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Tarcísio de Freitas (Republicanos), o governador de São Paulo, leiloando a EMAE (Empresa Metropolitana de Águas e Energia) (Paulo Pinto/Agência Brasil)

Tarcísio está sucateando a TV Cultura para privatizá-la

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Demissões de trabalhadores e cancelamento de programas expõem, mais uma vez, o processo de destruição da TV pública paulista. Processo foi iniciado em mandatos tucanos e aprofundado pelo atual governador de extrema direita.

Atraso de salário, cancelamento de programas e demissões. Nos últimos meses a situação dos trabalhadores da RTV Cultura chegou ao limite. Nos históricos corredores da emissora, que completou em junho 55 anos, o clima de trabalho vem se deteriorando. A incerteza quanto ao futuro daquela que, durante anos, foi vista como um exemplo de programação de qualidade, aumenta a cada dia. “A impressão que temos é que o objetivo é justamente esse, fazer a TV pública sangrar até o fim”, relata um trabalhador que pediu anonimato.

O mais recente sinal de alerta foi dado no início de setembro, com a demissão de 116 empregados da empresa, entre radialistas e jornalistas. Houve também o cancelamento de importantes programas da emissora dois dias antes: Balaio, Entrelinhas, Estação Livre, Giro Econômico, Legião Estrangeira, Na Cadência do Samba e Negros em Foco. Todos eles deixaram de ser produzidos. Apenas cinco seguem na grade, exibindo reprises. O governador Tarcísio de Freitas tem sido enfático em todas as suas declarações sobre a situação: não há dinheiro para a Cultura.

O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) e o Sindicato dos Radialistas de São Paulo estiveram presentes durante esse processo, com o objetivo de organizar os trabalhadores e atuar pela defesa da RTV Cultura. Foram organizadas assembleias permanentes na porta da emissora, com grande participação dos empregados. Elas estão mantidas até o momento. A precarização das condições de trabalho atinge jornalistas, radialistas e músicos da Jazz Sinfônica. O que as entidades buscam hoje é a readmissão dos demitidos e o retorno das produções inéditas à emissora. As reprises enfraquecem a TV pública e reforçam o caminho do sucateamento pretendido pelo governo do Estado.

A mais recente crise tem como ponto central justamente a disputa pela programação e pelo controle do conteúdo da emissora, somado à política de destruição e privatizações empregada pelo governador Tarcísio de Freitas. A briga entre a Fundação Padre Anchieta (FPA) e o Governo do Estado de São Paulo tem vitimado os telespectadores e ouvintes das emissoras da FPA, através da deterioração da grade de programação, e os trabalhadores, com arrocho salarial e perda de postos de trabalho.

Contingenciamento

“Saiba como fazer parte da plateia dos programas Na Cadência do Samba, apresentado pelo Thobias da Vai Vai, e do Balaio, apresentado por Renato e Chico Teixeira.” A matéria que divulga a atração da TV Cultura foi publicada na terça-feira, dia 27 de agosto, no site da RTV Cultura. Os programas musicais da emissora têm como características a qualidade e a participação do público. Na matéria podemos ler ainda que o programa “Na Cadência do Samba” é uma das novas atrações da emissora. O material busca informar aos telespectadores como participar presencialmente das gravações. Não deu tempo. Pouco mais de uma semana depois a emissora comunicou os cancelamentos desses programas.

“Fomos pegos de surpresa com a notícia dos cortes de pessoal e interrupção dos programas”, relata Luiza Moraes, representante dos trabalhadores no Conselho Curador e diretora do SJSP. “Falo no plural porque me refiro aos funcionários e também conselheiros da FPA, que ficaram sabendo da notícia pela mídia. Um dos conselheiros chegou a me dizer que estava em Brasília, no Congresso, e foi abordado por um parlamentar questionando o que estava acontecendo da RTV Cultura. Gerou mal estar, inclusive porque alguns tinham participado de uma reunião, dias antes, do Comitê de Assuntos Internos, onde a direção tinha apresentado um quadro da situação financeira da FPA”, destaca a conselheira.

O abrupto corte impactou os trabalhadores que permaneceram na emissora. A falta de informação também afetou suas rotinas. “Foi muito difícil, ainda mais quando sabemos que alguns eram responsáveis por levar a única renda para a família. Acompanhar essa situação foi bem pesado para todos nós”, destaca uma trabalhadora que pediu para não ser identificada. “O clima de insegurança ficou pairando no ar por um bom tempo, pois não houve posicionamento formal por parte da chefia em nenhum momento. Faltou aquela palavra de consolo para a equipe. Mas, infelizmente, nada foi dito”, lamentou.

A dotação orçamentária prevista pelo Governo do Estado de São Paulo para a FPA este ano (2024) é de R$104,3 milhões. Esses valores são inferiores aos repassados a Fundação dez anos atrás (2014), de R$107,8 milhões, segundo dados oficiais. Além de um orçamento pequeno perto das necessidades da emissora, a utilização política dos repasses tem afetado os trabalhadores. No início do ano foi previsto um bloqueio de 100% sobre as verbas de custeio da emissora. “Há meses vinha sendo dito que o contingenciamento do orçamento de custeio, que é usado para bancar despesas básicas como água, luz, telefone e benefícios, compromete o bom funcionamento das rádios, TV Cultura e Jazz Sinfônica. Mas a decisão não foi antecipada para o Conselho e, entre os trabalhadores, criou-se um clima de muita revolta e insegurança”, afirma Moraes.

A demora nos repasses foi sentida pelos empregados, sobretudo os mais fragilizados, que são contratados como PJs, expondo mais uma vez a face cruel da precarização. Em agosto os trabalhadores relataram às entidades sindicais um atraso no pagamento de salário e benefícios. “Infelizmente, esse fato chegou a se concretizar para os PJs. Antes disso, próximo ao dia de pagamento, havia essa incerteza se o salário cairia ou não na conta. Os pagamentos eram depositados em horários diferentes, gerando essa desconfiança e ansiedade nos empregados. Houve até um dia em que os colegas foram em grupo ao RH dizer que não tinham dinheiro para a condução, ou até mesmo para o almoço. O RH liberou a refeição para aqueles que ainda não tinham recebido. Foi um dia tenso, de muita pressão”, descreveu um trabalhador que pediu para não ser identificado.

A Fundação alegou diminuição da receita via publicidade para justificar as demissões, e defendeu o atual Governo, “esclarecendo” que a suspensão dos programas “nada tem a ver com o repasse de verbas realizados pelo Governo do Estado de São Paulo”, ressaltou em trecho da nota. E continuou: “A TV Cultura tem mantido relação amistosa com o governo, com o qual tem permanente diálogo. A maioria desses programas permanecerá no ar por meio de reprises, e as gravações serão retomadas em momento oportuno”, diz ainda o comunicado.

O Governo do Estado também respondeu, sucintamente, em outro comunicado: “No que compete ao aporte do Governo de SP, vale destacar que a instituição possui um orçamento previsto para este ano de R$104 milhões, valor 10% maior do que a dotação de 2023”.

O valor contingenciado foi liberado, “apropriadamente”, próximo às eleições municipais realizadas este ano, e após intensa mobilização dos empregados, que resultou em repercussão negativa para o Governo do Estado. Houve massiva divulgação dos cortes em veículos de comunicação, o que trouxe visibilidade à situação. “Eu acredito que a mobilização dos sindicatos e dos trabalhadores que encontraram espaço da mídia para expor a situação tenha tido peso relevante, para não dizer decisivo. Porque, afinal, não é bom para alguém que apoia um candidato ser mal visto pela opinião pública, que sempre defendeu a RTV Cultura. A apreensão deste momento reside justamente no fato que, passada eleição, e se aproximando do final do ano, tenhamos mais cortes diante do cenário que se avizinha sem o Orçamento de Custeio. Muitos colegas têm medo do futuro”, explica Luiza.

“Me deixa muito intrigada saber que o dinheiro que havia sido contingenciado pelo Governo, que até então era a justificativa para o encerramento dos programas e pelas demissões, foi pago, mas nada foi feito para retomar essas produções”, destaca uma trabalhadora que também não quis ser identificada. “Tudo isso acontece ao mesmo tempo em que um diretor do departamento de vendas da TV grita aos quatro cantos que a emissora nunca faturou tanto em anúncios”, relata a mesma trabalhadora, indignada.

Queda de braço

A Fundação Padre Anchieta é uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos. Ela é a mantenedora da TV Cultura (aberta), TV Rá Tim Bum! (a cabo), Rádio Cultura FM, Rádio Cultura AM, canal MultiCultura Educação (digital), Univesp TV (digital), através do Centro Paulista de Rádio e TV Educativas. A FPA ainda é responsável pela Jazz Sinfônica e pelo Solar Fábio Prado, que abrigava o Museu da Casa Brasileira. Desde o início de seu mandato, o governador Tarcísio tem avançado no desmonte da estrutura mantida pela Fundação com um uso político do contingenciamento dos recursos aportados pelo Estado à FPA. “Você tem o orçamento aprovado e o Governo do Estado de São Paulo vai soltando a conta-gotas e de tempo em tempo, de acordo com a política do governo. Ele contingencia a verba, e depois solta aos pouquinhos para tentar sufocar a FPA. É uma forma de ter um poder de barganha para mandar na programação da televisão”, relata Sérgio Ipoldo, coordenador do Sindicato dos Radialistas de São Paulo.

O estatuto da Fundação Padre Achieta prevê mandato de três anos a uma Diretoria Estatutária, eleita através de um pleito realizado pelo Conselho Curador da entidade. São 47 conselheiros, com representantes em cargos eletivos, vitalícios, parlamentares, representantes do governo e de instituições públicas. Apenas uma cadeira é ocupada por uma representante dos trabalhadores. O atual diretor-presidente, José Roberto Maluf, foi reconduzido ao cargo em março de 2022, e seu mandato termina apenas em 2025. “A atual direção foi nomeada pelo ex-governador João Dória e reeleita antes do atual governador assumir. Essa aparente falta de sincronia entre a Direção e o governante de plantão foi definida lá atrás, para garantir a independência do Conselho Curador, que é o guardião dos interesses da Fundação, e tem o dever de evitar o aparelhamento da FPA. Isso sempre causou ruído”, explica a conselheira Luiza Moraes.

A presença de Maluf na direção da FPA não agrada Tarcísio, nem a sua base aliada. Ainda no primeiro semestre de 2023, parlamentares bolsonaristas criticaram a programação da emissora por ter exibido o documentário “O Autoritarismo Está no Ar: 3 Anos Depois”, produzido pelo jornalismo da TV Cultura em 2020 e atualizado após a tentativa de golpe do 8 de janeiro. O deputado Gil Diniz (PL) aprovou um “convite” à secretária de Cultura e Economia Criativa do Estado, Marília Marton, e ao diretor-presidente da FPA, José Roberto Maluf, para comparecerem à Comissão de Educação e Cultura da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, para eles “esclarecerem quais são os critérios que pautam o conteúdo televisivo exibido pela TV Cultura”, em uma clara afronta aos princípios de autonomia necessários a uma empresa de comunicação pública.

Em maio deste ano, mais um ataque. O deputado Guto Zacarias (União) apresentou um pedido de abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os gastos da Fundação e a eleição do Conselho Curador. O pedido foi visto como mais um afronta à autonomia dos veículos de comunicação da RTV Cultura, e ao próprio Conselho Curador. “Uma CPI é algo que a gente sempre tentou emplacar na Assembleia, para olhar as contas, e nós nunca conseguimos fazer, porque os governos sempre tiveram maioria na Alesp”, relata Ipoldo.

O pedido de CPI, ao que tudo indica, teve motivações menos nobres.“O governo tentou emplacar alguns representantes para o Conselho Curador e o atual diretor-presidente resistiu, junto com os outros conselheiros”, explica Ipoldo. Ao que tudo indica, a sanha do governador não terá fim até que ele atinja o seu propósito: controlar a programação da emissora e ter maioria de representantes indicados ao Conselho Curador.

Desmonte

Não é de hoje que a RTV Cultura vem sendo atacada pelos Governos do Estado de São Paulo. Sucessivamente os Sindicatos dos Jornalistas e o Sindicatos dos Radialistas de São Paulo têm denunciado o processo de desmonte e precarização dos trabalhadores e da programação da RTV Cultura. “Entrei na TV Cultura em 2005 como PJ, desde 2011 sou celetista. São quase 20 anos e 5 diretorias diferentes. O desmonte de duas rádios e da TV públicas não começa neste Governo, para ser justa. Os reajustes que tivemos foram obtidos nos governos tucanos à fórceps com muita luta dos sindicatos, ou então, concedidos às vésperas de eleições, quando havia interesse por parte do candidato de plantão”, relembra Moraes.

Parte importante desse projeto de sucateamento está focada em uma política de arrocho salarial. A perda do poder aquisitivo para jornalistas e radialistas se avolumam e os trabalhadores estão sem acordo coletivo de trabalho firmado. O último, após greve histórica realizada pelos empregados em 2016, foi concedido pela Justiça. O Acordo coletivo deixou de ter validade em 2020. Desde então nem a Fundação, nem Governo do Estado, sentam à mesa para negociar com as entidades sindicais.

“Como você se sentiria ao ter o seu poder aquisitivo cortado pela metade? Essa é a realidade dos trabalhadores celetistas da RTV Cultura, que não raro enfrentam casos de angústia, ansiedade e depressão”, afirma a repórter Cláudia Tavares, ex-representante dos funcionários no Conselho Curador e diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.

Segundo estimativas dos sindicatos, os jornalistas precisariam de um reajuste salarial de 47,3% para cobrir as perdas com inflação. Os radialistas, 42,12%. “Foram apenas cinco correções salariais na última década, sendo que a primeira apenas para os radialistas, quando a data base para a negociação ainda não era comum. A maior delas, de 10,33%, veio quando o ex governador João Dória soube que os sindicatos fariam um protesto na frente do MIS Experience, na inauguração, em 2022”, destaca.

O reajuste mais recente, realizado a partir de março de 2024, gerou desânimo: foi de 3%. Foi concedida aleatoriamente, por determinação do Governo do Estado, sem considerar os pleitos dos trabalhadores nem as pautas de reivindicações da categoria.

Na Orquestra Jazz Sinfônica, que passou a ser gerida pela FPA em 2020, trabalhadores enfrentam situação semelhante. Outro problema endêmico é a contratação de trabalhadores como “PJs”. Esses profissionais realizam as mesmas funções dos empregados celetistas, com uma remuneração inferior, e não contam com benefícios como o plano de saúde.

A insegurança é ainda maior, principalmente após os últimos cortes. “Muitos trabalhadores têm procurado os sindicatos para reclamar da falta de transparência em relação a alguns contratos firmados via pessoa jurídica, para cargos mais elevados. Remunerações de mercado, características de emissoras comerciais, caminham lado a lado com a defasagem dos trabalhadores de base, que fazem o sucesso e credibilidade da RTV Cultura”, relata Cláudia.

Os sindicatos pediram a lista de valores pagos aos trabalhadores. A direção da FPA alega que, por orientação do Departamento Jurídico, não pode repassar informações dos contratos, a não ser que cada contratado autorize, alegando sigilo. Para as entidades a questão é de transparência: onde há dinheiro público, deve haver acesso às informações. Os salários de empregados celetistas estão no site da Transparência do Governo de São Paulo.

Cláudia Tavares acrescenta ainda que todas as tentativas de fechar um acordo coletivo de trabalho têm fracassado. E que os valores de vales refeição e alimentação são mais do que insuficientes. “Imagina garantir a compra do mês para a família com menos de 100 reais. É uma tarefa impossível”, pontua.

“Nós estamos com os salários defasados e não tivemos, sequer, a reposição da inflação nos últimos anos. Isso sem falar nos valores dos vales alimentação e refeição que não são suficientes para almoçar durante todo o mês no próprio restaurante da empresa”, relata um trabalhador que pediu para não ser identificado.

Hoje a RTV Cultura tem 749 funcionários celetistas e quase mil colaboradores em regime PJ. Não há acordo coletivo vigente entre a FPA e as entidades sindicais, o que fragiliza ainda mais a relação de trabalho. O horizonte é nebuloso. Em setembro, o Governo do Estado de São Paulo enviou à Alesp a proposta de orçamento para o FPA para o ano de 2025. O valor da previsão orçamentária passou de R$104,3 milhões (2024) para R$109 milhões em 2025. “O aumento de R$5 milhões cobre os 3% de reposição que o Governo concedeu aos celetistas. Não cobre nem a inflação deste ano e o crescimento orgânico da folha. Para o ano que vem, o Governo do Estado previu zero para o orçamento de custeio, que terá que ser bancado com recursos próprios. Como isso poderá ser feito com queda nas receitas publicitárias? Se o contingenciamento deste ano já resultou em tantas demissões e cancelamentos, sem a previsão de ter dinheiro para o básico, como vamos sobreviver?”, exclama a conselheira e trabalhadora da RTV Cultura.


Publicado originalmente tanto na edição imprensa quanto digital do jornal Unidade, publicação do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo.

Sobre os autores

é secretário de Comunicação e Cultura do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo e jornalista na Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

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Published in América do Sul, Análise, Austeridade, Imprensa and Trabalho

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