Na quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal baixou uma decisão de enormes consequências, afirmando que réus só podem ser presos depois de esgotados todos os recursos (o chamado trânsito em julgado). Embora a decisão tenha causado um enorme tumulto social e político, é esse o procedimento legal desenhado explicitamente na Constituição brasileira, adotada em 1988, após vinte e um anos de ditadura militar. Desde a redemocratização, era relativamente rara a prisão após a segunda instância (chamada de execução provisória da pena).
Mas algo mudou no Brasil nos últimos anos quando um discurso histérico contra a corrupção se apossou do país. Esse frenesi moralista derrubou uma presidenta e implicou seu partido — junto com a oposição de centro-direita — em vastos esquemas de corrupção. Também empoderou forças radicais de direita que consideram a própria democracia suspeita, culminando na eleição do protofascista Jair Bolsonaro, que fez campanha como se fosse um forasteiro da política tradicional, apesar de ter passado três décadas como deputado federal. Esse esforço para supostamente erradicar a corrupção resultou em atalhos legalistas que ignoravam quase por completo o texto da constituição.
Em nome de prender membros poderosos e bem relacionados da elite que, como certos críticos apontam (com razão), quase sempre conseguem escapar à justiça, os promotores e juízes moralizadores da Operação Lava Jato tiveram êxito em popularizar seus argumentos de que a Constituição seria um obstáculo a ser contornado. Sem dúvida influenciado pela divinização da Lava Jato na imprensa nacional e internacional e pelas ameaças tácitas das Forças Armadas, o STF agiu para facilitar a cruzada contra a corrupção em 2016, sancionando prisões após condenação na segunda instância. Crucialmente, isso abriu caminho para a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sobre quem pairavam acusações extremamente frágeis, como os próprios promotores admitiam em privado.
Em abril de 2018, Lula se entregou às autoridades para começar a cumprir uma sentença de 12 anos, mas não antes de participar de um comício catártico e instantaneamente icônico na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, local que lançou sua carreira política. “Não estou acima da lei”, disse ele na época. “Se eu não acreditasse na lei, não teria iniciado um partido político. Eu teria começado uma revolução”. Mesmo depois de transferido para a Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, Lula permanecia dedicado a buscar um terceiro mandato.
Porém, numa série de eventos já bem conhecidos, em setembro ele foi formalmente impedido de disputar a presidência, passando o bastão para o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad. Apesar das pesquisas indicarem que Lula teria vencido a eleição, Haddad perdeu para Bolsonaro no segundo turno por quase onze milhões de votos. Desde a prisão de Lula, durante toda a campanha eleitoral e depois, o grito de guerra de Lula Livre galvanizou não apenas a esquerda brasileira, mas forças progressistas em todo o mundo. Por exemplo, em junho, respondendo às reportagens explosivas do The Intercept, que revelaram a corrupção judicial no seio da Lava Jato, Bernie Sanders twittou que: “Durante sua presidência, Lula da Silva produziu grandes reduções na pobreza e continua sendo o político mais popular do Brasil. Estou com os líderes políticos e sociais de todo o mundo que pedem que o judiciário brasileiro solte o Lula e anule sua condenação”.
Embora ela não tenha sido tão enfática em seu apoio, Elizabeth Warren também expressou seu apoio a Lula quando eu lhe pedi pessoalmente. Jeremy Corbyn, Jean-Luc Mélenchon e Alberto Fernández, o recém-eleito presidente da Argentina, expressaram apoio entusiástico a Lula durante seu encarceramento. O peso da solidariedade internacional com Lula foi forte e generalizado. Isso porque Lula é o político raro cujo destino interessa a uma audiência global. Afinal, durante o seu governo, o Brasil emergiu como um poder legítimo no cenário mundial, combinando inovações políticas progressistas com sucessos econômicos marcantes.
Isso não é para negar eventuais críticas sérias aos governos petistas, mas, como Michael Brooks e Ben Burgis escreveram em Jacobin no mês passado, mesmo preso, Lula “deixou claro em entrevista após entrevista, na blitz midiática que fez depois que as autoridades finalmente o deixaram falar com jornalistas, após um ano de silêncio forçado, que ele havia refletido profundamente e estrategicamente sobre a praga que afeta o Brasil e os Estados Unidos e que está metastatizando por todo o mundo.” Ou seja, não exige muito esforço para imaginar Lula como um baluarte contra o avanço da direita reacionária no Brasil e na América Latina de maneira mais ampla. Como símbolo do empoderamento da classe trabalhadora, Lula sozinho pode unir a grande maioria das forças de oposição no Brasil.
Algumas pessoas na esquerda dirão que é justamente a capacidade que Lula tem de dialogar com setores sociais com interesses econômicos antagônicos que faz dele uma figura comprometida e incapaz de liderar uma esquerda renovada. Mas, considerando que o povo brasileiro permanece na defensiva contra o ataque reacionário do governo de Bolsonaro, esse sectarismo devia ser deixado de lado. Lula já disse que pretende viajar para o exterior e por todo o Brasil para investir incansavelmente contra Bolsonaro e seu carnaval de horrores. Esse é um desenvolvimento promissor que pode guiar uma oposição dispersa cuja falta de coesão e estratégia revela uma fraqueza profunda.
Lula também disse que deixa a prisão mais à esquerda do que quando entrou, indicando a possibilidade de intensificar seu discurso contra as forças conservadoras na imprensa, nos bancos, e no governo, essa elite acomodada que lançou as bases para a ascensão de Bolsonaro. Lula, por enquanto, voltará para seu apartamento em São Bernardo, mas sua promessa de abraçar um discurso político radical representa também uma forma de retorno ao lar. Como jovem líder sindical no final da década de 1970, Lula se destacou ao enfrentar destemidamente o regime militar cujas políticas econômicas devastaram a classe trabalhadora.
Ao consolidar o partido que ele ajudou a criar na década de 1980, Lula emergiu como o líder de esquerda mais importante da história brasileira recente. Ele perdeu a presidência por pouco em 1989. Disputando a presidência a cada quatro anos a partir de então, Lula gradativamente moderou seu discurso, buscando amenizar o mercado e observadores internacionais de que ele não tinha intenção de balançar o barco. Essa estratégia deu certo: no início do novo milênio, sofrendo ainda com o neoliberalismo da década de 1990, o Brasil fez Lula presidente. Agora, essa pretensão conciliatória provavelmente se esgotou.
Não deixa de ser irônico, no entanto, que embora Lula saia da prisão como uma figura auto-declaradamente mais radical, provocando surtos de raiva, consternação e medo em seus rivais, sua libertação representa uma reafirmação do Estado de Direito no Brasil. Como observou a advogada Nathália Rocha Peresi, “longe de ser uma vitória para os chamados ‘garantistas’, a decisão de cumprir a Constituição Federal protege a todo e qualquer cidadão de não ser injustiçado em face de um processo em curso, ainda passível de revisão contra falhas técnicas e erros processuais. O Supremo ignorou pressões políticas, opiniões ideológicas, e atendeu à soberania do pacto constitucional.”
Vale lembrar que Lula, para o bem ou para o mal, sempre foi mais relutante em pressionar as normas legais e jurídicas de seu país do que alguns outros líderes da chamada Maré Rosa, como Evo Morales na Bolívia e Hugo Chávez na Venezuela. No entanto, alguns observadores já temem os desdobramentos da decisão que levou à libertação de Lula. Como notou o jornalista Alex Cuadros, que escreveu um livro crítico sobre o recente boom econômico do Brasil, nesta sexta-feira, “a condenação de Lula deve ser anulada porque desrespeitou o devido processo legal. Mas essa decisão é uma maneira de libertá-lo sem abordar diretamente esse assunto. Enquanto isso, o crime de colarinho branco foi mais uma vez essencialmente descriminalizado no Brasil”.
Sem dúvida, nesse ponto há um equilíbrio a se ponderar. Para todo criminoso de colarinho branco que possa fugir do escrutínio legal, existem milhares de brasileiros pobres e da classe trabalhadora — 4.985, de acordo com uma contagem — que se beneficiarão de uma reafirmação dos direitos que a constituição já lhes garante.
Cuadros está certo, no entanto, ao reparar que a decisão da Corte não anula a sentença do ex-presidente. Pelo contrário, apenas permite que ele encaminhe seus recursos legais em liberdade. Mas isso ignora o efeito maior da decisão. É bom que os poderosos de sempre possam se blindar da responsabilização legal com advogados caros e conexões pessoais? Certamente não. No entanto, a solução para esse problema não é sancionar atalhos que atropelem o texto claro da Constituição – um documento que, quaisquer que sejam os limites de sua aplicação, estabelece uma visão social generosa e pluralista que deve ser defendida em vez de descartada como impraticável. Além disso, a abordagem intensamente punitiva contra a corrupção produziu um espetáculo midiático incessante e um senso superficial de desintoxicação política, mas ao preço de ruína econômica, social e política. A Lava Jato, em outras palavras, é um desastre vendido como salvação.
Por si só, a libertação de Lula não é solução para nada. O ex-presidente tem enormes desafios pela frente e não está claro que mesmo alguém da estatura dele consiga superá-los. Mas a maré agora parece estar mudando contra os improvisos institucionais convenientes para a Lava Jato em favor da Constituição e de suas proteções. Isso não significa necessariamente que a cegueira da anticorrupção conservadora que tomou conta do Brasil nos últimos anos tenha sido curada. Mas pelo menos agora, a esquerda brasileira tem seu porta-voz mais eficaz voltando à luta. Isso é uma coisa boa, ponto final.
Sobre os autores
é professor de história na Hampden-Sydney College em Virginia. Está escrevendo um livro sobre os sentidos políticos do nacionalismo no Brasil no século XX.