arrepiava de vender.

CM

Você mesmo fazia cópias?

DL

Não, eu só vendia. Conheci um grande parceiro que virou distribuidor desse bagulho, depois até que eu já tinha saído ele era um grande traficante de cd pirata. Ele botava as músicas do Costa a Costa no meio das coletâneas, botava os clipes quando começou a ser dvd. Todo botequinho na favela tinha uma televisão rolando, e era muito louco, qualquer favela de Fortaleza começou a ter um monte de rap gringo rolando por causa dos clipes.

CM

Você vendia CD pirata de rap nacional?

DL

Vendia também. No meio tinha umas paradas que eram pop, tipo gravação ao vivo de Racionais, GOG. Como eu gostava de rap, pegava para sempre ter. Mas vendia, sim, inclusive rap evangélico, Ao Cubo, Apocalipse 17, essas paradas. Vendia muito porque os crentes queriam curtir um rap, mas tinha que ser rap de crente. Eu andava na vespinha, nunca levei tanto enquadro na vida. Mas com cd pirata ninguém ligava, a polícia me pegava com um monte de cd, foda-se. A não ser que os caras batessem no distribuidor, aí, sim. Mas os caras tinham preguiça. Nas fontes sempre teve as batidonas. Mas esse meu amigo participava de um esquema tão grande que os caras ligavam para ele: “A gente vai dar uma batida ali, não é com vocês, não”. Porque eles pagavam, né? Tinha uns guarda-roupas falsos na casa dele, dentro do guarda-roupa era um monte de computador.

OG

Com as torres?

DL

Com as torres, copiando as paradas. Eu morava em um quitinetezinho no bairro Benfica, em uma área da cidade que é como se fosse meio o Butantã em São Paulo, um bairro mais na fronteira com as coisas, universitário, mas com umas periferias dentro. Depois cerquei meu terreninho. Chama Morro Santa Terezinha, é duna, praticamente. Ali na duna se formou uma ocupação que se chamou Favela do Marrocos, parecia o Marrocos da novela que estava passando [O clone (2001)]. Virou Favela do Marrocos. Em Fortaleza, nessa área da cidade, tudo é de três famílias, essa parada que rola no Brasil. Os mesmos caras são donos da fábrica de manteiga e de tudo, têm simplesmente a Praia do Futuro inteira no nome deles, tudo improdutivo há séculos.

CM

Era um movimento organizado de luta por moradia?

DL

Isso acontece depois, vira organização política mesmo. Aquilo era pura necessidade, a galera de outros lugares colando, a família que cresce no próprio morro. Nessa época eu vivia de jogo e fiz um barraco lá, subi, depois vendi por outro que era a metade de espaço junto com um carro. Peguei um carro, troquei por outro carro, peguei o barraco, troquei por um outro barraco. Era assim.

OG

É o roleiro.

DL

Lá a gente chama de jogueiro, que vive de jogo, de troca.

CM

Ogi também teve outras profissões além de pichador e rapper?

OG

Meu lance foi quando trabalhei na loja de discos do meu tio. Minha mãe falou: “Você precisa fazer alguma coisa, está muito aqui no bairro, está começando a ficar influenciado já.” Tinha um outro tio que tinha um escritório na Avenida Angélica. Eu ficava fazendo trampo de office boy, mas não tinha nem registro na carteira. Tinha passe de ônibus ainda de papel. Eu pegava os passes de ônibus que ele me dava pra eu fazer serviço, trocava por hot dog, essas coisas da rua, menor de idade. Meu primeiro emprego registrado acho que foi telemarketing, no começo dos anos 2000. Só que eu nunca tive muito dom para lidar com esse lance de corporação. Não gostava de quem puxava saco, achava que estava sendo caguetado. Não parava em nenhum, mas ia ficando em vários. A demissão em telemarketing era alta, a rotatividade é alta. Aí em 2005 fiz meu primeiro disco de rap com meu grupo Contra Fluxo [Superação, lançado em 2007]. E uma mulher de uma ong gostou muito das ideias e chamou a gente para trabalhar na Febem [atual Fundação Casa], para dar aula de rima para a molecada. Peguei logo de cara a unidade do Tatuapé na pior fase, a molecada fazendo rebelião. Mas eles se identificavam comigo, eu parecia um cara do bairro. Fiquei na Febem uns três anos. Quando eu lancei meu primeiro disco solo, Crônicas da cidade cinza (2011), passei a viver só de rap.

CM

A música Profissão perigo não é autobiográfica, então?

OG

Não. Sei dirigir moto, mas não cheguei a ser motoboy. Mas tenho um monte de amigos que são. Em 2021, “Profissão perigo” teve 1 milhão de acessos, uma música de 2011, por causa da galera dos motoboys. Eles estão sempre ouvindo, repostando. Em 2011 nem estava tão precarizado quanto hoje. Tentei fazer faculdade, minha mãe também falava, fui fazer direito no Morumbi. Morava em um bairro longe para caramba e a faculdade era no Morumbi. Eu tinha que sair às cinco da manhã de casa para chegar lá às sete. É tiração demais, não terminei nenhuma faculdade também. Cheguei perto de terminar rádio e tv em 2008, mas também desisti. Hoje talvez eu tivesse feito sociologia, uma coisa que gosto mais.

CM

Don L, como foi sua história com Jorge Ben Jor?

DL

Pô, foda. Foi no festival Psica, em Belém, eu ia abrir para Jorge Ben, mas atrasou tudo e de repente acabou que Jorge pediu para tocar antes, “sou um senhor, estou muito cansado”, pediu para ver se eu trocava com ele. Caralho, Jorge Ben abriu meu show, tá ligado? E a galera ficou! Mas acabei sem ter coragem de pedir uma foto para o grande mestre da música brasileira. Considero Jorge o maior artista brasileiro da história, pelo que ele conseguiu realizar musicalmente, de uma forma muito natural. Não gosto de incentivar esse tipo de pensamento de que a música acontece naturalmente, a gente tem no Brasil muito uma cultura de achar que é um povo escolhido por Deus para as coisas darem certo mesmo dentro da precariedade. Não sou muito partidário dessa ideia, mas Jorge Ben é uma coisa que acontece uma vez a cada século. É uma música que você ouve e pensa: isso é música brasileira. E, ao mesmo tempo, dialoga com soul, com funk norte-americano, com a música negra que foi gravada, digamos, no Ocidente. É muito original o que ele faz no violão, vi um cara falando que o violão dele tem uma levada de afoxé, de percussão africana, na rítmica.

OG

Ouvi dizer uma vez que ele começou a tocar desse jeito porque não sabia tocar igual os caras da bossa nova. Ele inventou o estilo, tá ligado?

DL

É uma música muito universal. Jorge Ben é um artista brasileiro que está do lado de Bob Marley, Rolling Stones, Marvin Gaye, de grandes êxitos da música mundial, como também é João Gilberto. Nunca vi Jorge Ben ficar falando de treta. Tim Maia era treta toda hora, e Tim Maia foi muito menos disruptivo, em vários sentidos. Jorge escapa de tudo, é tipo o que Jay-Z queria ser. Só que Jay-Z, no começo da carreira, fabricou essa imagem. É um cara que traficou um pouco, vinha do tráfico, e se colocou como um super-herói do gueto, um cara que traficava por necessidade. Não era um cara mau, mas, de repente, tinha que matar alguém. Sempre tinha uma troca de tiros, os tiros não pegavam nele. É como se todo mundo estivesse conspirando contra Jay-Z, mas ele é meio que um escolhido por Deus. É só propaganda. Não é legal. Jorge Ben é meio que isso, sem querer ser.

CM

Ogi, pode falar um pouco sobre suas referências musicais?

OG

Tenho fases, estava ouvindo bastante rock progressivo. Rock e jazz foram coisas que comecei a conhecer mais velho, depois de começar a fazer rap e entender o lance de samplear. Sou uma cria do rap, foi aí que comecei a apreciar realmente outras músicas. Nunca gostei de rock, de nada. O rap me pegou muito cedo, com 9, 10 anos. Na quebrada, ouvia samba. Gosto muito de pagode, porque em cada esquina do meu bairro tinha um grupo. Meu ouvido melhorou depois que comecei a ir para esse lance de sample, de pesquisar para fazer beats.

CM

Quando fez Crônicas da cidade cinza você conhecia os livros Malagueta, perus e bacanaço (1963) de João Antônio e Histórias das quebradas do mundaréu (1973), de Plínio Marcos?

OG

Conhecia, mas nunca tinha me aprofundado muito. Até acho o estilo do João Antônio meio parecido com o do Plínio Marcos, mas acho João Antônio mais profundo.

CM

Don L, suas letras são de confronto. é possível fazer confronto direto no tempo atual, com toda a mediação das redes sociais?

DL

Pô, eu faço, às vezes. E às vezes me prejudico muito por isso. Acho que faço uma música bem popular, acho meu som meio pop até, e as pessoas às vezes me colocam em uma caixinha de underground. Sou colocado nesse lugar por ser meio maldito nesse sentido, de falar o que as pessoas não falam, também por posições políticas que tenho. Sempre fui de treta também, vem lá desde o Costa a Costa, a gente já começou tretando.

OG

Não acho que você é um cara treteiro, acho que você argumenta quando tem algo plausível.

CM

Talvez por ter explicitamente uma postura política?

DL

É que desde o Costa a Costa comecei a fazer rap em uma cidade em que ninguém achava possível ser rapper, ainda mais ser um rapper relevante. Era meio assim, vamos fazer rap para fazer parte de uma militância. Acho isso muito foda, tenho muito respeito. Mas a partir de certo momento a gente meio que rompeu até com o movimento, porque queria ser artista. A gente trazia show dos Racionais e queria abrir, tinha que sortear quem é que vai abrir o show. Não, foda-se sorteio, mano, a gente é o melhor, a gente tem que abrir, é “nóis” mesmo que vai abrir. A gente veio em uma linha até meio ressentida com a militância no primeiro disco do Costa a Costa, e fizemos um disco extremamente político, mas falando de rua, de malandragem, da violência, do Brasil.

CM

É como [o antropólogo] Hermano Vianna definiu?

DL

Pô, Hermano fez uma das melhores resenhas que já vi quando saiu o disco do Costa a Costa, ele é nerd no bagulho, vai e destrincha. O título é “Sobrevivendo cada vez mais fundo no inferno”, coloca o disco do Costa a Costa como se fosse uma versão do Sobrevivendo no inferno [Racionais mc’s, 1997], só que ali é o gueto do gueto, Fortaleza, uma cidade extremamente desigual, anos 2000. A gente percebeu que a gente é melhor, talvez, que esses caras de São Paulo que trazemos para cá para fazer show, e a galera trata a gente como segunda divisão, nem considera. Rap de Fortaleza? Não quer nem ouvir. Tive que vir com o pé na porta. Eu me lembro de um dia que cheguei naquele diretor artístico da Trama, que morreu, como é o nome mesmo?

CM

Carlos Eduardo Miranda?

DL

Miranda. Ele estava em uma feira da música em Fortaleza e eu enquadrei ele: pô, Miranda, vocês estão na Trama, lançando só as mesmas coisas sempre, olha aqui, escuta esse disco. Ele falou: “Mas eu gosto de tal coisa”. Pô, mas tu gosta disso, sério mesmo? Então tu não curte rap, velho. Essa personalidade era necessária para mim, ninguém ia dizer que Costa a Costa era um dos melhores grupos do Brasil, então eu tive que falar isso. Foda-se, vou fazer o meu elogio da própria boca, porque se eu não f izer, ninguém faz. Então comecei a ser esse cara da treta, tá ligado? Às vezes, se impor implica em arrumar certas confusões.

OG

Alguém vai ficar mordido.

CM

E você vai chutar não o cachorro morto, mas os cachorros poderosos…

DL

Alguém vai ficar incomodado. Às vezes a galera está em uma posição cômoda, quem é esse maluco aí falando essas coisas? O Brasil tem muito essa parada de humilde, “sou muito humilde, sou tão humilde, tão humilde, que sou o mais foda, porque sou muito humilde”. É muito contraditório. A gente quebrava isso. Depois foi virando outra coisa, que virou minha personalidade, de dizer o que as pessoas não têm coragem de dizer. Sempre tive essa formação política, vim de um movimento de militância que começou a fazer música. Não foi o contrário. Aí teve esse rompimento, vou ser artista, mudar para São Paulo. Fiz Caro vapor, disseram que era o primeiro disco de rap hedonista, que falava de drogas e sexo. Era um tabu falar de dinheiro, falar que quer ganhar dinheiro com música.

CM

Era tabu falar de amor e sexo em rap?

DL

Era, e minha mixtape era praticamente de tabus do rap do começo ao fim. Mas a galera pegou muito por esse lado do hedonismo. É político para caralho aquele disco, como é o do Costa a Costa. Quando lanço Roteiro para Aïnouz 2, a galera pegou: “Cara, agora entendi Caro vapor. Agora entendi quando você fala ‘chips controlam máquinas/ chips compram suas máscaras/ e se consome chips com sonhos endolados em fábricas’” [letra de “Chips (Controla ou te controlam)”, de 2013]. Estou falando de um modo de produção capitalista, de como são produzidos os sonhos.

CM

Você já disse que é comunista demais para a indústria musical, ou para a mídia. por quê?

DL

Do nada, eu era o cara que falava de consumo, “sangue é champanhe” [em “Sangue é champanhe”, em duo com Flora Matos, de 2013], “eu sou comunista e curto carros” [“Aquela fé”, 2017]. Virei o cara supercomunista, aí pronto, já perdi contrato com marca porque entraram no meu Twitter.

CM

Falaram abertamente que era por isso?

DL

Falaram abertamente, no começo de 2024. É, alguma coisa que falei incomodou. Nem visão de mercado a galera tem. Tem um mercado aqui e foda-se, tem umas pessoas para comprar isso. Mas o Brasil é um país extremamente conservador, contraditório. Agora é o país pentecostal, da galera ser super de Deus, mas aí é Deus e a putaria ao mesmo tempo. A gente é muito louco, cara. A galera me tem como um cara de treta, mas nem é assim. O bagulho está nas letras, eu sou maior de boa, troco ideia com todo mundo.

CM

Você já falou que ser um precursor não vai te favorecer, vai favorecer quem vem depois.

DL

Nossa, odeio ser pioneiro, mano. É a pior coisa que tem, ser pioneiro é uma merda.

CM

Mas acaba sendo uma realidade, você se consagra com o nome Don L, vindo de Fortaleza, o que posteriormente permite uma coisa para o nordeste que talvez não te favoreça tanto, mas vai dar frutos.

DL

É, não tem royalties. Se tivesse seria massa, mas não tem. Matuê dá uma entrevista e fala: “Só foi possível fazer isso que faço por causa do Don L, quando escutei Caro vapor…”. A gente não tem indústria musical, na minha opinião. O Brasil não tem indústria, é um país desindustrializado. Quando você começa a entender política, estudar um pouco sobre economia, sua visão fica ampla. Do mesmo jeito que a gente não produz carro, não produz música industrialmente. As gravadoras e editoras não são nossas, são vinculadas a editoras estrangeiras. Agora mais ainda, porque todos os serviços de streaming são estrangeiros. Faço parte de uma agregadora estrangeira, saca? O Brasil é comércio de música, não é indústria musical. O Brasil tem uma economia muito de curto prazo, ninguém pensa em longevidade musical. Foi muito louco, porque já cheguei em São Paulo sendo “o rapper favorito do seu rapper favorito”. Eu falava esse bagulho, os caras eram muito meus fãs, só que eu não era conhecido. Às vezes tinha um cara que estava fazendo o maior dinheiro com rap, eu era uma das principais influências dele, mas não quer que eu seja conhecido pelo público dele. O setor de marketing da Nike inteiro ouvia Caro vapor, mas os caras não conseguiam passar uma parada comigo porque era isso, rap de Fortaleza e tal. Tinha a parada de eu ser o artista que não apresentava números ainda. Não tinha visão industrial da música, de pegar esse bagulho porque ele vai ser grande em tal momento, vai ser barato para mim agora e daqui tantos anos vai ter muito valor.

CM

Vocês, como artistas, usam inteligência artificial?

OG

Cara, eu uso um aplicativo que separa as tracks, separa tudo. Jogo a música inteira lá e ele tira um canal de bateria limpo, um canal do baixo, ou guitarra, e a voz. Para samplear é mais fácil, porque se só quero esse baixo vou lá e uso. Fiquei testando porque queria emular uma voz feminina.

DL

Eu fiz isso na música “Bem alto” (2024). O refrão tem um monte de cantor que não existe cantando comigo. Queria finalizar tudo só eu, e teve uma hora do refrão que eu precisava de um coro. Aí fui assinar esse bagulho, que mapeia e clona. Você pode clonar sua própria voz hoje em dia, é muito fácil. Ninguém nota, mas tem outras vozes ali, mas parece eu, não é tão diferente. É só eu mulher, ou eu em outro timbre. Isso é um uso criativo de inteligência artificial que é legal, que fiz por pura necessidade. Mas é muito melhor chamar as outras pessoas para cantar.

OG

Tenho vontade de fazer isso. Queria criar uma personagem, a voz de uma mulher contando várias histórias.

Sobre os autores

é um rapper e compositor brasileiro, considerado um dos nomes mais influentes do rap nacional na atualidade.

é arquiteta urbanista formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas (FGV-SP).

é doutor em Sociologia da Cultura pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), professor de Produção Cultural Contemporânea, Programação e Curadoria.

é jornalista cultural em São Paulo desde 1994, formado pela ECA-USP. Trabalhou na Folha de SP e na CartaCapital, colabora com diversos veículos brasileiros e edita o site de cultura brasileira Farofafá desde 2011.

é rapper conhecido pelo roteiro literário de suas rimas, pelo inédito flow e pelo seu particular retrato da cidade.

Cierre

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